Biogás: energia que renova o agro

Produzido a partir da decomposição de matéria orgânica, esse insumo permite que as cadeias agrop


Edição 35 - 20.03.23

Produzido a partir da decomposição de matéria orgânica, esse insumo permite que as cadeias agropecuárias transformem um passivo ambiental em ativo energético e ainda dissipe variações de preços e abastecimento em eletricidade e combustíveis

 

Por Romualdo Venâncio

 

Quando a reportagem da PLANT PROJECT visitou a Sekita Agropecuária, em São Gotardo (MG), para entrevistar Eduardo Sekita, na segunda temporada da série Top Farmers, surgiram dois fatores surpreendentes entre os vários motivos que justificaram aquela viagem. O primeiro deles é que o principal produto do rebanho de que consagrou a empresa entre as maiores produtoras de leite do País era na verdade o esterco. Sim, os dejetos daquelas vacas holandesas de altíssimo padrão genético serviam como alternativa de adubo para evitar os altos custos dos fertilizantes químicos. O segundo é que, antes de esses resíduos nutrirem as lavouras de cenoura, alho, beterraba, repolho, batata e milho, passavam por um biodigestor e eram transformados em biogás, que na sequência gerava energia elétrica.

 

De acordo com o próprio Eduardo, essa energia limpa garantia autonomia de eletricidade da fábrica de ração para alimentar um rebanho, à época, de 1,5 mil vacas em produção, que forneciam diariamente 65 mil litros de leite. E já havia planos de garantir excedente para “jogar na rede elétrica e gerar créditos”. Essa entrevista aconteceu em abril de 2019, e embora essa integração de atividades que já ensaiava uma economia circular não fosse exatamente uma novidade naquele momento, de lá para cá o tema biogás ganhou novas proporções, abrindo espaço na matriz energética brasileira.

 

Esse é apenas um exemplo do papel que tem o biogás como opção para transformar um passivo ambiental em ativo energético, como define o vice-presidente da Associação Brasileira do Biogás (ABiogás), Gabriel Kropsch. “E com alta rentabilidade, porque o custo de matéria-prima é negativo. O produtor ou a empresa teria de pagar para se livrar desses resíduos utilizados para gerar o biogás”, disse o executivo. De acordo com estatísticas da ABiogás, o agronegócio tem extrema relevância nessa transformação que gera ganhos financeiros e de sustentabilidade. Segundo a entidade, o potencial brasileiro é de produzir 43,2 bilhões Nm3/ano a partir de resíduos dos setores sucroenergético (48,9%), proteína animal (29,8%) e produção agrícola (15,3%). A área de saneamento, que inclui os aterros sanitários, responde por 6% desse montante.

Quando se projeta o impacto dessa produção de biogás, as estatísticas ficam ainda mais interessantes. Mapeamento feito pela ABiogás revelou que o potencial brasileiro para produção de resíduos é de 120 milhões de metros cúbicos m3 por dia. “Se fôssemos aproveitar todo esse potencial, poderíamos substituir 25% da energia elétrica e 70% do consumo de óleo diesel”, afirmou Kropsch.

 

A expectativa da ABiogás é de que até 2030 seja possível aproveitar 32 milhões de m³ diários dos resíduos, apenas 26% do volume total. “E já seria suficiente para substituir 30% do consumo de óleo diesel, exatamente o percentual que importamos”, disse Kropsch. “Trocaríamos um combustível de fora, caro e poluente por outro nacional, renovável e sustentável.” Uma das metas da entidade é transformar a energia elétrica, combustível e térmica gerada pelo biogás em commodities energéticas amplamente utilizadas, com uma participação de 10% na matriz brasileira.

 

Como acontece no setor sucroenergético, em que as usinas podem direcionar sua produção para fabricação de açúcar ou etanol, dependendo da sinalização do mercado, o biogás também pode abastecer dois segmentos. Sua utilização para geração de energia elétrica ou combustível, com o biometano, vai depender da rentabilidade e da disponibilidade de infraestrutura e logística. Em ambos os casos, quanto mais próximo da rede de distribuição, mais vantajoso se torna. Para o biometano, ainda que a rede de gás canalizado esteja mais distante, pode-se optar pelo transporte por caminhões. “O custo vai aumentar, mas ainda assim pode continuar sendo uma fonte de renda interessante”, explicou Kropsch.

 

Evolução recente

 

Não faz muito tempo que o biogás vem ganhando espaço nos debates sobre um agronegócio mais sustentável, com uma pegada de carbono menos impactante. Mas sua produção é um processo natural que existe desde que o mundo é mundo, segundo o vice-presidente da ABiogás. Kropsch explica que na natureza não existe lixo, os resíduos viram matéria para outro processo, viram alimento para outra cadeia. E o biogás vem da decomposição da matéria orgânica, seja animal, seja vegetal. “O que a gente faz é replicar esse processo de forma industrial, com tecnologia, acompanhamento, maior volume de gás, mais segurança e de forma muito mais rápida. O que pode demorar 400 milhões de anos na natureza, embaixo da terra, a gente faz em dez dias com um biodigestor”, disse.

 

Em relação ao avanço tecnológico da produção de biogás, à evolução em pesquisa e desenvolvimento no setor propriamente dita, pode-se dizer que o processo se intensificou de maneira mais coordenada nos últimos dez anos. Esse é o tempo de existência do Centro Internacional de Energias Renováveis, o CIBiogás, uma Instituição de Ciência e Tecnologia com Inovação (ICT+i) que nasceu dentro do ecossistema do Parque Tecnológico Itaipu (PTI). Mais do que gerar conhecimento para promover o biogás como recurso energético limpo e competitivo, o CIBiogás tem o pioneirismo em desenvolver soluções personalizadas para toda essa cadeia.

 

A partir dessa base científica, o Centro cria também plataformas para estimular o lado comercial dessa história. Como é o caso do BiogasClub, o primeiro clube de negócios do País com foco específico em biogás, e que já conta com 24 membros. Essa integração tende a crescer conforme vão ficando mais explícitas as oportunidades no setor. “A gente desenvolve tecnologia e fortalece o ecossistema do negócio”, afirmou o diretor-presidente do CIBiogás, Rafael González. A ampliação do quadro de associados da ABiogás também reflete esse ambiente comercial aquecido. A entidade nasceu em 2013, com oito empresas, hoje são 140. “Muitas vieram de outros países para se instalar no Brasil”, disse Kropsch.

 

Uma importante prestação de serviços do CIBiogás está no Laboratório de Biogás, o primeiro no Brasil com o aval da Coordenação Geral de Acreditação do Inmetro (CGCRE), na norma ISO 17025:2017. Nessa unidade é possível avaliar o potencial energético das matérias-primas, oferecendo aos mais diversos segmentos a informação precisa sobre a capacidade de geração de energia daquele determinado insumo. “Atendemos desde uma empresa como a Raízen até um pequeno produtor, e já realizamos mais de 39 mil análises”, disse González.

 

Outro exemplo dessa atuação e da aproximação com o meio rural está dentro do Show Rural Coopavel, um dos principais eventos de tecnologia agrícola do Brasil e do mundo. Trata-se do Espaço Impulso, o Laboratório de Inovação do Agro, que oferece às empresas um ambiente que conecta tecnologia, educação do futuro, startups e um framework de inovação aberta.

 

O fato de a exposição acontecer no oeste paranaense amplia as chances de expandir a cadeia produtiva de biogás, pois a região é forte em produção de suínos, um dos segmentos com alto potencial de geração de biogás a partir dos dejetos animais. “E o resíduo do biodigestor pode se tornar um ótimo fertilizante, dessa forma não se perde nada. É o que chamamos de economia circular”, afirmou Kropsch, vice-presidente da ABiogás.

 

Reação em cadeia

 

Além de todas as vantagens econômicas diretas que o biogás pode oferecer às cadeias produtivas, há ainda algumas indiretas, como a valorização institucional do agronegócio brasileiro. O que, por consequência, acaba multiplicando as oportunidades de negócios. Segundo a ABiogás, energias renováveis, sustentáveis, geram muito mais empregos por unidade de energia do que a convencional.

 

Outro ponto é que o Brasil pode se tornar exportador de produtos agropecuários com baixíssima – ou até negativa – pegada de carbono. Segundo Kropsch, é o que já vem acontecendo no setor de cerâmica. “O mercado internacional está demandando o fornecimento de cerâmica que utilize soluções sustentáveis em sua produção. Não vejo por que não aproveitar isso na pauta de exportação do agronegócio.”

 

Na onda de reduzir a pegada de carbono, a Yara Brasil, uma das principais indústrias do setor de fertilizantes, deu um grande passo em direção ao biogás. A partir do segundo semestre deste ano, a companhia deve começar a receber em sua unidade de Cubatão (SP) o fornecimento diário de 20 mil m3 de biometano, fornecido pela Raízen e produzido em Piracicaba, no interior paulista, a partir de vinhaça e torta de filtro da cana-de-açúcar. Essa conexão entre as duas cidades já é chamada de “rota do biometano” pelas empresas parceiras.

 

Esse volume representa menos de 3% dos 700 mil m3 de biometano que a Yara consome diariamente, o que abre várias possibilidades pela frente. “Já estudamos outros contratos com a Raízen”, afirmou a gerente de Desenvolvimento de Negócios e Sustentabilidade da Yara Brasil, Cíntia Neves. “E há um terceiro produto que pode servir como matéria-prima que é o bagaço da cana. Ainda precisa de uma combinação de bactérias para acontecer, mas muito em breve pode surgir.”

 

Essa iniciativa é mais um dos passos da Yara na estratégia de descarbonização da cadeia de produção, que tem como metas reduzir em 10% a pegada de carbono por tonelada de nitrogênio até 2025 e alcançar a neutralidade climática até 2050. E um avanço rumo à amônia verde. “Por enquanto, apenas amônia renovável, pois ainda precisamos da certificação que nos permitirá chamá-la de verde”, comentou Cíntia.

 

Outro objetivo da Yara, quando de fato tiver a amônia verde, é completar a economia circular, abastecendo os canaviais da Raízen com o fertilizante produzido a partir de todo esse processo de descarbonização. E também as lavouras dos demais setores. “Com o fertilizante verde é possível reduzir a pegada de carbono na laranja, no café e em outros produtos”, afirmou Cíntia.

 

Fonte inesgotável

 

Um dos principais pontos de conexão entre a agropecuária e a produção de biogás é a matéria-prima. “O biometano é o pré-sal caipira, pode ser feito de qualquer resíduo do agronegócio”, disse Cíntia. O comentário da gerente da Yara Brasil é reforçado pelo vice-presidente da ABiogás. Segundo Kropsch, além dos dejetos de fazendas e granjas, resíduos da produção de milho, mandioca e arroz (casca) também servem como insumo para gerar biogás. “Esse movimento, que começou forte pelos aterros sanitários, se expandiu pelo segmento sucroenergético e se espalhou por outras atividades que geram matérias com alto potencial”, afirmou.

 

Há cada vez mais exemplos de estudos e da aplicação de diferentes materiais para a produção do biogás. Na Dinamarca, por exemplo, vem crescendo o uso de palha nas usinas de biogás. De acordo com os relatórios de biomassa da Agência Dinamarquesa de Energia, essa utilização passou de 14 mil toneladas no período 2015/16 para 193 mil toneladas em 2021/22. E pode crescer ainda mais com a meta do país de reduzir pela metade a produção pecuária para diminuir as emissões de gases de efeito estufa. Com essa medida, os dinamarqueses perdem boa parte da matéria-prima do biogás, os dejetos desses animais.

 

Entre as pesquisas para avaliar o potencial de diferentes materiais para produção de biogás aparecem bagaço de malte e de maçã, como informou a Agência Fapesp, a agência de notícias da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. O primeiro caso vem de um trabalho desenvolvido por quatro cientistas brasileiros e dois norte-americanos. O estudo mostrou que após ser purificado em metano, o biogás do bagaço de malte pode ser usado como biocombustível veicular com pegada de carbono muito baixa quando comparada à de fontes fósseis convencionais. E o resíduo final do processo ainda vira biofertilizante.

 

A experiência com bagaço de maçã foi realizada por cientistas das universidades Estadual de Campinas (Unicamp) e Federal do ABC (UFABC). Até por se tratar de uma das frutas mais consumidas no mundo, seja in natura, seja processada (suco, vinagre, cidra, entre outros), há um grande volume de subprodutos industriais, que em geral são simplesmente descartados. O estudo revelou um rendimento de 36,61 litros (L) de metano por quilo de sólidos removidos, o que pode gerar 1,92 quilowatt-hora (kWh) de eletricidade e 8,63 megajoules (MJ) de calor por tonelada de bagaço de maçã.

 

Tanque cheio

 

A utilização do biometano como combustível coloca o biogás na rota da mobilidade sustentável. Inclusive dentro das fazendas. A New Holland trilhou esse caminho ao lançar o primeiro trator movido a biometano, o T6 Methane Power, apresentado comercialmente no ano passado, durante a Expointer (Esteio, RS). O veículo fabricado na Inglaterra é resultado da estratégia da empresa de ser líder em energia limpa, processo que começou em 2006 e deu origem, em 2016, ao primeiro protótipo da linha T6.

 

Agora já existe até a perspectiva de a tecnologia ser aplicada em outros equipamentos. “Nada impede que seja expandida para colheitadeiras ou pulverizadores, por exemplo”, disse o especialista de Marketing de Produto da New Holland Agriculture, Juliano Perelli. De acordo com o executivo, já está em testes na Europa o TK4, um trator para vinhedos também movido a biometano. E, recentemente, foram divulgados os protótipos de um trator movido a gás natural liquefeito (GNL), o T7 Methane Power GNL, “e de outro totalmente elétrico com recursos autônomos”.

 

Além da redução nos custos com óleo diesel, outra vantagem desses veículos é livrar o produtor das incertezas do mercado de combustíveis. Desde que ele tenha um biodigestor na propriedade, investimento que vale a pena, segundo Perelli, pois serão aproveitados resíduos que o produtor tem na própria fazenda. “E o biogás poderá abastecer toda a frota, desde os tratores até automóveis e caminhões, e ser utilizado na geração de energia elétrica para a propriedade”, acrescentou.

 

Segundo o vice-presidente da ABiogás, não falta nada para o biogás avançar no Brasil, a estrada já está pavimentada. “Do ponto de vista jurídico e tecnológico, está tudo muito bem resolvido”, afirmou Kropsch. Agora, como em qualquer segmento impulsionado por inovação tecnológica, é uma questão de tempo para que a cadeia produtiva ganhe mais potência. Existe ainda uma curva de adoção, mas conforme isso vai se difundindo, cada vez mais empresas vão entrando. Kropsch reforça que o Brasil tem o potencial de ser o maior produtor de biogás do mundo, por conta do tamanho do que tem no campo, o que é reconhecido por representantes do mundo inteiro. “Temos algo que ninguém tem, que é a escala e o potencial de geração de biogás a partir desses resíduos do agro.”