Lúpulo com tempero tropical

Com pesquisa, tecnologia e espírito empreendedor, produtores brasileiros adaptam a produção do in


Edição 30 - 18.07.22

Com pesquisa, tecnologia e espírito empreendedor, produtores brasileiros adaptam a produção do insumo que dá sabor às cervejas e mostram que podemos concorrer em qualidade com os líderes globais.

O Brasil é o terceiro maior consumidor mundial e 17º produtor de cerveja, com 14 bilhões de litros fabricados por ano, por cerca de 1,4 mil cervejarias. Dos três ingredientes da bebida (sem contar as leveduras, que são o fermento), malte de cevada, lúpulo e água, apenas esta última não é importada. Do primeiro, 70% vêm de fora, e do segundo 98%. A boa notícia é que o Brasil está começando a produzir lúpulo, o mais nobre dos componentes da cerveja, o “tempero” responsável por seu amargor e aroma característicos. Em 2020, últimos dados disponíveis, a produção dele aumentou 110% em relação a 2019, chegando a 24 toneladas, 50 hectares cultivadas.

É uma gota no oceano, é verdade, pois o Brasil consome cerca de 3,2 mil toneladas anuais da planta. Mas há outra boa notícia: a qualidade do lúpulo nacional é tão boa quanto ao cultivado nos Estados Unidos, na Alemanha e na República Tcheca, três grandes produtores internacionais do ingrediente. “Isso engloba o aspecto químico, que inclui a produção de óleos voláteis, cujos constituintes são responsáveis pelo aroma da cerveja; e de ácidos amargos, (responsáveis pelo amargor da bebida; e ainda o aspecto fisiológico, como o metabolismo, que inclui fotossíntese”, explica o farmacêutico e doutor em Química Orgânica, Fernando Batista da Costa, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da Universidade de São Paulo (USP).

Ele fala com propriedade. Durante dois anos, de 2019 a 2021, com auxílio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Costa e sua equipe pesquisaram a produção nacional do lúpulo. Eles pesquisam especialmente os cones, inflorescências da planta, das quais são extraídas substâncias para fabricação da cerveja. “O objetivo era avaliar a sua aclimatação em clima tropical, no estado de São Paulo”, explica o pesquisador. “Para conseguir isso, nos propusemos a investigar as respostas fisiológicas do vegetal durante dois anos consecutivos e, ao final, avaliar em laboratório a produção de ácidos amargos e de óleos voláteis de material coletado em duas safras.”

 

O local escolhido para o experimento foi o Horto de Plantas Medicinais da FCFRP. “Adquirimos no mercado nacional quatro diferentes cultivares da espécie e o cultivo foi realizado no segundo semestre de 2019”, conta Costa. “Houve colheita de cones no primeiro semestre de 2020 e de 2022, sendo que apenas dois cultivares (Cascade e Chinook) produziram material em quantidade satisfatória. Utilizando nossos modelos de estudo, concluímos que o lúpulo pode ser cultivado em clima tropical, pois as respostas fisiológicas foram satisfatórias e o produto possui qualidade comparável ao equivalente importado, atendendo às especificações da literatura em relação aos teores de ácidos amargos e de óleos voláteis.”

“Ao final, a equipe utilizou os cones dos dois cultivares coletados em 2020 e 2021 para produzir cerveja artesanal em um laboratório de pesquisa da FCFRP-USP. Por fim, com a colaboração de pesquisadores da FEARP-USP, realizamos um estudo de aceitação pelo consumidor, o qual foi realizado em quatro diferentes estabelecimentos da cidade, quando 100 experimentadores compararam as cervejas produzidas com lúpulo de Ribeirão Preto e com o importado dos Estados Unidos.”

Apesar dos bons resultados do estudo, Costa diz que há mais a ser feito. “Acredito que, do ponto de vista agronômico, ainda é necessário estudar com mais detalhes as técnicas de manejo, a fim de se ajustar o cultivo às condições ambientais (clima, solo, água, adubação, por exemplo) de cada região do Brasil”, diz.

De acordo com ele, o lúpulo é uma planta trepadeira, que se desenvolve bem em regiões de clima temperado, preferencialmente em solo arenoso e bem irrigado, e começa a produzir seus cones na época da primavera, e exige alta taxa de incidência de luz, sendo que fica dormente durante o inverno. Ele teve origem como espécie selvagem no norte da Europa e no oeste da Ásia, tendo sido citado pelos romanos no século 1º.

Mais tarde, o lúpulo foi ainda cultivado como planta medicinal em conventos e monastérios europeus nos séculos 8 e 9. Ele surge como cultivo para a produção de cerveja no norte da Europa nos séculos 12 e 13, principalmente na Alemanha, expandindo-se nos séculos subsequentes para a região dos Flandres e depois para a Inglaterra. No século 19 começa a ser cultivado nos Estados Unidos.

Sua utilização como ingrediente de cervejas foi documentada, no entanto, no Egito e na Suméria há mais de 3 mil anos. No Brasil, apenas por volta de 2010 é que as primeiras variedades passaram a ser cultivadas, pois achava-se que a planta não se daria bem em regiões tropicais. “Uma das razões para não se acreditar no cultivo do lúpulo no Brasil era em virtude de sua origem e cultivo em larga escala em regiões de clima temperado, todas no Hemisfério Norte (Europa e Estados Unidos)”, explica Costa.

Por isso, sua introdução inicial no País ocorreu em regiões com clima mais ameno. “Porém, com o estudo de técnicas de cultivo aliado a estudos agronômicos e químicos, incluindo aqueles realizados nas universidades e instituições de pesquisa, fez com que o cultivo se expandisse para regiões mais quentes do País”, diz Costa.

Segundo o publicitário, empresário no ramo de tecnologia e cervejeiro, Marcos Paulo Stefanes Ribeiro, presidente da Associação Brasileira de Produtores de Lúpulo (Aprolúpulo), as plantas vendidas legalmente no Brasil hoje são de origens alemã e americana. “A introdução delas começou em 2009, mas só foi difundida amplamente a partir de 2018, quando foi fundada a associação”, conta. “Teoricamente elas só poderiam ser cultivadas em regiões de clima seco, frio, e em determinadas latitudes, mas vimos que muitas destas teorias não se aplicam ao País, pois já temos produtores em 14 estados da Federação.”

Ribeiro diz que para viabilizar o cultivo do lúpulo no Brasil, foram realizadas muitas reuniões, conversas, estudos e principalmente pesquisas para que se provasse que é uma cultura viável física e economicamente. “As plantas estão se adaptando e, em algumas regiões produtoras, está sendo usada iluminação artificial, com leds, para aumentar a produção vegetal e consequentemente a de cones”, acrescenta.

Costa enumera outros motivos para a expansão do cultivo da planta no Brasil. De acordo com ele, ocorreram vários eventos que contribuíram para isso, desde o avanço de técnicas agrícolas e manejo até a paixão pela produção de cerveja artesanal, processo estimulado pelo alto volume de registro de cervejarias artesanais nos últimos anos. A partir disso, muitos cultivares foram registrados no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e passaram a ser comercializados.

Além disso, Costa diz ainda que a fundação da Aprolúpulo veio estimular e fortalecer a cadeia produtiva. “Teses e dissertações acadêmicas sobre a planta e seu cultivo também começaram a ser defendidas em universidades”, diz. “Recentemente houve ainda incentivo da Ambev, para que produtores iniciassem o cultivo em áreas de Santa Catarina. Tudo isso gera maior visibilidade e aumenta ainda mais o estímulo.”

É o caso do agrônomo e produtor Vítor Vargas, do município catarinense de Palmeira (SC), que começou a produzir lúpulo em agosto de 2018, depois de ter participado da fundação da Aprolúpulo. “Nós, eu e meu pai, adquirimos nessa época nossas primeiras 120 mudas e iniciamos os testes com 40 delas, das variedades Cascade, Chinook e Columbus e mais algumas em menor quantidade”, conta. “Queríamos entender como era o comportamento de cada uma na região.”

Como produtores agrícolas, eles viram na cultura do lúpulo uma oportunidade de negócio. Os dois perceberam o aumento da demanda, principalmente por causa do crescimento do número de cervejarias artesanais. “Também percebemos a busca cada vez maior pela qualidade do produto”, diz Vargas. “Há quatro anos, cultivamos cerca de 1.100 plantas em meio hectare, o maior delas das variedades Columbus, Chinook e Cascade e algumas outras.”

O maior desafio ainda é a produtividade, mas eles têm percebido uma evolução. “Do ano passado para cá ela aumentou cerca de 100% por planta”, relata. “Nós produzimos algo em torno de 200 gramas de lúpulo processado, peletizado, por pé do vegetal, o que está aquém ainda do que se produz no mundo, mas são indicadores bem satisfatórios para um início de projeto.”

Apesar dos custos iniciais serem altos e de ainda não os terem amortizado, pela primeira vez eles vão conseguir pagar as contas e começam a identificar o potencial da cultura. O principal cliente é a Ambev, que apoia a colheita e o processamento. “Nós pretendemos continuar cultivando e aumentar a área da plantação”, diz. “Mas em função da atual conjuntura econômica, talvez não venhamos a fazer neste momento.”

O produtor Ricardo Beolchi de Souza Lima, de Cedral, na região de São José do Rio Preto (SP), também tem planos de aumentar sua lavoura. Hoje ele tem uma lavoura com um pouco menos de mil plantas. “Para crescer, vou automatizar a colheita e o beneficiamento”, revela. “Estou esperando este ano para dar esse passo.”

Ele conta que teve contato com a primeira muda de lúpulo em 2015, 2016, e a partir daí nunca mais parou. “Me apaixonei pela planta, pelos desafios que cercavam o seu cultivo, que até aquele momento era uma incógnita”, explica. “Não existia nenhum produtor no Brasil, a informação era quase que nenhuma. Apenas de artigos ou livros ‘gringos’, que não refletiam a mesma realidade que encontramos por aqui.”

Lima relata que desde então teve de enfrentar muitos desafios. Em 2017, ele se associou à Hops Brasil, empresa do americano Max Raffaele, que produz mudas de lúpulo na região de São José do Rio Preto e as distribui para o Brasil inteiro. “Ele é engenheiro e biólogo, que cultiva a planta em sua chácara nos Estados Unidos há mais de dez anos”, informa. “É um dos pioneiros no Brasil, considerado por muitos o embaixador do lúpulo nacional mundo afora, e entusiasta do produto brasileiro. Eu era seu cliente, comprando mudas, na sua antiga propriedade a ‘Lupulândia’.”

A partir de 2018, quando o lúpulo foi legalizado pelo Mapa, a Hops Brasil já importou 26 cultivares, dos quais é mantenedora no Registro Nacional de Cultivares (RNC). “Hoje temos quatro frentes de atuação”, diz Lima. “Plantação comercial, viveiro de mudas, melhoramento genético, nos Estados Unidos e no Brasil, e biofábrica de mudas in vitro, visando o mercado externo.”

Ele garante que, ano após ano, a empresa foi quebrando paradigmas de que é possível cultivar lúpulo no Brasil, que é viável comercialmente e tem igual ou melhor qualidade que o que vem de fora. “Agora, de dois anos para cá, é um consenso nacional de que todas as cervejarias, sejam elas micro ou as maiores, têm alguma cerveja em sua linha produzidas com o ingrediente nacional”, assegura. “Isso quando elas não estão plantando também, como vem fazendo a Ambev e o grupo Petrópolis, entre outros gigantes do setor.”

Apesar desse entusiasmo dos seus produtores, ainda há gargalos na produção do lúpulo no Brasil. “Além da questão da produtividade e da qualidade da planta, tem também o pós-colheita”, ressalva Costa. “Nos próximos anos certamente teremos uma boa produção de cones de qualidade no País, porém, neste momento, grande parte do material produzido ainda é armazenado na forma de flores.”

De acordo com ele, o produto pode ser armazenado fresco ou congelado, mas requer muito espaço para isso, além de ter menor estabilidade ao longo do tempo. “Os cones ainda dificultam o processo de produção de cerveja, por diminuírem o rendimento e serem capazes de entupir tubulações com fibras vegetais”, diz. “Por isso, as cervejarias e microcervejarias preferem utilizar o lúpulo em forma de pellets(pó altamente compactado) ou extratos concentrados, com o material em flor sendo preterido. Portanto, penso que se poderia investir mais no pós-colheita, em especial na peletização.”