Cada xícara tem uma história

As trajetórias de dois executivos são exemplos de como a indústria do café está se modernizand


26.08.22

As trajetórias de dois executivos são exemplos de como a indústria do café está se modernizando e incorporando novos modelos de gestão

Por Marusa Trevisan.

 

“Já sofri discriminação por questões de gênero.” “Eu sabia que, por mais que eu me esforçasse, eu sempre seria o filho do cara.” As frases são de dois personagens totalmente distintos, mas que se unem na paixão pelo café. E por trazerem frescor à gestão de um setor que já foi sinônimo de tradição no agronegócio brasileiro. Lucimar Silva e Leonardo Montesanto comandam operações com perfis bem diferentes e hoje são reconhecidos como novas lideranças do café. Conhecer suas histórias ajuda a entender o futuro dessa indústria. 

 

A moça do painel gigante

 

É quase impossível passar pela Rua Pedroso de Moraes, na capital paulista, sem admirar e refletir sobre a imagem gigante, de 25 metros de altura, de uma mulher rodeada de pés de café, estampada em um dos prédios do bairro de Pinheiros. Na obra, desenvolvida pelo renomado artista Eduardo Kobra, é possível observar a moça, aparentemente em suas atividades no cafezal, segurando os frutos em suas mãos. A cadeia cafeeira, como grande parte do agronegócio, ainda é predominantemente masculina. Ver a agricultura estampada no meio de um centro urbano e ainda representada por uma mulher nos deixa intrigados: o que está acontecendo aqui? O que essa imagem quer nos passar? Quem é essa mulher?

 

A obra Colheita é tema da campanha “Padrões foram feitos para serem quebrados”, da Nespresso, que chegou ao Brasil neste ano de 2022 para promover um novo sistema da marca. Em parceria com Kobra, o projeto homenageia toda a cadeia de produção do café com o foco na preservação do meio ambiente e no cuidado com as pessoas. A personagem escolhida para representar essa quebra de padrões foi Lucimar Silva – e não foi uma opção aleatória. A moça do painel gigante superou diversos desafios para chegar ao cargo mais alto de uma fazenda de café. 

 

Atualmente, Lucimar gerencia as fazendas São Lourenço e Brasis, do Guima Café, que pertencem ao grupo mineiro BMG. As duas propriedades juntas, localizadas no Cerrado Mineiro, somam 1.300 hectares, sendo 700 ha de café plantado, com capacidade de produção anual de 35 mil sacas do tipo Arábica. As fazendas pertencem à família Guimarães, que começou a cultivar o grão há 40 anos, a partir da iniciativa do banqueiro Flávio Pentagna Guimarães, que apostou todas as suas fichas na cultura, a fim de diversificar os seus negócios. Deu certo. A história do grupo é longa e a Lucimar é uma peça essencial nela. 

 

Ela ingressou na Guima Café há 25 anos, com apenas 14 anos de idade, plantando e colhendo o grão ao lado de sua mãe. De lá para cá, passou por todos os setores das fazendas, desde a lavoura, a cantina, até a área administrativa. “Durante esse percurso, sempre busquei novos conhecimentos. Eu trabalhava durante o dia e estudava à noite. Em 2008, tive a oportunidade de fazer parte da equipe administrativa, atuando na parte de segurança do trabalho e de certificações dos cafés, e, em pouco tempo, eu já estava na coordenação geral do administrativo da empresa. Mais tarde, fui promovida a gerente das fazendas”, explica a executiva, que atualmente responde pelos negócios do ramo da cafeicultura do grupo, atuando na gestão de pessoas, processos, recursos e comercialização dos cafés.

 

Nesse meio-tempo, Lucimar se formou em Administração de Empresas, Segurança do Trabalho, Gestão Agrícola e Magistério, e foi licenciada pelo CQI em Q-Grader e Q-Processing. Ela até buscou diferentes caminhos, ministrando aulas de educação primária e alfabetização de adultos no município de Varjão de Minas e pelo Instituto Libertas de Belo Horizonte. Mas não demorou muito (cerca de três anos) até que a paixão dela pelo café a fizesse voltar para as lavouras. Hoje, Lucimar não se imagina fora da cafeicultura. 

 

Desafios

 

Lucimar conta que, lá atrás, o grupo trabalhava com cafés tradicionais. A crescente demanda por produtos especiais, entretanto, trouxe inúmeros desafios. “Os clientes hoje querem acompanhar a rastreabilidade do café; querem saber de onde vem e como é cultivado o café que estão consumindo. Querem entender a origem desse produto.” Diante deste cenário, há 15 anos, a empresa fez a transição para a produção de produtos especiais, focando em sustentabilidade. 

Foi um desafio treinar e aperfeiçoar os nossos colaboradores para entenderem os novos processos e técnicas agrícolas. Outro dilema foi em torno das tecnologias necessárias disponíveis, o que mudou com o passar do tempo, pois hoje elas estão presentes em tudo – nas novas genéticas do cafeeiro, nos insumos agrícolas, nos maquinários e nos processos de gestão.” 

A empresa optou pela implantação da cafeicultura regenerativa, que visa manter os solos vivos e a saudabilidade de todo o ecossistema. Hoje, 70% dos grãos produzidos nas fazendas são especiais, com certificação pela UTZ e pela RainForest Alliance desde 2008, além do Certifica Minas e do C.A.F.E Practices. As fazendas São Lourenço e Brasis fazem parte do Programa Nespresso AAA de Qualidade Sustentável, que é baseado em três pilares: qualidade, sustentabilidade e produtividade. 

 

Mulheres no campo

 

Atualmente, 20% do quadro de colaboradores do Guima Café são mulheres. Elas atuam na gestão, coordenação agrícola, coordenação administrativa, fiscais de campo, trabalhadoras rurais, recepcionista e cozinheiras. “A empresa sempre teve a cultura da equidade de gênero e as oportunidades são disponibilizadas de acordo com as habilidades, no entanto mais duas mulheres fazem parte da administração das fazendas”, explica a executiva. Para ela, as aptidões femininas são essenciais para o sucesso da empresa. “A mulher tem um olhar aguçado, inovador e uma atenção criteriosa aos detalhes, aspectos fundamentais na produção de cafés especiais. São resilientes e estão sempre prontas a aprender. A comunicação eficiente contribui para a gestão e o fortalecimento das parcerias dos colaboradores e clientes.” 

 

Para quebrar paradigmas e conquistar seu espaço nesse universo, Lucimar investiu em conhecimento. “Qualquer obstáculo referente às questões de gênero é vencido quando dominamos o que nos dedicamos a fazer.” Ela passou a ser referência no agronegócio brasileiro e hoje é Lucimar quem capacita e inspira outras mulheres contando sobre sua ascensão profissional. “Por onde passo, reforço a importância da produção responsável e do estímulo ao consumo ético. Contribuí para dar voz ao movimento da agricultura regenerativa, projetos da cafeicultura sustentável em conjunto com a Nespresso, Stockler e reNature, que são multinacionais com sedes na Suíça, Alemanha e Holanda.” 


Dá para entender agora por que a história de Lucimar foi a escolhida para ser eternizada através da arte, na campanha “Padrões foram feitos para serem quebrados”? Para ela, esse grande presente é a certeza de que tudo valeu a pena.  “Ser homenageada pela Nespresso e por um dos artistas mais talentosos da atualidade, Eduardo Kobra, é emocionante. Ter a força feminina na cadeia do café representada em uma ação tão grandiosa é algo extraordinário, inimaginável em qualquer um dos meus sonhos.” 

Seu legado está lá, estampado e eternizado em uma das ruas mais movimentadas de São Paulo, para inspirar outras mulheres a também correrem atrás de seus sonhos.


O filho pródigo

Não é exagero dizer que corre café pelas veias de Leonardo Montesanto. Assim como Lucimar, ele também cresceu no meio das lavouras e passou por inúmeros obstáculos para conseguir reconhecimento e modernizar a cadeia. No seu caso, a história na cafeicultura é um pouco mais longa, começou bem antes do seu nascimento. Surgiu com o sonho do avô, Aprigio Tavares, de entrar para o ramo, na década de 1950. 

Tavares era comerciante. Comprava cafés de pequenos produtores e vendia para as indústrias de Belo Horizonte. Até investir em sua primeira muda e se tornar cafeicultor. Décadas depois, em 1984, ao lado do filho, Ricardo Tavares (pai do Leo), ele deu um grande passo: assumiu a massa falida da indústria de café 3 Corações. Em menos de 20 anos conseguiu recuperar a empresa e a vendeu para um grupo internacional em 2002. Nesse meio-tempo, na década de 1990, a família criou o Grupo Montesanto Tavares, que hoje atua em 60 países e que, em 2010, iniciou o trabalho focado em cafés especiais com venda forte no exterior.

Leo cresceu nesse ambiente empreendedor. E viveu as pressões que estão inseridas nele. Na adolescência, já como filho de um dos maiores empresários de café do mundo, o rapaz tinha um grande receio de ser comparado ao pai. Então, como ele mesmo diz, brigou com o café. “Eu sabia que, por mais que eu me esforçasse, eu sempre seria o filho do cara”, conta. 

 

Aos 16 anos, Leo decidiu se desvincular dos negócios da família e trilhar seu próprio caminho. Os primeiros passos foram no setor automotivo. Ele investiu em um lava-jato, teve uma loja de carros. Em 2004, já com a experiência em gestão, Leo se mudou para Santos, onde se concentra o maior complexo portuário da América Latina, e montou uma transportadora. Para ele, toda essa vivência em lidar com diferentes públicos foi indispensável para o sucesso de hoje. “Gestão é feita de pessoas certas na cadeira certa.” 

 

Mas o café voltou a chamá-lo. Em 2015, o empresário recebeu o convite para gerenciar as fazendas da família e sentiu-se pronto para encarar o desafio. Foi aí que ele vendeu a transportadora e voltou para suas raízes. “Eu já tinha provado pra mim mesmo e para o mundo que eu tinha capacidade.”

 

Sua gestão à frente das fazendas do Grupo Montesanto confirmou. Ele buscou conhecer a história de cada trabalhador e, a partir de processos de colheita e pós-colheita criteriosos, o grupo conquistou o prêmio de Melhor Café do Brasil pelo Cup of Excellence em 2018 e, depois, o título de Melhor Café do Mundo. 

 

Foi o fecho de ouro de sua curta trajetória na empresa. Ainda em 2018, ele se desligou novamente dos negócios da família para criar a Coffee++. Seu objetivo era não só oferecer bebidas produzidas pelas propriedades Montesanto, mas também originárias de diferentes regiões brasileiras. “Quando me uni aos meus sócios (Pedro Brás e Rafa Terra), firmamos o compromisso de oferecer bebidas com notas sensoriais diferenciadas, produzidas por pessoas com pensamento especial e originárias de produções realizadas em diferentes regiões cafeeiras do Brasil”, afirma.

 

A Coffee++ reúne produtores do Sul de Minas, Cerrado Mineiro e Chapada de Minas que produzem variedades de Bourbon Amarelo, Mundo Novo e Catuaí Amarelo e surgiu com a ideia de oferecer cafés especiais premiados, acima de 84 pontos, que antes eram exportados, mas que agora ficam no Brasil. Hoje, cerca de 90% dessa produção é destinada ao mercado interno.

 

Sem formação acadêmica superior, Leo costuma dizer que todo o seu aprendizado foi com “os pés na lavoura e a vivência com pessoas com pensamento especial”. Atualmente com 38 anos, ele conta que a decisão de criar uma nova indústria não foi fácil, mas que veio com um propósito. “O meu maior desafio até aqui foi deixar de lado o meu emprego dos sonhos como CEO de fazendas e encarar outro sonho. Mas eu acredito no propósito e tenho certeza que o brasileiro está num movimento forte de valorizar o café especial. Temos que fazer os brasileiros acreditarem no potencial do café especial, até porque o paladar não retrocede.”

 

Agora, com a Coffee++ já consolidada no mercado nacional, o próximo passo da empresa é conquistar o mundo. “Iniciamos um processo de venda na Amazon americana com o objetivo de divulgar uma marca brasileira para o mundo. Curiosamente, apesar de os cafés brasileiros já terem invadido o mundo, não há uma divulgação ampla da nossa bandeira”, explica Leo.

 

O clima é de otimismo. No mês de maio a marca lançou o primeiro café orgânico da história da Coffee++. Ele foi pontuado em 89,18 pontos e considerado o Melhor Café do Cerrado Mineiro de 2021. Em junho a empresa iniciou um projeto especial com a Brahma, pela campanha Cremosidade.


Mesmo diante de todo o seu esforço para chegar aonde chegou, Leo valoriza e reconhece o legado deixado pelo avô. Para ele, nada disso seria possível se não fosse aquela primeira muda do avô Aprigio Tavares, há mais de 70 anos. “Meu avô foi essencial para tudo isso”, diz o COO da indústria, com orgulho.