A nova ordem do agro

Guerra na Ucrânia, o crescente poder de influência da China e as exigências ambientais da União


Edição 30 - 08.07.22

Guerra na Ucrânia, o crescente poder de influência da China e as exigências ambientais da União Europeia impõem novos desafios ao agronegócio brasileiro

Em fevereiro de 2022, enquanto a Rússia iniciava os ataques à Ucrânia, o agronegócio brasileiro quebrava um recorde histórico. Naquele mês, as exportações do setor totalizaram US$ 10,51 bilhões, valor 65,8% maior que o alcançado um ano atrás e que correspondeu ao maior volume para o mês em todos os tempos. Como sempre tem ocorrido nos últimos anos, mais uma marca foi batida graças ao impulso avassalador das compras chinesas. Maior importador de soja em grãos do Brasil, o país asiático aumentou em 130% a quantidade comprada, chegando a 4,3 milhões de toneladas – ou quase 70% de toda a produção brasileira exportada. O valor pago pelo produto aumentou 186,6% na comparação com fevereiro de 2021 e cravou o montante também recorde de US$ 2,17 bilhões.

Os números acima retratam um movimento extraordinário para o agronegócio brasileiro. Como poucas vezes se viu, o setor tem surfado o boom das commodities, fenômeno que ganhou tração em 2021 e que segue revigorado em 2022. Isso, claro, é ótimo para produtores, empresas e o mercado em geral, na medida em que expressa, acima de tudo, a capacidade de o Brasil suprir a crescente demanda estrangeira. Dito isso, há outro aspecto que precisa ser considerado: os dados superlativos das exportações representam uma fotografia momentânea do comércio internacional e é incerto que continuarão a crescer na mesma velocidade por muito tempo. Talvez não cresçam. Ou, o que é ainda mais preocupante, pode ser que diminuam com o passar dos anos.
Dois fenômenos em conjunto estão movendo rapidamente as peças do tabuleiro geopolítico e econômico global, o que certamente provocará reverberações no agronegócio. O primeiro deles é a guerra na Ucrânia, que tende a ampliar o poder de influência da China no embate com os americanos pela hegemonia no planeta. Analistas apontam que, como resultado direto do conflito, a China reforçará suas estratégias para alcançar o topo do mundo, ganhando nova estatura nas escaramuças com os Estados Unidos. “O mundo está se movendo em direção à multipolaridade”, disse em entrevista recente Jude Blanchette, analista do Centro para Estudos Internacionais e Estratégicos (CSIS). “O leste está crescendo e o oeste, declinando.” Em outras palavras: os Estados Unidos e seus seguidores no Ocidente perdem poder de fogo diante do surgimento de um oponente poderosíssimo e sedento por espalhar sua influência pelo globo – a China.

O segundo aspecto, este bastante decisivo nas trocas comerciais entre as nações, está intimamente ligado a questões afeitas ao meio ambiente. As demandas globais por desmatamento zero não apenas se intensificarão em um futuro próximo como deverão excluir do jogo quem desprezar esse tipo de compromisso. Não custa lembrar: o segundo maior destino das exportações do agronegócio brasileiro é a Europa, que tem liderado a busca por produtos agrícolas sustentáveis. Observe-se o que diz Niels Sondergaard, doutor em Relações Internacionais e pesquisador sênior do Insper Agro Global: “A maré das demandas ambientais, vinda de governos, atores privados ou das próprias forças da natureza, não vai ceder”. Ele prossegue: “Os países que não se engajarem em mitigar as suas emissões sofrerão pressão externa para fazer isso”.

As ambições da China para se tornar a maior potência do planeta  – até 2030, prevê-se que o PIB chinês, de fato, passe o americano – e as exigências dos grandes compradores de commodities para que produtores cumpram requisitos ambientais cada vez mais abrangentes culminaram em um fenômeno marcante: o agronegócio está prestes a ingressar em uma nova ordem mundial. Mais do que defini-la como boa ou ruim, a verdade é que está aí colocada e os que a ignorarem certamente perderão mercados e relevância na balança agrícola mundial. O Brasil, portanto, precisa se preparar para o futuro, quer goste ou não da nova realidade que inevitavelmente surgirá.

A China, a Rússia e o Asiocentrismo

Os movimentos recentes feitos pela China são um indicativo de que o Brasil não pode se tornar excessivamente dependente dos desígnios da nação da Muralha. Em janeiro último, o governo chinês anunciou que pretende aumentar de maneira acentuada a produção de soja nos próximos quatro anos, o que está em sintonia com o esforço para aumentar a autossuficiência no fornecimento do grão. Segundo o Ministério da Agricultura e Assuntos Rurais chinês, a meta é produzir cerca de 23 milhões de toneladas até o final de 2025, o que representará um aumento de 40% em relação aos níveis atuais.

“A China depende do mercado global para 85% de sua demanda de soja e as origens de importação são altamente concentradas”, disse um documento emitido pela pasta. De acordo com o informe, a China destinará terras especificamente para o cultivo de soja, expandirá os programas de rotação soja-milho e vai se concentrar no aumento do rendimento da leguminosa. O que o governo quer, portanto, é a desconcentração, o que atingiria em cheio os negócios com seus fornecedores.
Os dois maiores fornecedores de soja para a China são Brasil e Estados Unidos, sendo que os brasileiros ocupam o topo do ranking. Não é difícil imaginar, portanto, os estragos que a redução drástica das encomendas chinesas provocaria nas lavouras do País em particular e em toda a economia em geral. Diante de seu poderio, o país dita as regras do jogo, muda eixos do mercado e altera preços de acordo com os seus próprios interesses.
Em 2021, dados da FAO, organismo da ONU que monitora a oferta e distribuição de alimentos no mundo, mostram que os custos de produção de commodities como milho, soja e café subiram 52%.

Algumas razões justificam a disparada, mas há uma em especial: a decisão da China de reduzir a oferta de fertilizantes no mercado global, o que elevou os preços desses insumos em mais de 300% nos últimos quatro anos. O Brasil depende em demasia dos fertilizantes importados – algo como 85% vêm do exterior. Durante a pandemia, o cenário agravou-se. Houve meses, por exemplo, em que a China cortou a zero as exportações de fertilizantes para evitar o desabastecimento do mercado interno.
O desejo da China em produzir itens como arroz, carne, trigo e soja em volume suficiente para suprir a demanda interna e garantir a segurança alimentar de sua população de 1,4 bilhão de pessoas já provoca impactos em alguns setores. No quarto trimestre de 2021, o volume das exportações de carne suína brasileira caiu cerca de 50%, enquanto os preços baixaram 17%. Mas isso é apenas um retrato momentâneo, dado que o movimento de autossuficiência dos chineses está apenas começando. Os impactos tendem a se tornar mais severos na mesma velocidade em que a China aumentar a produção de suas lavouras.

Como reagir a esse movimento? Para especialistas, a palavra mágica é diversificação. “Depender de poucos parceiros aumenta a vulnerabilidade”, afirma Rafael Cagnin, economista sênior do Iedi (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial). Segundo ele, o melhor caminho para reduzir riscos é expandir o número de compradores e de produtos, mas isso não tem sido feito. Muito pelo contrário. Dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços indicam que, em 2021, a China respondeu por 31,3% das exportações brasileiras. Uma década atrás, o índice estava em 17,2%. Entre os principais produtos vendidos aos chineses estão representantes ilustres do agronegócio, como soja e carne bovina.

O contexto, que já era desafiador, ganhou contornos mais alarmantes com a guerra na Ucrânia. Professor de Agronegócio Global do Insper, Marcos Jank afirma que a nova configuração geopolítica beneficia sobretudo o “asiocentrismo”. Com a guerra, afirma Jank, a Rússia reaparece com maior influência no comércio global e sua aliança com a China provavelmente estimulará o crescimento da produção agrícola na região. Isso impõe novos desafios para os produtores brasileiros. No longo prazo, conclui o especialista, Rússia e países da região poderão se tornar grandes concorrentes do Brasil.

No curto prazo, a guerra deverá desencadear uma crise na segurança alimentar de diversos países em proporção não vista desde a Segundo Guerra Mundial, conforme avaliação do Insper Agro Global. Afinal, os dois países envolvidos no conflito são grandes exportadores agrícolas. Juntos, Rússia e Ucrânia respondem por 27% das exportações globais de trigo, 18% de milho e 77% do óleo de girassol. A Ucrânia possui inclusive um dos solos mais férteis do mundo, o chamado chernozem, riquíssimo em matéria orgânica.

A guerra já trouxe impactos significativos na produção – estima-se que 30% das terras agricultáveis do país estejam dentro das linhas de batalha. Além disso, o redirecionamento de combustíveis e mão de obra para uso das Forças Armadas tem neutralizado a capacidade de plantio dos ucranianos.

Batalha no front ambiental

A guerra, contudo, não é o único balizador da nova ordem do agro mundial. As mudanças climáticas elevaram ao grau máximo a preocupação de grandes parceiros comerciais do Brasil com os impactos ambientais do processo agrícola. No ano passado, a Comissão Europeia apresentou a proposta de criação de um sistema de due diligence que, em linhas gerais, deverá banir as importações de produtos associados ao desmatamento. No caso brasileiro, a maior fonte das contribuições para as mudanças climáticas é o desmatamento ilegal. Ou seja: se o País não ajustar às demandas europeias, terá sérios problemas pela frente.

O projeto está em discussão no Parlamento Europeu, com grande adesão de países como França e Alemanha, líderes naturais do bloco. Caso seja aprovado, pode banir o acesso ao mercado europeu de produtos agropecuários oriundos de áreas em que houve desmatamento após 31 de dezembro de 2020. A proposta não distingue a abertura legal ou ilegal de áreas abertas para plantio ou pecuária. Soja, óleo de palma, cacau, café, madeiras, bovinos vivos, carnes, móveis, carvão vegetal, papel e até construções pré-fabricadas de madeira são possíveis alvos da União Europeia, numa lista com valor de exportação de US$ 10 bilhões ao ano que estão ameaçados.

O cenário é duplamente desafiador. De um lado, há o risco de redução da demanda por parte dos chineses, que lançaram um projeto nacional para se tornarem autossuficientes em diversos produtos agrícolas. De outro, existe a pressão cada vez maior da União Europeia para que seus parceiros de negócios cumpram severos requisitos ambientais. Como o Brasil irá se posicionar no novo contexto? A resposta não é simples e exige que os produtores corram contra o tempo, sob risco de perderem o curso da história.

Para enfrentar a provável queda da demanda chinesa, o único caminho é a diversificação das exportações. Nos últimos anos, o Brasil tem tentado ampliar a sua rede de parceiros globais, mas ainda sem resultados efetivos. Japão e Coreia do Sul, por exemplo, já sinalizaram a possibilidade de ampliar as importações de commodities brasileiras. É óbvio, no entanto, que não serão capazes de absorver tudo o que a China compra, dadas as suas limitações demográficas. Uma saída possível é aumentar as transações com a União Europeia, mas isso só será realizável com a completa adequação da agenda ambiental.

Nesse campo, é preciso reconhecer que o agronegócio brasileiro tem ótimos exemplos a apresentar. Estudos recentes mostram que somente 2% das propriedades agrícolas respondem por 62% de todo o desmatamento ilegal. Embora o número de infratores seja restrito, eles muitas vezes acabam comprometendo a reputação de todo o setor – o que não é correto e tampouco justo. De toda forma, interromper as transgressões ambientais é uma questão, acima de tudo, econômica. “Nada é mais nocivo à marca brasileira do que o desmatamento ilegal”, constata Marcelo Britto, presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag).

Ao longo dos anos, o agronegócio não se tornou apenas o braço mais importante do PIB brasileiro, mas também uma força protetora da fauna e da flora do País. A adoção de novas tecnologias, a gestão responsável dos recursos naturais e a busca permanente pelo equilíbrio entre produção e preservação tornaram algumas das lavouras do País símbolos internacionais de respeito ao meio ambiente. “O agro brasileiro é moderno, é um agro do século 21”, frisa Marcos Jank. “Temos a integração lavoura-pecuária, que é uma revolução, desenvolvemos energias renováveis, criamos o Código Florestal. O agro atrasado é uma minoria que tem que ser combatida.” A boa notícia é que, de fato, as grandes propriedades, os maiores produtores e as empresas líderes do setor estão focadas em adotar práticas cada vez mais sustentáveis, o que agradará em cheio os exigentes compradores europeus. Se fizer a lição de casa, o Brasil será inevitavelmente protagonista da nova ordem mundial do setor.