A China entra em campo

Novo plano estratégico do país para o agronegócio deverá alterar o jogo de forças na produção


21.12.22

Novo plano estratégico do país para o agronegócio deverá alterar o jogo de forças na produção global de alimentos e obrigar o Brasil a rever a sua pauta exportadora

Por Amauri Segalla

Os chineses passaram boa parte das últimas décadas copiando o que os outros países faziam de melhor. Foi assim na indústria de computadores, na produção de carros, na criação de jogos eletrônicos e, mais recentemente, no desenvolvimento de mídias digitais. A ânsia de repetir o sucesso dos inspiradores originais ajudou a consolidar um conceito arraigado na imaginação ocidental, o de que a China é uma “nação imitadora”. Se isso foi verdade durante um bom tempo, agora não poderia estar mais distante da realidade. De tanto investir e se dedicar à inovação, o país despertou um fenômeno inverso: seus produtos é que passaram a ser imitados pelos outros.

A nação da cópia virou o centro global mais pulsante da inovação, e tudo isso resultou em titãs corporativos inigualáveis em força, influência e tamanho. No primeiro semestre de 2022, a BYD superou a americana Tesla como a maior fabricante de carros elétricos do mundo. Desde 2018, a Alibaba lidera o e-commerce global. E atualmente não há rede social que cresça mais do que o TikTok. Em comum, todas elas são conglomerados chineses de ambição desmedida e competência inquestionável, prontas para atacar e, como se viu, superar rivais no Ocidente.

Depois de tornar a inovação tecnológica uma política de Estado, a superpotência emergente se prepara agora para fazer algo parecido – e talvez ainda mais ambicioso – no agronegócio. Em linhas gerais, a ideia central é garantir ao país autossuficiência nas principais culturas – soja, milho, arroz e trigo, principalmente –, tornando-se assim imune às intempéries do mercado global de alimentos. No início do ano, um documento divulgado pelo presidente Xi Jinping deixou produtores de soja de diversas partes do mundo, inclusive do Brasil, bastante apreensivos e mostrou claramente que os chineses vão direcionar esforços, sejam eles quais forem, para esse objetivo. Segundo o Ministério da Agricultura e Assuntos Rurais, até 2025 a nação da Muralha deverá estar pronta para produzir 23 milhões de toneladas do produto. Se a meta for cumprida, representará um acréscimo de 40% em relação aos níveis atuais, de 16,4 milhões de toneladas.

É fácil entender a preocupação dos chineses. O país depende do mercado global para 85% de sua demanda de soja, e as origens de importação são altamente concentradas, especialmente no Brasil e nos Estados Unidos. Além disso, o cenário piorou nos últimos anos. Em 2021, a produção local do grão caiu 16% em relação ao ano anterior, já que alguns agricultores abandonaram o cultivo da oleaginosa e se voltaram para culturas mais lucrativas, como o milho. Para se contrapor a esse cenário, o governo de Pequim expandirá a área de soja plantada, fornecerá subsídios para os agricultores e estimulará a inovação no campo como forma de aumentar a produtividade. Diante do que foi capaz de realizar em outros setores, não é exagero dizer que a China está pronta para virar do avesso o mercado global do agronegócio.

A segurança alimentar na China piorou nas últimas décadas com o aumento explosivo da população ao mesmo tempo que o uso da terra agrícola mudava de grãos para outras culturas. Em 2021, de acordo com dados da Organização das Nações Unidos para a Alimentação e Agricultura (FAO), apenas 33% da demanda total do país pelos três principais óleos alimentares – óleo de soja, óleo de amendoim e óleo de colza – foi suprida pela produção doméstica. Em 1990, o índice era de 100%. “A demanda no país cresce conforme avançam o desenvolvimento econômico, a urbanização e o desejo de uma dieta mais diversificada por parte da nova classe média”, afirma Larissa Wachholz, ex-assessora do Ministério da Agricultura para assuntos da China, senior fellow do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e sócia da consultoria Vallya Agro. “A demanda do mercado chinês é tão grande que, mesmo com números de produção interna que beiram a autossuficiência, a China continua importando para complementar ou diversificar a disponibilidade de alimentos dentro do país.”

O cenário, porém, vale para a fotografia atual, mas como será no futuro?  Embora inúmeros líderes chineses tenham enfatizado a importância vital da segurança alimentar para o país, Xi Jinping foi quem, de fato, tratou a questão como prioridade máxima. Em 2019, a seu pedido, o Conselho de Estado publicou o documento “Segurança Alimentar na China”, que basicamente impôs aos produtores a responsabilidade de fornecer comida para toda a população. “Olhando para o futuro, a China tem condições, capacidade e confiança para promover a segurança alimentar dependendo de seus próprios esforços”, enfatiza o texto.

As principais políticas sobre a produção de grãos concentram-se na necessidade de rendimentos cada vez maiores nas lavouras, a proteção das terras aráveis e o uso mais eficiente da água. Para a analista Trina Chen, do banco americano Goldman Sachs, outro destaque do projeto foi o plano de revitalização da indústria de sementes, considerado fundamental para que o país alcance a autossuficiência. O projeto prevê a adoção irrestrita de sementes geneticamente modificadas (GM), uma iniciativa que vinha sofrendo forte resistência, mas que agora, dadas as urgentes necessidades para alimentar a crescente população, parece inevitável. Por enquanto, as sementes GM são usadas – com reconhecido sucesso, diga-se – na produção de algodão, e certamente outras deverão ser introduzidas nas diferentes lavouras.

Não é de hoje que a China se prepara para ampliar as suas fortalezas no agronegócio. Um ponto de virada foi a compra, em 2016, da gigante suíça de sementes Syngenta pela empresa pública China National Chemical (ChemChina), um movimento que não só respondeu a interesses comerciais como, acima de tudo, estava conectado à estratégia nacional de segurança alimentar. Ao autorizar a aquisição da Syngenta, o Partido Comunista chinês quis aproveitar a experiência da empresa no campo dos pesticidas e organismos transgênicos. A partir daí, a China teve acesso às melhores tecnologias nesse ramo e pôde espalhá-la pelo país.

Se antes, em especial na indústria automotiva, os chineses copiavam o trabalho feito por montadoras de forte presença internacional, no agronegócio decidiu ir direto à fonte, incorporando empresas relevantes. Como não poderia deixar de ser, o Brasil, protagonista do agronegócio, virou alvo dos chineses. “A China passou a agir adquirindo companhias de sementes, de fertilizantes e empresas que negociam os grãos, as tradings”, afirma o engenheiro agrônomo Anderson Galvão, diretor da consultoria especializada em agronegócio Céleres.

Outro grande desafio dos chineses é garantir o acesso a grãos para a alimentação animal e a produção de carne e lácteos. Para alcançar esse objetivo, o país triplicou os investimentos em tecnologia agrícola na última década, conforme estimativas da Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma (NDRC, na sigla em inglês). Entre 2017 e 2021, a taxa de mecanização do cultivo e da colheita aumentou 72% e a expectativa é de que o índice cresça mais de 100% até 2025, puxado principalmente pelos avanços na produção de arroz, milho e trigo. O governo também lançou um programa de financiamento rural que tem por objetivo ampliar os ganhos dos agricultores. Deu certo: nos últimos quatro anos, a renda dos residentes rurais subiu cerca de 30%, o mesmo ritmo observado entre os trabalhadores das grandes cidades.

O desenvolvimento de tecnologias nativas voltadas para o agronegócio se tornou uma obsessão no país. No ano passado, um relatório produzido pela empresa de venture capital AgFunder apontou a China como o segundo maior destino de investimentos em agtechs no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Espera-se que, em 3 ou 4 anos, os chineses ultrapassem os americanos, tornando-se assim, ao menos por esse critério, a nação mais inovadora em se tratando de agronegócio. Em áreas como inteligência artificial aplicada no campo, poucos países no mundo são capazes de rivalizar com a China. Certamente Estados Unidos. Talvez Israel. E só. Aumentar os níveis de produção, mesmo com notáveis avanços em tecnologia, é, bastante desafiador. “Além de terras agricultáveis, os recursos hídricos também são limitados”, diz Larissa Wachholz.

Nenhuma outra nação possui programas tão abrangentes para diminuir os riscos da insegurança alimentar. Para evitar riscos de desabastecimento mesmo em cenários turbulentos – guerra na Ucrânia, crise energética global e problemas de logística, para citar apenas alguns desafios da conjuntura atual –, a China vem ampliando drasticamente seus estoques de alimentos. No primeiro semestre de 2022, os chineses controlaram 69% das reservas de milho do mundo, 60% de arroz e 51% de trigo, conforme levantamento realizado pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA). “A China detém um estoque de alimentos em níveis historicamente altos, que conseguem responder a uma demanda equivalente a um ano e meio”, afirmou Qin Yuyun, responsável pelo departamento de cereais da Administração Nacional de Alimentos e Reservas Estratégicas de Pequim.

Qual o efeito do acúmulo excessivo de reservas? A resposta é óbvia: inflação. Se há menos alimentos disponíveis em diversas partes do mundo, os valores naturalmente sobem. Em 2021, conforme dados da Agência para a Alimentação e Agricultura da FAO, os preços globais dos alimentos dispararam 30%. Outra decisão polêmica do governo de Pequim, a redução da oferta de fertilizantes no mercado global como forma de assegurar o suprimento interno, elevou os preços desses insumos em cerca de 300% nos últimos quatro anos. Em resposta a esse fenômeno, os custos de produção de commoditieis como milho e soja subiram 52% apenas em 2021.

Basta olhar com atenção para os números superlativos da China para entender o seu nível de influência no mercado internacional. Os chineses são os maiores produtores e consumidores de grãos do planeta. Conforme projeção da FAO, quase todas as 585 milhões de toneladas produzidas no país em 2021 (o equivalente a 19,2% da produção global) são absorvidas pela monumental demanda doméstica. A China lidera a produção de arroz, respondendo por 144 milhões de toneladas (28% do volume global), e de feijão, com 24 milhões de toneladas (40% do total produzido no mundo). O grão mais cultivado pelos chineses, contudo, é o milho, com safra de 287 milhões de toneladas (23,4% do total mundial). Apesar do consumo interno de 116 milhões de toneladas de soja, a China produz apenas 16 milhões de toneladas – é somente o quarto maior produtor do cereal – o que explica por que o país quer, a todo custo, ampliar os negócios nesse segmento.

Enquanto a China se protege, o planeta sofre os efeitos adversos, mas esse é apenas um aspecto dos impactos que o novo programa alimentar dos chineses provocará em outras nações, inclusive no Brasil. Por ser a maior potência do mundo no agronegócio, qualquer mudança na escala de produção chinesa causa grande efeito nos mercados internacionais e na cadeia global de alimentos. Para o Brasil, as consequências das ambições chinesas são especialmente preocupantes. A China é o maior cliente internacional do agronegócio brasileiro. Em 2021, o Brasil exportou para lá US$ 41 bilhões, o equivalente a 34% das vendas externas do agronegócio. Além disso, somos os maiores fornecedores de produtos agrícolas para a China, respondendo por aproximadamente 20% de tudo o que o país asiático importa.

Segundo a especialista Larissa Wachholz, a pauta exportadora do agronegócio brasileiro reflete uma grande transformação no país asiático nos últimos anos: o incremento do consumo da proteína animal pela emergente classe média. O crescimento econômico dos últimos anos e o consequente aumento da renda fizeram o consumo per capita de carnes, incluindo bovinos, suínos e aves, saltar de 5 quilos por ano em 1960 para 63 quilos anuais atualmente. Os produtores brasileiros surfaram essa onda, mas será que ela continuará por muito tempo? A julgar pelos novos planos chineses, a resposta talvez seja não. O cenário agrava-se pela declarada intenção dos chineses em diversificar os fornecedores, tornando-se menos dependentes de países-chave como o Brasil.

Se a demanda chinesa diminuir, especialistas alertam que a resposta brasileira deveria ser na mesma moeda. Ou seja: diversificar as exportações agora e cada vez mais no futuro, seja em termos de destino ou tipo de produto vendido ao exterior. A inserção de carnes na pauta exportadora nos últimos anos foi um avanço, mas, de acordo com Larissa Wachholz, é preciso prospectar oportunidades internacionais especialmente nos segmentos de frutas, castanhas e legumes processados. “A maior preocupação por parte do governo brasileiro deveria ser diversificar a pauta de exportação para a China”, concorda Henrique Reis, gerente de Relações Internacionais do Grupo China Trade Center.

De fato, a pauta exportadora do agronegócio é excessivamente concentrada. O Brasil exporta de tudo, mas, em termos de volume, os grãos respondem por cerca de 30% do total. Buscar novos mercados também é um caminho indicado e certamente inevitável nos próximos anos. Para Marcos Jank, professor de Agronegócio Global do Insper, a Europa é um parceiro de tremendo potencial, mas cultivá-lo depende da adoção de fortes compromissos ambientais por parte dos produtores brasileiros.

Não são poucos os desafios para o agronegócio brasileiro. A China se prepara para fechar 2022 com o PIB mais fraco dos últimos 40 anos. É consenso entre analistas que a economia do país não crescerá mais do que 3%, mas alguns bancos, como o britânico Barclays, acham que o número ficará em torno de 2% – isso é quase nada perto dos padrões chineses. A desaceleração da economia chinesa, claro, não é boa para o Brasil. No primeiro semestre, segundo a Secretaria de Comércio Exterior (Secex), o volume de exportações brasileiras para a China caiu 11,5% e o resultado não deverá ser diferente nos últimos meses do ano. Atualmente, a nação asiática responde por 28% das exportações brasileiras. Um ano atrás, a participação estava em 34%. O mundo mudou e o agronegócio brasileiro precisa ser ágil para se adaptar à nova realidade.