Edição 30 - 01.08.22
Nova versão da clássica novela de 1990 estreia com a missão de cativar uma nova geração, levantar a bandeira da preservação da natureza e homenagear a riqueza cultural do Centro-Oeste brasileiro
Quando foi exibida pela primeira vez, em 1990, pela Rede Manchete, a novela Pantanal causou uma verdadeira revolução. Cada elemento ajudou a definir a forma com que os folhetins seriam produzidos a partir de então. As imagens da natureza, de uma exuberância incrível e ainda pouco conhecida por muitos brasileiros, chamavam a atenção muito antes da popularização de canais pagos, como o Discovery Channel, e de programas como o Globo Repórter. A fotografia cinematográfica apresentou uma qualidade antes ausente das novelas. E a história original, assinada por Benedito Ruy Barbosa, apresentou um universo rural que ainda era novidade no horário nobre da televisão. A trilha, as atuações de Cristiana Oliveira, Paulo Gorgulho e Cláudio Marzo e até a vinheta de entrada marcaram época. Agora, 32 anos depois, uma nova versão da história, adaptada para os tempos atuais, estreia na TV Globo com o desafio de captar a atenção do público em um cenário muito mais competitivo e manter vivo o legado da novela original.
“Quando a gente fala de audiência do horário nobre, a TV aberta reinava absoluta no início dos anos 1990. A TV a cabo só se tornou popular na década seguinte”, afirma o crítico de novelas Nilson Xavier. E o próprio Pantanal não era tão conhecido. Se falava muito da Amazônia, mas pouco do bioma da região Centro-Oeste. “Tudo tinha um sabor de novidade. E a trama misturava aventura com fantasia, com lendas da mata, com o que o Pantanal tem de encantado”, diz Xavier. Não à toa, o folhetim foi eleito um dos quatro maiores de todos os tempos e lançou Benedito Ruy Barbosa ao panteão de autores da teledramaturgia.
Agora, os tempos são outros. E isso fica claro na mudança vivida pela própria região. Em 1990, o Pantanal era um dos biomas mais preservados do País e havia perdido menos de 4% de sua vegetação nativa. Em 2019, um levantamento do Instituto SOS Pantanal apontou que a devastação já atingia 15,7% da vegetação nativa. Em 2020, a região também sofreu com as piores queimadas de sua história, de acordo com dados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), naquele ano foram identificados mais de 21 mil focos de incêndio. Muitas das belezas foram preservadas, mas as cabeceiras de rios foram degradadas, e o impacto do fogo na fauna e na flora locais ainda não foi totalmente mensurado.
Os atores que participaram da montagem original e retornaram aos locais de filmagem ficaram surpresos com a mudança. “São 30 anos de muita seca e muito desmatamento. Fica fácil perceber a interferência humana. Espero que a novela traga a reflexão de que precisamos cuidar para que daqui a 30 anos a gente possa ter uma recuperação ambiental”, escreveu o ator Marcos Palmeira nas redes sociais. A atriz Letícia Salles, que vive Filó na primeira fase do folhetim, também disse que ficou triste ao ver o impacto da seca e das queimadas.
Por isso, uma das missões da nova versão da novela é justamente chamar a atenção da audiência sobre os riscos que o bioma corre. Bruno Luperi, responsável pela nova versão da trama e neto de Benedito Ruy Barbosa, afirmou que vai propor essa discussão de forma mais intensa na nova trama e que a versão atual tem uma importância muito maior do que a anterior, lançada há mais de 30 anos, justamente por conta desse impacto de conscientização. Segundo ele, o objetivo é mostrar como o Pantanal é um ecossistema muito delicado. Resta saber como essa conscientização vai se desdobrar em iniciativas de conservação.
A trama que aborda as desventuras de José Leôncio, vivido por Paulo Gorgulho na versão de 1990 e por Jesuíta Barbosa no novo folhetim, terá ainda outro desafio. Na época, a cultura do interior do Brasil ainda não era tão popular no horário nobre da televisão. Mas isso mudou. O próprio Benedito Ruy Barbosa se consagrou como autor ligado ao universo rural. Ele assinou Rei do Gado, em 1996, que abordava temas como a reforma agrária, e Terra Nostra, em 1999, sobre a imigração italiana nas fazendas de café de São Paulo, dois imensos sucessos que ajudaram a consolidar no imaginário popular essa visão do homem do campo como pilar da sociedade brasileira.
Também na década de 1990, o sertanejo começou a ganhar espaço até se tornar o gênero mais popular do País. A trilha sonora da novela tinha canções de Sá & Guarabyra, Sérgio Reis, Renato Teixeira e Almir Sater, e teve papel importante nessa popularização. O violeiro, inclusive, estreou como ator na novela. Ele vivia o misterioso peão Xeréu Trindade e aparecia em diversas cenas tocando viola. Em uma cena memorável, acompanha Sérgio Reis em uma interpretação de Disparada. Em outra, canta e toca Tocando em Frente. Duas de suas músicas, Chalana e Um Violeiro Toca, fizeram sucesso nos discos da trilha e ajudaram a difundir a música de raiz entre o público. Hoje, 30 anos depois, o sertanejo universitário, a sofrência e outras vertentes dominam as rádios e duplas como Maiara & Maraisa e Israel & Rodolffo lotam shows pelo País inteiro.
Essa herança musical será mantida na nova versão. Tanto que Almir Sater ganhouum novo papel, como o chalaneiro Eugênio, e seu filho, Gabriel Sater, vai dar vida a Trindade. Os dois protagonizam um duelo de viola em uma cena noturna gravada em uma fazenda no Rio de Janeiro. A mudança de localização foi feita para evitar os insetos da região pantaneira. Gabriel também é músico, mas seu instrumento principal é o violão. Quando soube da cena do duelo, passou a estudar a viola com mais afinco para não fazer feio, já que seu pai é considerado um dos maiores violeiros em atividade no Brasil.
Há ainda outras brincadeiras de Luperi em conectar o velho e o novo, a tradição e a modernidade. Paulo Gorgulho e Marcos Palmeira, por exemplo, que estavam na versão anterior, também ganharam participações na nova trama. Mas apesar das menções ao passado, o foco é no presente. “Quando uma emissora faz um remakedesses, ela não quer afagar o saudosista. O gênero está fadado à extinção se não agradar ao público, e precisa cativar a nova geração”, afirma o crítico Nilson Xavier.
A briga, agora, é mais acirrada. As plataformas de streaming conquistaram uma fatia importante da audiência, especialmente entre o público mais jovem. E a quantidade de produções inéditas do mundo inteiro que os consumidores têm à disposição é infinitamente maior. Mas a aposta da Rede Globo é na história cativante de Benedito Ruy Barbosa, adaptada para os gostos atuais. “Se antes era tudo uma novidade e não se sabia se a novela seria um sucesso, hoje a emissora tem um caminho mais seguro”, diz Xavier. Os primeiros capítulos foram marcados por bons resultados de audiência. De acordo com dados da Kantar Media, a estreia e alguns dos episódios subsequentes registraram 28,3 pontos, equivalentes a quase 2 milhões de domicílios ligados na novela, apenas no estado de São Paulo. O desafio é manter a atenção pelos 216 capítulos previstos. Além de audiência, o sucesso de Pantanal pode ajudar a mudar a opinião pública sobre a necessidade de conservação de um de nossos biomas mais ricos.