Brasil, paraíso das máquinas?

Avanço de área plantada e preços remuneradores das principais commodities puxam as vendas e tran


22.08.22

Avanço de área plantada e preços remuneradores das principais commodities puxam as vendas e transformam o País no maior mercado do mundo, mas, para próxima safra, custos de produção em alta e desafios relacionados ao financiamento são pontos de atenção 

Os portões da Agrishow, que reúne em Ribeirão Preto as principais fabricantes de máquinas agrícolas do Brasil, nem haviam se fechado e os organizadores já comemoravam: o balanço do evento, realizado no final de abril passado, havia superado R$ 11,2 bilhões em negócios, nada menos que 286,2% acima do resultado da edição anterior, de 2019, a última que foi realizada antes da pandemia. Confirmava-se, ali, uma temporada de vendas como nunca se viu para o setor, conforme já se percebia nas principais feiras regionais realizadas na primeira metade do ano. Juntas, Expodireto Cotrijal, em Não-Me-Toque (RS); Show Rural Coopavel, em Cascavel (PR); e Tecnoshow Comigo, em Rio Verde (GO), movimentaram R$ 18,7 bilhões em intenções de negócios, ou seja, transações concretizadas ou operações encaminhadas.  

São números gigantes, puxados por uma indústria com motores possantes. O mercado brasileiro de máquinas agrícolas está aquecido como poucas vezes se viu na história. O balanço mais recente da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave), que faz o acompanhamento do setor, mostra que, no primeiro trimestre de 2022, as encomendas subiram 30% na comparação com igual período do ano passado. E a base já vinha alta. Em 2021, o Brasil já havia se tornado o maior mercado do mundo para equipamentos de plantio e colheita, graças, segundo o presidente da John Deere na América Latina, Antonio Carrere, ao apetite global pelos alimentos produzidos por aqui. 

“O Brasil foi chamado a aumentar a oferta de alimentos devido a circunstâncias de curto prazo, como a guerra e os efeitos da pandemia”, afirmou Carrere, durante a Agrishow, em entrevista ao site Bloomberg Líinea. “No longo prazo, o mundo exigirá mais alimentos e fibras e o único lugar onde é possível aumentar a produção é o Brasil e a América Latina.”. 

O presidente da Fenabrave, José Maurício Andreta Júnior, concorda. Segundo ele, é o incremento da área plantada, que vem ocorrendo sobretudo em áreas de pastagens, combinado à elevação dos preços das principais commodities agrícolas, o que mantém a comercialização do segmento em expansão. Estatísticas da DATAGRODatagro, por exemplo, apontam que a área de soja no ciclo 2021/22 cresceu 5,1% para 41,23 milhões de hectares, enquanto que a de milho aumentou 9%, chegando a 22,30 milhões de hectares, contemplando os ciclos verão e de inverno. Mais área, mais tratores, colheitadeiras, plantadeiras, pulverizadores etc. 

Outro número que mostra o bom momento do setor é o da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), que aponta alta de 9% do ramo agrícola nos primeiros três meses do ano em relação ao mesmo intervalo de 2021. Para 2022, a expectativa é de avanço de 5% no volume de negócios. De fato, as principais feiras agropecuárias do ano, até o momento, dão sustentação à perspectiva de crescimento. 

“A tendência é de que o cenário continue favorável, pois o produtor está confiante em investir em novas soluções para se tornar mais rentável e sustentável. Existem diversos fatores que determinam o tamanho do mercado de máquinas agrícolas, como a confiança do cliente, preços, custos e a atratividade das taxas de juros para financiamento. A produção de alimentos no Brasil tem um enorme protagonismo global”, destaca o diretor de vendas da John Deere Brasil, Marcelo Lopes. 

Com um olho na linha de montagem e outro no mercado global de commodities, os executivos das montadoras aproveitam o bom momento de preços e estoques internacionais dos principais produtos agrícolas. “Nos últimos anos, não tivemos ciclos baixos porque, por diversos fatores, o volume armazenado de produtos agrícolas esteve baixo, e especialmente o Brasil está atendendo ao desafio de abastecer o mercado mundial de alimentos. Mas, vamos ter ciclo de baixa, só não sabemos quando. E, em períodos baixistas, o agricultor precisa ser mais competitivo, e o que traz competitividade são as inovações”, afirma o presidente da Jacto, Fernando Gonçalves.

O potencial de alta do mercado tem ainda outro componente apontado pelo diretor de Vendas da Massey Ferguson, Alexandre Stucchi: a idade da frota de maquinário agrícola no paísPaís. Segundo diagnóstico realizado pela marca, 39% dos tratores e 48% das colheitadeiras somam mais de duas décadas de serviços, o que sugere uma boa possibilidade de troca por agricultores capitalizados. “A partir desse recorte, é possível perceber a expressiva possibilidade de renovação da frota, seja por desgaste ou por adesão a novas tecnologias, em particular pelo ingresso de novas gerações no campo”, analisa.

Custos, suprimentos e financiamento

Se o tom das projeções dos fabricantes é de otimismo, também há sombras no horizonte do segmento, em particular relacionadas aos aumentos dos custos de produção nas lavouras e ao financiamento. Todos os anos, a divulgação do Plano Safra é, obviamente, sempre cercada de muita expectativa. Mas, neste 2022, a atual e extremamente volátil conjuntura e as transformações em curso na agenda estrutural do crédito rural deixam a expectativa ainda maior.

De acordo com o ex-ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, o Plano Safra 2022/23 tem que ser um “plano de guerra”, já que não estamos, claro, em tempos de paz, com um grave conflito sendo travado no Leste Europeu, que vem descortinando riscos à segurança alimentar global. O contexto é que a invasão da Rússia à Ucrânia acentuou os desarranjos provocados pela pandemia da covidCovid-19 nas cadeias de suprimentos. Ambos os países, por exemplo, são grandes produtores e exportadores de commodities agrícolas (sobretudo trigo e milho), bem como de petróleo, gás e de matérias-primas para fertilizantes, o que faz com que, inevitavelmente, a guerra entre ambos acabe impactando na disponibilidade, distribuição e nos valores destes produtos em nível mundial.

“O setor de máquinas agrícolas não passa incólume a este quadro, e ainda enfrentamos gargalos relacionados a suprimentos, como escassez de semicondutores. Não foi algo totalmente amortecido”, comenta o diretor de mercado Brasil da New Holland Agriculture, Eduardo Kerbauy. 

Neste enredo, se por um lado, os preços pagos, especialmente ao produtor de grãos, registram valorização, ; por outro, os custos agrícolas sobem em ritmo acelerado e, não somente, dos insumos diretos, sobretudo os adubos, mas também os gastos com combustíveis, energia elétrica etc. O resultado? Margens espremidas, o que exige uma gestão do negócio cada vez mais refinada sob todos os aspectos [técnico-operacional, financeiro, jurídico, ambiental, e assim por diante].

Com a iminente alta das taxas de juros do próximo Plano Safra, o custo do financiamento ficará mais caro, inclusive para as linhas destinadas à aquisição de máquinas agrícolas, com eventuais reflexos também nos prazos de quitação e limites de captação. O Ministério da Agricultura negocia com a equipe econômica condições, que possam viabilizar um Plano Safra “robusto”, como já pontuou o titular da pasta Marcos Montes, especialmente em relação a recursos para equalização dos juros.

Entretanto, o cobertor orçamentário é tradicionalmente curto, tutelado pelo teto de gastos, e ficou ainda menor com recente corte promovido pelo executivo para acomodar reajustes de categorias do funcionalismo. O cenário, então, é, no mínimo, de incertezas. O presidente da Câmara Setorial de Máquinas e Implementos da Abimaq, Pedro Estevão, afirma que a questão do financiamento preocupa, “porque o governo tem colocado pouco dinheiro” nas principais linhas de crédito destinadas à compra de máquinas agrícolas, em particular no Programa de Modernização da Frota de Tratores Agrícolas e Implementos Associados e Colheitadeiras (Moderfrota), operado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).

“Nesta temporada 2021/22, tivemos cerca de R$ 11 bilhões para ambos os programas, mas os recursos se esgotaram em novembro de 2021, e o mercado de máquinas agrícolas já faturou mais de R$ 80 bilhões, com o produtor tendo que captar recursos a juros livres, ou seja, empréstimos mais caros para viabilizar as operações”, diz Estevão. Para o Plano Safra 2022/23, o setor solicita R$ 32 bilhões para o Moderfrota e R$ 11 bilhões para o Pronaf. Kerbauy, da New Holland, menciona que, diante desta nova realidade, o produtor vem tendo que utilizar mais recursos próprios, recorrendo ao crédito privado e também apostando na modalidade de consórcio para adquirir o maquinário agrícola. 

Mais serviços digitais 

No jogo corporativo, então, inovar e entregar mais do que o aguardado passa a ser imprescindível, a fim de conquistar e fidelizar o produtor, e as fabricantes de máquinas agrícolas já perceberam isso, investindo cada vez mais na ampliação da oferta de serviços, puxada pelas ferramentas digitais. “A tecnologia digital embarcada no maquinário agrícola passou a ser o grande mote, já que processos e decisões no campo estão cada vez mais vinculados a estas soluções”, ressalta o consultor de negócios de máquinas agrícolas da Totvs para o Brasil Central, Marcos Calcagnoto. “O produtor quer eficiência, e as soluções digitais passam a ser protagonistas para viabilizar este ganho, extraindo tudo da máquina”, salienta, acrescentando que a próxima etapa será ligada a uma automação cada vez maior do maquinário no campo.

O vice-presidente da Case IH, Christian Gonzalez, adianta, por exemplo, que até 2023 todas as máquinas fabricadas pela empresa já sairão da linha de montagem 100% conectadas, em um claro direcionamento à agricultura de precisão digital. De acordo com Marcelo Scharra, CEO da Aceleração de Vendas, empresa especializada em treinamento e desenvolvimento de times comerciais, “em vez de ferro, a hora é de vender soluções”. “As marcas não vendem mais apenas aço e ferro, e o trator é somente um dos produtos comercializados por elas. A mudança em curso está em vender uma solução, seja por meio de uma máquina ou por meio da tecnologia.”

Uma das prioridades das marcas é fazer com que essas soluções não fiquem, no entanto, restritas a grandes produtores. O diretor de vendas Vendas da Valtra, Alexandre Vinicius de Assis, enfatiza que desenvolver tecnologias que ajudem os agricultores de todos os portes a produzir mais em menos espaço e utilizando menos insumos é fundamental, e a indústria de máquinas agrícolas tem se debruçado para trazer inovações, que garantam a eficiência das operações de campo e o crescimento da colheita. “Nos últimos anos, nossos tratores, colheitadeiras, pulverizadores e demais equipamentos passaram a incorporar, por exemplo, recursos de conectividade e automação.”

Em linhas gerais, tratamos aqui do conceito de servitização, que é a transição da produção de bens para oferta de soluções e serviços. Esmiuçando um pouco mais, é o movimento das empresas para agregar valor aos seus produtos, oferecendo serviços e soluções relacionados a eles. Ou seja: a empresa passa a fornecer soluções produto-serviço em vez de comercializar exclusivamente o item. No segmento de máquinas agrícolas, isso envolve serviços não só de manutenção preventiva, economia de combustíveis, como também soluções preditivas do ponto de vista agronômico relacionadas às tarefas de plantio, colheita e assim por diante. 

Nesta jornada de transformação, o diretor comercial Comercial da Fendt para América do Sul, José Galli, pontua que o maior desafio ainda passa por melhorias na conectividade rural – que está sendo gradativamente resolvida. Em termos de pacote tecnológico embarcado, garante, o maquinário agrícola utilizado no Brasil está no mesmo patamar do usado na Europa ou nos Estados Unidos. Afinal, somos hoje o paraíso das máquinas.