As dores da supersafra

As dores da supersafra A produção de cereais, leguminosas e oleaginosas deverá quebrar recordes e


Edição 35 - 14.04.23

As dores da supersafra

A produção de cereais, leguminosas e oleaginosas deverá quebrar recordes em 2023. Isso, claro, é ótimo para o agronegócio, mas também expõe os gargalos logísticos e de infraestrutura no País

Por Amauri Segalla

O agronegócio brasileiro quebrará uma série de recordes na safra 2023. De acordo com a mais recente estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a produção de cereais, leguminosas e oleaginosas chegará a 302 milhões de toneladas, número jamais alcançado no País. Para efeito de comparação, a previsão supera em 14,7% – o que dá uma diferença expressiva de 38,8 milhões de toneladas – o desempenho de 2022. O IBGE diz também que as lavouras de algodão, arroz, milho, soja e trigo apresentarão crescimento sem precedentes na próxima temporada, o que se deve sobretudo às bases comparativas fracas do ano passado, quando houve a quebra de safras em razão de problemas climáticos. Não é só. Ainda segundo o levantamento agrícola, a área a ser colhida totalizará recordistas 75,8 milhões de hectares, o que equivale a um acréscimo de 3,5% em relação a 2022.

A supersafra é indiscutivelmente um marco a ser comemorado. Ela traduz o aumento notável da produtividade das lavouras nos últimos anos, fenômeno que se intensificou graças ao uso eficaz da tecnologia, abre caminho para que os agricultores colham lucros expressivos e revigora o PIB brasileiro à medida que mais negócios serão gerados no ambiente interno e mais divisas serão trazidas com o aumento das exportações. Isso tudo é óbvio, mas há um aspecto ainda pouco debatido no País: a supersafra tem também suas dores – e não são poucas. De modo geral, ela escancara os gargalos da infraestrutura brasileira e mostra que, apesar de o agronegócio ser o principal responsável por alimentar a economia do Brasil, ele ainda sofre com os percalços típicos de uma nação que tem muito por avançar nesse campo.

A principal dor da supersafra diz respeito ao armazenamento dos grãos. Estimativas realizadas pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) apontam para um déficit – também recorde, registre-se – de 100 milhões de toneladas em 2023, que não serão estocadas de maneira adequada. Para ficar mais claro: simplesmente não há onde guardar tanto alimento. O fenômeno é resultado do desequilíbrio entre o aumento da produção e os baixos investimentos em capacidade de estocagem. “Enquanto nos últimos anos houve um crescimento explosivo dos investimentos em tecnologias de produção, o que fez a produtividade disparar no campo, muitos agricultores deixaram de lado algo aparentemente simples, mas ainda assim fundamental: a capacidade de armazenamento”, afirma o consultor especializado em tecnologia agrícola Eduardo Tancinsky. “Essa questão é essencial para tornar o agronegócio brasileiro ainda mais relevante.”

O fenômeno pode ser comprovado por números. Um estudo feito com dados de 2021 por Joana Colussi, pesquisadora acadêmica da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, constatou que a capacidade de armazenamento no Brasil equivalia naquele ano a apenas 67% de sua produção total de grãos. Em 2010, o índice estava por volta de 90%. A conclusão é cristalina: os produtores e as empresas do setor deixaram de lado investimentos na construção de armazéns para se concentrar apenas na lavoura em si. A produtividade disparou, mas não foi acompanhada por melhorias nos espaços para estoque.

O agro brasileiro, um dos mais poderosos do mundo, está inegavelmente atrás nesse quesito. Nos Estados Unidos, tradicional rival do Brasil no campo agrícola, 54% das fazendas possuem armazéns ou silos. No Canadá, o índice é de 85% – era 50% há cerca de uma década, mas um programa nacional estimulou os fazendeiros a aumentar os investimentos na área como forma de evitar danos no futuro. Na Argentina, nação que enfrenta tormentas econômicas, estima-se que o indicador seja 40%. O Brasil faz feio diante de qualquer concorrente no agronegócio: a marca está em torno de 15% e não cresce há um bom tempo, o que prova que o tema precisa ganhar os holofotes do setor.

A boa notícia é que o Brasil possui ao menos algumas vantagens competitivas. Ao contrário do que ocorre com a maioria dos grandes produtores agrícolas, especialmente os Estados Unidos, o mercado brasileiro não precisa ter o que os especialistas chamam de “armazenagem estática” para 100% da produção anual. Isso acontece porque os brasileiros produzem até três safras por ano – ou seja, há grande movimentação de produção ao longo de toda a temporada e não apenas em períodos específicos.

De todo modo, as deficiências de armazenagem representam um gargalo perigoso que poderá afetar a competitividade do agronegócio brasileiro nos próximos anos. Outra dificuldade é que a distribuição de silos pelo País se dá de maneira desigual. De acordo com dados apurados da Conab, o problema está concentrado nos estados de Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, que respondem por quase metade da produção nacional de grãos. Apenas o Mato Grosso, que é o maior produtor de soja e milho do Brasil, representa praticamente um terço dos déficits de armazenagem do território brasileiro.

A situação, de fato, é crítica no estado. O Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária (Imea) apontou recentemente que, nos últimos anos, a taxa de crescimento da capacidade estática de armazenagem foi de 3,7% por ano na região. O mesmo levantamento constatou que o estado precisa ampliar a sua capacidade estática para 125 milhões de toneladas até 2030. Para alcançar a meta, deveria ter uma taxa de crescimento anual da capacidade de armazenagem da ordem de 22,9%, algo ainda muito distante de sua realidade.

O problema poderá ganhar contornos mais dramáticos no futuro. Com a conversão de pastagens degradadas e de desmatamento em áreas agrícolas, além da irrefreável expansão da produtividade, a produção de itens como soja e milho deverá acelerar em ritmo intenso nos próximos anos. Ou seja, o déficit de armazenamento poderá chegar a níveis insustentáveis. Atenta a essa questão, a Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (Aprosoja/MT) decidiu agir. Em 2021, lançou o programa “Armazém para Todos” para incentivar a construção de silos principalmente por pequenos e médios produtores. Em linhas gerais, o projeto consiste em facilitar o acesso a crédito para esse fim. Além disso, um simulador virtual ajuda os fazendeiros a calcular a viabilidade econômica do investimento, a despeito do tamanho da propriedade.

Afinal, quais são os impactos negativos gerados pela pouca quantidade de armazéns agrícolas disponíveis em território brasileiro? Sem áreas para estoques nas propriedades, os agricultores correm para vender a colheita de acordo com os preços praticados em um dia específico, e assim não acumular perdas. Com os silos, seria possível guardar a safra e negociá-la aos poucos, por valores melhores – ao estocar grãos de maneira adequada, o produtor poderia vendê-los na entressafra ao longo do ano, e certamente com preços mais altos.

De fato, falhas no processo de armazenamento geram prejuízos significativos para os agricultores. Um estudo recente realizado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) estimou que o produtor rural poderia melhorar sua lucratividade em até 55% caso houvesse lugar disponível para guardar todos os estoques. A conta leva em consideração a redução com os custos de frete e o aumento da rentabilidade das colheitas.

É fácil entender os benefícios. Para Adiemir Hortega Medeiros, gerente sênior de consultoria para Operações em Supply Chain da consultoria EY, a armazenagem adequada dos grãos resultaria “em perdas menores no transporte, maior controle da umidade dos grãos e melhores preços das commodities ao longo da safra”. O cálculo do frete é fundamental nessa equação. No Brasil, os valores disparam durante a safra. Se o produtor tiver armazéns instalados na fazenda, ele inevitavelmente reduz esse custo, evita filas para o escoamento da produção e, na ponta final, alivia a pressão sobre as operações logísticas nas estradas e portos.

No dia a dia das fazendas, a falta de espaço faz com que boa parte da produção permaneça fora dos silos, em céu aberto. Para dimensionar o problema, basta voltar os olhos para os anos anteriores. Superintendente do Imea, Cleiton Gauer lembra que, em 2022, a boa safra de soja na região não foi acompanhada pelo aumento das vendas. Com isso, os armazéns ficaram sem local adequado para receber o milho, que acabou armazenado ao ar livre porque a capacidade interna dos silos estava esgotada. Segundo ele, isso não ocorria há pelo menos dois anos.

Armazenar a produção ao ar livre provoca efeitos colaterais indesejados. Um deles é a dificuldade para regular a umidade dos grãos. Parece algo sutil, mas é de extrema importância no agronegócio. Para ter boa qualidade e, portanto, atingir bons preços no mercado, o grão de soja deve ter um índice de umidade em torno de 11% para armazenamentos que durem um ano ou entre 9 e 10% acima disso. Manter esses índices é muito mais fácil em ambientes controlados, que favorecem, por exemplo, o uso de tecnologias de secagem.

O excesso de grãos – algo sempre positivo que deveria ser potencializado pela melhoria da infraestrutura no País, ressalte-se mais uma vez – causa congestionamentos nos portos, em geral despreparados para receber o aumento explosivo da movimentação de cargas, deixa caminhões e trens à espera do despacho das mercadorias, adia entregas e, no final das contas, prejudica toda a cadeia produtiva.

Uma das maneiras mais rápidas e eficazes de combater o problema seria ampliar os desembolsos públicos em projetos de infraestrutura. Pouco tempo atrás, o Plano Safra destinou R$ 4,2 bilhões em recursos, por meio do Programa para Construção e Ampliação de Armazéns (PCA), para investimentos em armazenagem. O valor, contudo, é considerado insuficiente para reduzir a defasagem de silos. Eles, de fato, custam caro. Segundo dados da Kepler Weber, líder do mercado brasileiro de equipamentos desse tipo, um silo custa entre R$ 750 e R$ 1 mil por tonelada de grão armazenado. De acordo com especialistas, o investimento se pagaria em cinco ou seis anos de produção e valeria a pena especialmente para fazendas com área de produção acima de 400 hectares.

Um caminho para a redução de danos seria a fomentação de alternativas complementares. A consultoria EY cita os “silos bags”, equipamentos que suportam de 180 a 250 toneladas por unidade e que armazenam o grão em perfeitas condições de comercialização por até 18 meses e com a vantagem de possuírem uma vida útil de pelo menos dez anos. Além disso, diz o consultor da EY Adiemir Hortega Medeiros, eles são cerca de 40% mais baratos em relação ao silo metálico convencional.

Trata-se, entretanto, de medida paliativa que certamente não resolveria o problema por completo. Iniciativas como essa deveriam estar associadas a projetos mais abrangentes, como investimentos em processos e tecnologias que otimizassem, por exemplo, todas as etapas de transporte. “As pressões no escoamento rápido e sincronizado demandam um ecossistema eficiente de infraestrutura de transportes, como ativos portuários e marítimos robustos”, afirma o consultor Medeiros, da EY. “Nos dias atuais, quem está atuando como viabilizador dessa estrutura são as grandes tradings globais.”

A defasagem de armazéns não é um gargalo que atinge apenas o bolso dos produtores. No aspecto mais amplo, ela ameaça a própria segurança alimentar do País. Sem locais adequados para estocar a produção agrícola, o Brasil se expõe a riscos de abastecimento, especialmente se houver quebras significativas da safra, algo não tão desprezível assim em um contexto de mudanças climáticas. Portanto, a questão deveria merecer maior atenção dos entes públicos, na medida em que diz respeito ao conjunto de toda a sociedade. Com desabastecimento, lembre-se, vem a inflação, e ela costuma ser cruel com os mais pobres. O que traz algum alívio é que o tema tem recebido cada vez mais atenção. Isso é ótimo para o agronegócio, mas melhor ainda para o País.