O homem que tirou o Brasil da gaveta

Rolando Boldrin, morto aos 86 anos, deixou um enorme legado de valorização da cultura brasileira.


08.02.23

Rolando Boldrin, morto aos 86 anos, deixou um enorme legado de valorização da cultura brasileira. Como apresentador, deu espaço a músicos de todo o Brasil, mostrando a diversidade do País. Mas foi além e construiu uma sólida carreira como ator, cantor e compositor

 

Por André Sollitto

 

Durante 31 anos, o apresentador, cantor, ator e compositor Rolando Boldrin foi o principal responsável por divulgar a música brasileira dos mais variados cantos do País. Desde que estreou seu programa Som Brasil, em 1981, na TV Globo, Boldrin recebeu em seu palco alguns dos maiores nomes da música brasileira. O programa original foi ao ar apenas até 1984. Mas o apresentador levou sua ideia para outras emissoras, como o Empório Brasileiro, na TV Bandeirantes, e Empório Brasil, no SBT. 

 

Foi na TV Cultura, no entanto, que encontrou sua casa definitiva. Foram 14 anos à frente do Sr. Brasil, onde abriu espaço para nomes consagrados, como Belchior, Milton Nascimento e Benito di Paula, mas também apresentou grandes instrumentistas, como o gaúcho Yamandu Costa, e cantores regionais. Boldrin morreu no dia 9 de novembro de 2022, aos 86 anos, deixando uma enorme lacuna na música brasileira. Mas seu legado é ainda maior. 

 

Seu tempo no comando do Sr. Brasil, onde cantava, contava causos, tocava violão e viola e conversava, ou melhor, proseava com seus convidados, era uma amostra semanal de seus enormes talentos artísticos. “O Boldrin era pessoalmente exatamente como ele se mostrava artisticamente. Aqueles olhos azuis brilhantes quando o assunto era fazer arte no Brasil, falar do Brasil”, conta a cantora Mônica Salmaso, presença frequente no programa. “Uma das pessoas mais lindas que eu conheci. Boldrin era muito espiritualizado, dessas pessoas que, independentemente de a gente crer ou não, parecem transformar o ambiente, trazem luz e amor. Ele era assim. Rigoroso e orgulhoso do seu trabalho; ciente da importância dele, mas sempre, em tudo, amoroso. Mas Boldrin foi muito mais.”

 

Nascido em São Joaquim da Barra, a cerca de 70 quilômetros de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, Boldrin começou a tocar viola bem cedo, com 7 anos. Viu, em sua cidade natal, apresentações de Cornélio Pires (1884-1958), figura importante na consolidação do que hoje se chama música sertaneja, que misturava prosa, música e teatro em seus shows. O impacto de Pires foi tão grande na formação de Boldrin que, anos mais tarde, um retrato do artista faria parte do cenário de Sr. Brasil. Ao lado do irmão, Leili, criou a dupla Boy e Formiga, e os dois se apresentaram em rádios locais. Foi o início de uma longa carreira nas artes.

 

Mudou-se para São Paulo aos 16 anos, graças a um empurrãozinho do pai, e trabalhou em inúmeros empregos para se sustentar enquanto a carreira artística não decolava. Foi garçom, sapateiro, frentista e carregador. Foi também ator de circo e figurante de programas de TV, até que conquistou um espaço fixo na extinta TV Tupi, em 1958, apresentando a variedade de habilidades com que conseguia entreter o público. Antes de se encontrar como apresentador, foi ator de telenovelas, com participações em algumas das produções mais importantes das décadas de 1960 e 1970. Estreou na primeira versão de A Muralha, em 1954, na Record, e viveu Van Gogh alguns anos depois, em 1963, na novela Moulin Rouge – A Vida de Toulouse-Lautrec, da TV Tupi. Fez trabalhos como O Direito de Nascer, no ano seguinte, As Pupilas do Senhor Reitor, em 1970, Mulheres de Areia, em 1973, O Profeta, em 1977, e Cara a Cara, em 1979.

 

Foi também ator de teatro e cinema em um momento vibrante dos palcos brasileiros. Integrou o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) com a peça Os Inimigos, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, responsável pelo influente Teatro Oficina. Também atuou no Teatro de Arena, companhia que encenaria espetáculos de nomes como Augusto Boal (1931-2009), Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) e Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), e foi dirigido por Antonio Abujamra (1932-2015). Recebeu ainda o prêmio de Melhor Ator da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), em 1978, por sua atuação em Doramundo, do diretor João Batista de Andrade.

 

Mas foi especialmente na música que se tornou conhecido. Foi com uma parceria com sua então esposa, Lurdinha Pereira, que fez sua estreia em disco com o bolero Um Cantinho pra Dois, em 1963. Gravou vários LPs e CDs ao longo da carreira em que misturava música, causos e poesia. Hoje, colecionadores buscam algumas de suas obras seminais, como Caipira, de 1981. Lançou também parcerias com nomes como Renato Teixeira e Almir Sater. O número exato de composições de Boldrin é incerto, mas pesquisadores estimam que ele tenha escrito ao menos 170 canções. A mais famosa delas, Vide Vida Marvada, tornou-se tema de seus programas e foi regravada pela dupla Pena Branca e Xavantinho.

 

Encontrar todas essas obras, no entanto, é tarefa complicada – o que é surpreendente, já que ele foi um dos grandes responsáveis por “tirar o Brasil da gaveta”, como costumava dizer. Os serviços de streaming têm poucos de seus trabalhos em catálogo, e a maior parte deles também está esgotada em mídias físicas. Para os garimpeiros de plantão, é preciso caçar cópias em bom estado de seus vinis ou CDs. Como costuma acontecer com artistas brasileiros, no entanto, é possível que sua morte cause uma revisão de sua obra e a regravação de alguns de seus melhores trabalhos por outros artistas. “Sua obra musical é preciosa”, diz a cantora Mônica Salmaso. “Suas composições são lindas e feitas a partir do conhecimento e do afeto pelo Brasil”.

 

Seu trabalho à frente do Sr. Brasil, felizmente, está bem documentado em centenas de vídeos na internet. Basta uma procura rápida no YouTube para encontrar, por exemplo, a participação de João Bosco, contando como escreveu O Bêbado e a Equilibrista – já que além da música regional Boldrin era um entusiasta da MPB, mas não do rock, da tropicália ou de qualquer gênero que usasse instrumentos elétricos, totalmente banidos de seu palco. Em outro programa, Egberto Gismonti toca Palhaço ao piano e relembra um show especial que fez com a presença da mãe. Em mais um, Mônica Salmaso e o violeiro Paulo Freire apresentam uma versão de Cuitelinho, clássico caipira coletado por Paulo Vanzolini e Antônio Carlos Xandó. E este é seu grande legado para a cultura brasileira: apresentar as facetas da música de raiz. “É possível entender que este trabalho vivido como uma missão, pelo Boldrin, com o Sr. Brasil, e pela Inezita Barroso, com o Viola Minha Viola, são de imensa importância na valorização da identidade destes Brasis profundos e dos interiores. Boldrin manteve este canal aberto e operante da valorização da cultura brasileira através da sua generosidade”, diz Salmaso.