01.02.23
Mudança de governo impõe novos desafios para o setor, mas também traz oportunidades. Saiba o que muda para os produtores a partir de 2023
Por Amauri Segalla
Poucos dias depois de vencer a eleição presidencial, o petista Luiz Inácio Lula da Silva embarcou para o Egito para participar da COP 27, a conferência sobre as mudanças climáticas promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU). Na ocasião, Lula falou – com inegável ênfase, ressalte-se – sobre o que espera do agronegócio a partir de 2023. “Estou certo de que o agronegócio brasileiro será um aliado estratégico do nosso governo na busca por uma agricultura regenerativa e sustentável, com investimento em ciência, tecnologia e educação no campo, valorizando os conhecimentos dos povos originários e comunidades locais”, disse o novo presidente. “No Brasil, há vários exemplos exitosos de agroflorestas”, completou, diante de uma plateia de diplomatas estrangeiros.
Por mais que parte do agronegócio brasileiro desconfie das boas intenções de Lula, é incontestável que o presidente fará de tudo para manter uma política de boa vizinhança com o setor. Não é à toa. O agro, como se sabe, consolidou-se nos últimos anos como o principal pilar da economia do País, respondendo por um quarto do PIB, 50% do valor das exportações e 20% das ocupações no mercado de trabalho. É impossível, portanto, ignorar tal pujança.
“O presidente eleito não tem nenhuma escolha além de colocar o Ministério da Agricultura no nível de primeiro escalão do governo”, diz Thiago de Aragão, diretor de Estratégia da consultoria Arko Advice. “O impacto do agronegócio no Brasil é visível e qualquer mudança de postura que tire a relevância do setor será um tiro no pé.” Até o fechamento desta edição, o presidente não havia anunciado o nome do novo ministro.
Mas, independentemente do nome, quais serão as diretrizes do novo governo para a área? Para especialistas, a boa notícia é que, de fato, não haverá rupturas. “A lógica é a mesma do futebol: em time que está ganhando não se mexe”, afirma Paulo Feldman, professor de economia da Universidade de São Paulo. Feldman cita o programa de governo apresentado por Lula, que não trouxe nenhuma medida revolucionária para o setor – o que é ótimo, aponte-se. Durante a campanha, os adversários do petista especularam sobre a possível criação de um novo imposto para taxar as exportações do agro, mas as equipes designadas para a transição passaram longe desse tema. Em mais de uma ocasião, o produtor e empresário Joe Valle, que integrou esse time, negou qualquer possibilidade de se aumentar a mordida tributária.
A mudança mais visível em relação à gestão Bolsonaro diz respeito a questões ambientais. Como se sabe, esse foi um dos pontos sensíveis do governo anterior, que pouco fez para vender ao mercado internacional a ideia de que o Brasil está comprometido com a preservação da natureza. Ao contrário do que muitos imaginam, o agronegócio brasileiro – pelo menos a vertente séria e comprometida, que corresponde à esmagadora maioria – é um dos mais sustentáveis do mundo. Nos últimos anos, a adoção de novas tecnologias, a gestão responsável dos recursos naturais e a busca permanente pelo equilíbrio entre produção e preservação tornaram os campos do País símbolos de compromissos sustentáveis. Ainda assim, essa imagem é pouco conhecida do exterior e certamente ficou prejudicada pela falta de atenção do governo Bolsonaro à temática ambiental.
Sob Lula, o cenário tende a ser diferente, ao menos nesse aspecto. Para Thiago de Aragão, um caminho provável é que os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente passem a trabalhar em fina sintonia. “A política externa ambiental ganha uma preponderância grande por conta das expectativas em relação a crédito de carbono, agricultura sustentável e energia limpa”, diz ele. Isso soa como música nos ouvidos de parceiros comerciais do agronegócio brasileiro, principalmente os europeus, que cada vez mais ameaçam impor barreiras aos países não comprometidos com a agenda ESG.
Aragão cita um exemplo de como uma agenda ambiental mais assertiva pode abrir portas para novos negócios. Nos últimos 20 anos, o esperado acordo comercial entre União Europeia e Mercosul permaneceu travado por causa das discordâncias nas partes envolvidas, mas agora há uma chance maior de ser ratificado diante da promessa de cumprimento de normas ambientais pelos países. Com um governo mais comprometido com a agenda verde, aumentam as chances de as negociações finalmente serem concluídas.
O acordo traria benefícios relevantes para o agronegócio brasileiro. Ele prevê que, em um período de dez anos, as tarifas de exportação de alguns produtos da América do Sul à Europa sejam zeradas. Em contrapartida, os europeus eliminariam até 91% das taxas aplicadas ao Mercosul. Segundo especialistas, seriam beneficiados exportadores de suco de laranja, arroz, açúcar, etanol e carne bovina, para citar apenas alguns exemplos. Ou seja: uma política ambiental consistente aproximaria os brasileiros dos europeus – que ficariam mais abertos inclusive para fechar novos acordos comerciais –, num ciclo positivo que o mundo corporativo gosta de chamar de relação “ganha-ganha”.
Outro impacto positivo do novo governo poderá ser a volta do mercado de crédito de carbono ao radar dos investidores. Em setembro passado, a deputada federal Marina Silva (Rede-SP) entregou uma carta ao petista com uma série de reivindicações na área ambiental. Entre os pedidos estava a exploração dos créditos de carbono gerados pela redução de emissões por desmatamento. “Em nenhum outro país as condições naturais para uma transição justa para uma economia de carbono neutro são mais evidentes do que no Brasil”, escreveu Marina na carta.
De fato, o potencial para a geração de valor é imenso. De acordo com um levantamento realizado pela WayCarbon, consultoria especializada em sustentabilidade e mudanças climáticas, o Brasil poderá gerar receitas de US$ 120 bilhões com créditos de carbono até 2030, considerando o preço de um cenário otimista de US$ 100 por tonelada. Para Laura Albuquerque, gerente sênior da WayCarbon, a falta de regulamentação do mercado afasta possíveis investidores e é um entrave que precisa ser superado o quanto antes.
Novos governos, sejam eles quais forem, representam momentos oportunos para que mudanças como essas sejam levadas adiante. Atualmente, existe um projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional que trata do tema, mas os parlamentares até agora não demonstraram muita disposição para analisá-lo, até porque a agenda política nos últimos anos ignorou quase que por completo as questões ambientais.
Nesse aspecto, Marina Silva, que certamente terá papel de destaque no governo Lula, poderá ajudar. O Brasil poderia ser referência nesse setor, mas está atrasado em relação a seus pares internacionais. Países como Canadá, China, Estados Unidos e Japão, além dos integrantes da União Europeia, possuem mercado de crédito de carbono regulado. Portanto, são mais competitivos na atração de investimentos. Com Lula, dizem os especialistas, há chance maior de mudança nesse cenário.
O novo presidente está disposto a usar a agropecuária como protagonista da segurança alimentar no País, em um momento em que 33,2 milhões de brasileiros passam fome. Sua ideia é promover políticas de estímulo à produção da agricultura familiar e orgânica. Segundo o programa de governo apresentado em meados de 2022, uma das propostas é criar uma política nacional de abastecimento a partir dos estoques públicos de alimentos.
Por essa lógica, as reservas permitiriam ao governo comprar produtos agrícolas quando eles não atingirem seu preço mínimo de venda. Além disso, os itens poderiam ser colocados no mercado em momentos de alta dos preços de alimentos – com a elevação da oferta, os valores inevitavelmente cairiam.
Um aspecto ainda nebuloso no futuro governo Lula diz respeito à infraestrutura, um tema fundamental para o agronegócio. Henrique Dau, especialista do Insper Agro Global, diz que Lula defende um modelo híbrido de investimentos no setor: “Haverá a presença do setor privado, mas o governo será o principal vetor de aportes em infraestrutura”, diz ele. Uma possibilidade é a manutenção do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), ideia defendida pela equipe de transição da área.
Atualmente, existem 146 projetos qualificados dentro do âmbito do PPI – alguns deles de impacto direto no agronegócio – e a expectativa é de que sejam retomados. “Não temos uma visão de extinção, o que está avançado não vai retroceder”, disse, em evento recente, Viviane Moura, ex-superintendente de Parcerias e Concessões do Piauí, que fez parte do time designado pelo presidente Lula para desenvolver propostas na área. “Queremos trazer a iniciativa privada para reconstruir o País.”
O chamado eixo social é o que gera mais controvérsia entre alguns setores do agronegócio, principalmente em relação à demarcação de terras indígenas. A expectativa dos povos originários é de que o presidente eleito homologue cinco territórios nos primeiros dias de seu governo – duas terras no Acre e as outras em Alagoas, Mato Grosso e Santa Catarina, além de expandir consideravelmente nos quatro anos de governo as áreas de proteção para essas comunidades.
É provável que, em algum momento, as terras indígenas esbarrem em regiões produtivas, o que exigirá do governo sensibilidade para evitar conflitos fundiários. O governo Bolsonaro, lembre-se, foi bastante ativo em termos de regularização fundiária, algo que dificilmente se repetirá no governo Lula. Em sua gestão, Bolsonaro concedeu o recorde de 430 títulos de terra.
Outra questão que incomoda alguns segmentos do agronegócio diz respeito à atuação dos movimentos sociais. “Há preocupação com a defesa da propriedade privada em virtude das invasões no passado”, afirmou a pecuarista Teresa Cristina Vendramini, presidente da Sociedade Rural Brasileira, em entrevista ao Broadcast Agro. “Foi esse o principal motivo que levou ao afastamento do setor do então candidato Lula. Não tenho dúvidas de que temos de conversar sobre isso.” Ainda assim, Vendramini espera intensificar o diálogo com o novo presidente, o que começou a ser feito inclusive durante a campanha presidencial, a partir de contatos mediados pelo vice-presidente eleito Geraldo Alckmin.
A Sociedade Rural Brasileira defende uma série de iniciativas para 2023. Entre elas, maior esforço na implementação do Código Florestal, a continuidade do projeto de regularização fundiária para a distribuição de títulos agrícolas e investimentos em educação no campo, a partir principalmente de projetos de inserção tecnológica. Se boa parte dessas reivindicações forem atendidas, a entidade certamente deverá considerar o governo Lula bem-sucedido.
Para a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), que reúne as federações da agricultura de todos os estados brasileiros, a expectativa é de que a nova gestão contribua para ampliar os destinos das exportações. Por meio de nota, a entidade disse que é preciso que “o governo do País, acima de tudo, proporcione segurança jurídica para o produtor, defendendo-o das invasões de terra, da taxação confiscatória ou desestabilizadora, ou dos excessos da regulação estatal”.
Por mais que novos governos sempre representem mudanças, o agronegócio brasileiro é suficientemente forte para atravessar mudanças de rota, sejam elas quais forem. Se num primeiro momento a eleição de Lula trouxe certa apreensão para o setor, a verdade é que agora os ânimos já estão apaziguados. Além disso, está claro que, se por um lado a gestão petista traz desafios, por outro ela também oferece oportunidades. É consenso entre os especialistas que a agenda ambiental poderá representar excelente fonte de recursos para o setor. Se bem aproveitada, a temática sustentável abrirá portas inéditas para os profissionais do campo. Não há dúvida: em 2023 e nos próximos anos, o agronegócio seguirá mais forte do que nunca.