O Brasil nos palcos

O Brasil nos palcos O centenário do dramaturgo Dias Gomes, autor de clássicos como O Bem Amado e O


18.01.23

O Brasil nos palcos

O centenário do dramaturgo Dias Gomes, autor de clássicos como O Bem Amado e O Pagador de Promessas, joga luz sobre uma obra volumosa e atemporal, que retratou de forma precisa algumas das principais mazelas do País

 

Por André Sollitto

 

Alguns personagens da nossa literatura ficaram tão populares que deixaram as páginas dos livros para entrar no inconsciente coletivo brasileiro. São mencionados em conversas e se tornam sinônimos de um comportamento particular. Odorico Paraguaçu é um deles. Prefeito corrupto da cidade fictícia de Sucupira, fez de tudo para inaugurar um cemitério e concretizar uma promessa de campanha. Roque Santeiro, o herói de uma cidade que após sua suposta morte é canonizado pelos habitantes da também fictícia Asa Branca, é outro. Bem como o poderoso fazendeiro Sinhozinho Malta e sua amante, a viúva Porcina. 

 

Todos eles são criações de Dias Gomes (1922-1999), um dos grandes nomes do teatro brasileiro, dono de um estilo que valorizava as lendas e costumes do interior do Brasil e autor de inúmeras obras que se tornariam clássicas, encenadas e adaptadas para a televisão e o cinema até hoje. Em 2022, comemora-se o centenário do escritor e alguns de seus textos mais importantes voltam aos palcos e às prateleiras das livrarias.

 

É o caso de O Bem Amado, sobre as artimanhas de Odorico Paraguaçu e sua tentativa de manter Sucupira sempre sob seu poder. A peça ganhou uma montagem do diretor Ricardo Grasson com Cassio Scapin (o eterno Nino, de Castelo Rá-Tim-Bum) no papel principal, uma versão musicada com canções escritas por Zeca Baleiro e Newton França que mostra a atualidade do texto original. Outras obras importantes, como sua autobiografia, Apenas um subversivo, estão sendo reeditadas pela editora Bertrand Brasil. Comemorar o centenário do dramaturgo é celebrar uma trajetória que se mescla a um dos períodos mais férteis da produção teatral brasileira.

 

O baiano Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu em Salvador e mostrou interesse pela escrita cedo. Começou imitando o irmão, dez anos mais velho, Guilherme de Freitas Dias Gomes, membro da Academia dos Rebeldes, grupo de intelectuais baianos que incluía Jorge Amado e Mãe Stella de Oxóssi, quinta ialorixá do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2000. Com a morte do pai, foi morar com a mãe e o irmão na casa de parentes, e o incentivo do patriarca da casa foi fundamental para que ele seguisse escrevendo.

 

Chegou a ingressar no curso de direito, mas abandonou a faculdade no terceiro ano. A carreira no teatro começou quando Gomes chegou ao Rio de Janeiro. Com apenas 18 anos, foi se apresentar ao ator, diretor de teatro e dramaturgo Procópio Ferreira e assinou um contrato para escrever peças para sua companhia. Muitos textos se perderam, mas a história conta que Pé de Cabra, sua primeira peça encenada, foi censurada pelo Estado Novo. A alegação era de que o texto tinha muito “conteúdo marxista” – mesmo que o autor nunca tivesse lido uma frase do pensador alemão. Trabalhou no rádio, adaptando clássicos da literatura. Seu trabalho no então popular meio de comunicação só acabou depois que ele foi fotografado ao lado do túmulo de Lenin, na União Soviética. Reportagens da época diziam que ele, então diretor da Rádio Clube do Brasil, havia usado dinheiro público para fazer a viagem, ao lado de Jorge Amado. Foi demitido.

 

Na volta, retomou o trabalho teatral. E foi então que escreveu seus principais textos. Em 1960, lançou O Pagador de Promessas. A trama mostra a jornada do sertanejo Zé do Burro para levar uma cruz até o interior da Igreja de Santa Bárbara, em Salvador, e seu sofrimento para cumprir a promessa. Em 1962, foi adaptada para os cinemas por Anselmo Duarte, e o filme, além de ser a primeira produção sul-americana a receber uma indicação ao Oscar na categoria Melhor Filme Estrangeiro, foi o único longa-metragem brasileiro a conquistar a Palma de Ouro no Festival de Cannes, na França. 

 

O autor escreveu ainda outras peças importantes, como O Berço do Herói, O Santo Inquérito e a própria O Bem Amado, e teve um papel extremamente importante nos palcos brasileiros. “Dias Gomes integrou uma geração de dramaturgos, que inclui Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho. A geração como um todo teve impacto em nossa dramaturgia, pois ela introduziu no Brasil, com maior ou menor consciência técnica, algumas das mais importantes conquistas do teatro épico”, afirma a professora Iná Camargo Costa, autora do livro Dias Gomes: Um Dramaturgo Nacional-popular

 

Mesmo hoje, décadas após terem sido escritos, vários deles continuam muito atuais – o que diz muito tanto sobre a qualidade de seu trabalho quanto para problemas estruturais do Brasil que continuaram sem solução. “Ele olhou para a nossa estrutura de classes, para as nossas iniquidades, para as nossas mazelas, como a corrupção que vem de cima, e tratou de desmascarar uma série de hipocrisias, incluindo a religiosa”, completa Iná.

 

Além de seu trabalho para os palcos, conseguiu levar suas histórias para um público ainda mais amplo por meio da teledramaturgia. Seus principais textos, como O Bem Amado e O Berço do Heró,i foram adaptados em formato de telenovela pelo próprio Gomes. O Berço do Herói virou Roque Santeiro, em versão que foi censurada pela ditadura militar em 1975 e só foi exibida uma década depois, em 1985. Mas foi além. É um dos autores de Saramandaia, uma história ambientada na zona canavieira de Pernambuco, na fictícia cidade de Bole-Bole. Exibida originalmente em 1976, ganhou um remake livremente inspirado no texto original em 2013, que abandonou a ambientação rural. Um de seus últimos trabalhos na TV foi a nova versão de Irmãos Coragem, lançada em 1995. A obra era baseada no folhetim original de 1970 escrito por Janete Clair (1925-1983), com quem Gomes foi casado. Também adaptou Dona Flor e Seus Dois Maridos, clássico de Jorge Amado, para uma série em 1998, e escreveu o roteiro da série Carga Pesada, a versão original exibida entre 1979 e 1980.

 

Embora tenha dito em entrevistas e em sua própria autobiografia que seu principal objetivo ao escrever hoje clássicos como O Pagador de Promessas era construir apenas boas peças, o autor se voltou diversas vezes para a vida do brasileiro comum. Não raro, ambientou suas histórias em comunidades rurais. Mostrou a vida dos trabalhadores, deu espaço para rituais e práticas muitas vezes ignoradas. “Dias Gomes tinha uma capacidade especial de entender o Brasil e os brasileiros. Transformou suas observações e suas preocupações políticas e sociais em obras e personagens capazes de emocionar o público. Do choro ao riso, passando pela farsa e pelo realismo fantástico, transitou por todos os gêneros do teatro brasileiro”, escreveu sua neta, Renata Dias Gomes, na ocasião da estreia de O Bem Amado no Sesc Santana, na capital paulista. 

 

O inevitável contorno político de seu trabalho, que denunciou diversas mazelas do Brasil que persistem até hoje, contribui para a atemporalidade de sua obra. “Desde o século 20 é exatamente a conotação política consciente que assegura a longevidade de uma obra. Isto porque, ao partir de uma avaliação política da realidade do País, o autor dirige os olhos para o que ele tem de pior, a ser criticado, ou ao risível, para o espectador se divertir com as nossas esquisitices. E, quem sabe, pensar no que pode ser mudado para melhor”, diz Iná Camargo Costa.

 

Apesar de sua importância para a dramaturgia, Dias Gomes ainda é menos estudado na academia do que poderia – e deveria. Parte disso se deve ao fato de que o autor era militante do Partido Comunista Brasileiro, e foi rechaçado por parte da intelectualidade. “Sou otimista, acho que, mais dia, menos dia, essa síndrome anticomunista, que também acomete os meios acadêmicos, vai acabar passando e então será possível reconhecer o lugar de Dias Gomes nas nossas letras. Quando isso acontecer, ele será estudado como tantos outros autores que por enquanto estão numa espécie de limbo”, diz a professora Iná. O centenário do autor, celebrado nos palcos e em reedições de sua obra, pode ser um indício de que, de fato, esse reconhecimento vem sendo conquistado.