A CANA DO FUTURO

Evanildo da Silveira Numa estufa de 250 metros quadrados, instalada no Instituto de Biociências da


28.12.22

Evanildo da Silveira

Numa estufa de 250 metros quadrados, instalada no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), crescem alguns pés de cana-de-açúcar semelhantes a quaisquer outros da espécie. Mas as aparências enganam. Eles são transgênicos e carregam em seu DNA o potencial de revolucionar a indústria sucroalcooleira. A expectativa é que sejam os primeiros exemplares de uma variedade a dar duas safras por ano, a exemplo do milho. Criada em laboratório, por meio de engenharia genética, essa variedade cresce mais rápido e morre mais cedo – o que pode ser uma vantagem – e é capaz de produzir até cinco vezes mais açúcar do que as comuns.

A nova planta está sendo desenvolvida por pesquisadores do Centro de Pesquisa para Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI). Trata-se do projeto Avanços para Cana-de-açúcar e Novas Fontes de Bioenergia, financiado pela Shell do Brasil e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). “A indústria canavieira fica parada durante um período do ano, após a colheita e processamento”, explica o biólogo e coordenador da pesquisa Marcos Buckeridge, do IB-USP. “Isso é bem conhecido e daí imaginamos se não seria possível termos duas safras no ano, mesmo que as plantas ficassem menores, mas que tudo acontecesse mais rápido.”

Um primeiro passo para isso é controlar o seu crescimento e o acúmulo de açúcares. “Temos ainda que entender como alterar as respostas à seca, pois há uma parte do ano com pouca chuva, em que a cana cresce mais devagar”, acrescenta Buckeridge, que é diretor do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) do Bioetanol, sediado no IB-USP. “Se houver irrigação, é possível obter plantas bem maiores e, com isso, aumentar a produção. Mas seria importante também obter mais resistência à seca.” 

De acordo com ele, os programas de melhoramento genético da cana-de-açúcar realizados até hoje já fizeram um “trabalho esplêndido” durante décadas e, por causa disso, existem variedades muito boas. “Mas acreditamos que seja possível melhorar ainda mais”, diz. “Se for, e se tivermos em paralelo o controle do crescimento e do acúmulo de açúcares, poderemos desenhar plantas que se desenvolvam mais rápido e ocupem o campo e a indústria durante todo o ano.”

Para chegar a isso, são quatro passos principais e paralelos, que já começaram a ser dados pelo projeto. O primeiro é conseguir fazer transformações genéticas de plantas de cana utilizando a técnica mais moderna de edição de genomas, chamada Conjunto de Repetições Palindrômicas Regularmente Espaçadas (CRISPR), que rendeu o prêmio Nobel de Química em 2020 para suas desenvolvedoras, a bioquímica norte-americana Jennifer Doudna e a microbiologista francesa Emmanuelle Charpentier.

Buckeridge explica que essa técnica torna possível editar o DNA de qualquer espécie, com um trabalho de “copia e cola” de genes, para alterar regiões selecionadas do genoma e assim alterar o funcionamento da planta. Depois da edição do DNA, os pesquisadores selecionam os mutantes desejados, ou seja, aqueles que crescem mais rápido e acumulam mais açúcares. “Estamos trabalhando em conjunto com o grupo do pesquisador Marcelo Menossi, da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], para estabelecer a técnica de forma a podermos mudar os genes com segurança e eficiência”, conta. As plantas desenvolvidas pela CRISPR não são transgênicas.

O segundo passo é obter a sequência do genoma da cana, que possa ser abordada com clareza pelos pesquisadores. Esta é a missão do grupo de Diego Riaño, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da USP. Com uma abordagem sofisticada de computação, baseada em três tipos diferentes de sequenciamento genômico, a ideia é conseguir o sequenciamento ao nível cromossômico. Apesar de toda a tecnologia usada, não é uma tarefa fácil. A cana-de-açúcar é uma planta híbrida, resultante de uma combinação de duas espécies de gramíneas originárias da China, o que torna seu genoma extremamente complexo. Cada célula da planta tem entre 8 e 12 cópias dele, diferentemente do ser humano, que tem apenas duas.

O terceiro passo é obter um mapa do metabolismo do carbono nos pés de cana, inclusive com os genes relacionados aos mecanismos de controle.  Esse trabalho está sendo feito em conjunto com a pesquisadora Eny Floh. “Nosso laboratório já vem obtendo as sequências completas desses genes”, diz Buckeridge. “Temos mais de 700 que constituem uma espécie de painel de controle do fluxo de carbono na planta. Com o genoma completo e com a técnica de edição dominados, poderemos dar o quarto passo, que é escolher os genes que seriam capazes de transformar a planta e com isso controlar tanto o seu crescimento como o acúmulo de açúcar.”

Apesar de o sequenciamento da cana ainda não estar concluído, o grupo de Buckeridge conseguiu criar a nova variedade transgênica, que está em teste na estufa. Para isso, eles utilizaram sequências longas do genoma da planta, que foram colocadas em Bacterial Artificial Chromosomes (BACs), ou cromossomos artificiais de bactérias. A espécie usada foi Agrobacterium tumefaciens, na qual foi inserido um pedaço de DNA, chamada de “cassete de transformação”, que tem o gene que foi implantado no genoma junto com um promotor (que vai ativar o gene).

 O que foi inserido é um fator de transcrição que acelera o envelhecimento. “Esse gene acelerou o crescimento e acabou levando a um acúmulo maior de açúcar”, explica Buckeridge. “A partir daí, temos que observar as plantas e analisá-las para ver o que a expressão dele causa. Normalmente, começamos com algumas dezenas de plantas transformadas e vamos afunilando, até encontrar aquelas em que a inserção do gene funciona melhor em termos de mostrar as alterações que esperamos. Hoje, temos seis transformantes (plantas transformadas com um gene da própria cana tornado mais ativo por engenharia genética), que foram selecionados durante os últimos quatro anos.”

Mesmo já tendo feito experimentos com essas plantas há quatro anos, só agora os pesquisadores têm certeza absoluta de quais delas são transgênicas entre as que sobreviveram durante esse tempo. Com isto, só agora eles têm um experimento com replicatas, que estão possibilitando aplicar cálculos estatísticos confiáveis. “Nesse experimento bem mais controlado, as plantas estão com seis meses de idade e não temos como avaliar de forma integral os parâmetros de crescimento durante todo o desenvolvimento”, explica Buckeridge.

 Sabe-se que elas estão envelhecendo mais rápido, pois começaram a perder folhas mais cedo e ficaram menores. Em laboratório, as plantas transgênicas atingem de 1 metro a 1,5 metro, o que representa entre 50 e 70% da altura daquelas que não foram transformadas, que podem chegar a 2 metros aos cinco meses. “Sabemos que o efeito é principalmente nas raízes, mas ainda não compreendemos completamente como o impacto sobre elas afeta o desenvolvimento da parte aérea”, diz. “Elas também apresentam bem mais perfilhos (brotação de novos ramos), produzem de três a cinco vezes mais açúcar e completam o seu desenvolvimento mais rapidamente (de cinco a seis meses).”

Ou seja, os pesquisadores já sabem que as plantas transgênicas crescem menos e que completam seu ciclo de vida mais rápido. “Além disso, quando ainda estão jovens, já têm altas quantidades de açúcar”, diz Buckeridge. “Portanto, podem ser aptas para uma estratégia de duas safras. Tudo isso terá que ser testado no campo em maior escala para termos certeza de que funciona. Mas os resultados são bastante promissores.”

Os pesquisadores também estão preparando uma outra transformação, que é nas paredes celulares. Eles a chamam de “cana papaya”, pois acreditam que conseguirão fazer com que as plantas transformadas tenham paredes celulares mais moles e facilitem o processo de produção de etanol de segunda geração (de parede celular). Isso é importante, porque com o aumento da produção de açúcar também vai aumentar o volume de bagaço e palha (biomassa), usados para produzir esse tipo de álcool. 

Diante disso, será necessário terminar o experimento, ou seja, chegar a um ano, para ter uma ideia clara de até onde as transgênicas vão em relação às plantas não transformadas. Depois, os pesquisadores precisam ver como elas se comportam no campo, mas eles acreditam que há a possibilidade de que estas plantas produzam uma safra mais rápida com uma concentração bem razoável de açúcar.

Buckeridge ressalta um ponto que considera importante para o projeto, que será fazer os cálculos de produção por meio de modelagens tanto do crescimento e produção de açúcares pela nova variedade, quanto do retorno econômico dela. “Não sabemos ainda se haverá vantagens caso consigamos ter duas safras”, explica. “Nossa esperança é que, se isso acontecer e os cálculos de retorno econômico derem positivo, ou seja, a soma das duas safras com menor produtividade for maior do que uma única safra, poderemos aumentá-la como um todo e melhorar o impacto sobre o uso da terra. O uso da terra e os cálculos de uma possível diminuição nas emissões de gases do efeito estufa também precisarão ser feitos.”

Como a liberação para uso comercial de um organismo pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) é processo demorado e caro, os pesquisadores pretendem desenvolver uma variedade com as mesmas características da que está em teste usando a técnica CRISPR. Ou seja, uma planta não transgênica. Para isso eles estão apurando seu uso na cana-de-açúcar. 

Para José Antonio Bressiani, diretor de Tecnologias Agrícolas da GranBio, uma empresa de biotecnologia que produz biocombustíveis, bioquímicos e materiais renováveis a partir de biomassa, o projeto do RCGI é interessante. “Ele tem potencial de contribuir enormemente para o aumento da produtividade da cana” avalia. “Com isso poderá verticalizar a produtividade de açúcar, etanol e energia e demais produtos por hectare plantado com a nova variedade, contribuindo para aumentar a competitividade do setor, reduzindo custos de produção e os preços para o consumidor final.”

Além disso, a nova variedade, com paredes celulares mais moles, vai possibilitar a produção de etanol de segunda geração. Para cada tonelada de cana produzida (por cana, entenda-se colmos, nos quais se encontra o caldo açucarado utilizado na produção do açúcar e/ou do etanol), temos cerca de 150 a 250 kg de bagaço e palha”, calcula. “Essa biomassa poderá ser utilizada para a produção de etanol e bioquímicos de segunda geração.”

Se o projeto for bem-sucedido, isso é algo que poderá vir a ocorrer num prazo relativamente curto. “Acreditamos que em cerca de dois anos teremos algumas variedades em teste para validar ou não o que estamos fazendo”, estima Buckeridge. “É difícil dizer quando, pois em ciência nossas hipóteses nem sempre são confirmadas e temos que encontrar caminhos alternativos. Se tudo der certo, acho um prazo de cinco anos razoável para termos prova de conceito [modelo prático que tenta provar o conceito teórico estabelecido por uma pesquisa] de que as duas safras poderiam funcionar.”