Mais vida na lavoura

Como a agricultura regenerativa tem ajudado produtores e empresas a mitigar os efeitos das mudanças


Edição 29 - 02.05.22

Como a agricultura regenerativa tem ajudado produtores e empresas a mitigar os efeitos das mudanças climáticas.

Os eventos climáticos extremos têm colocado o mundo em alerta, chamando a atenção dos países para a necessidade urgente de adoção de medidas para a contenção do aquecimento global. Neste contexto, um termo da década de 1970, cunhado pelo americano Robert Rodale (1930-1990), voltou à tona. Trata-se do conceito de “Agricultura Regenerativa”, um modo de produção que prioriza a saúde (microbiologia) do solo e uma visão mais holística de todo o processo.

No Brasil, a agricultura regenerativa vem ganhando visibilidade graças ao trabalho de empresas como a Scheffer e a reNature. A primeira é uma das maiores produtoras de grãos do Brasil e foi a pioneira no País a conquistar, no início do ano passado, o selo “Regenagri”, de agricultura regenerativa, emitido pela certificadora Control Union. Com uma área de cultivo de mais de 220 mil hectares espalhados pelos estados de Mato Grosso, Maranhão e Pará, a Scheffer iniciou a produção regenerativa (soja e algodão) em pouco mais de 4 mil hectares. “Começamos há cinco anos porque do jeito que estava não era sustentável. Todo ano tínhamos que aumentar o número de aplicações de químicos”, diz o economista Guilherme Scheffer, diretor financeiro da empresa.

A princípio, o projeto era uma aposta, uma tentativa de evoluir, fazer algo diferente. “Lá atrás, só tínhamos gastos. Se pensássemos só nos custos, não teríamos chegado aonde chegamos”, diz Scheffer. Além do plantio direto, o manejo regenerativo prioriza o uso de insumos biológicos e levou a empresa a investir R$ 35 milhões na construção de uma biofábrica para a produção “on farm” de micro-organismos, que são usados em todas as unidades da empresa. 

Os resultados não demoraram a aparecer. A nova forma de conduzir a lavoura, trouxe de volta os inimigos naturais das pragas e, no solo, a vida começou a desabrochar com o aparecimento de minhocas e fungos. Na safra 2019/20, a aplicação de químicos nas lavouras de soja diminuiu 53% e nas áreas de algodão, 34%. Isso sem alterar os índices de produtividade. A busca por uma agricultura mais equilibrada trouxe uma externalidade positiva em 2021. A Scheffer fechou uma operação de crédito verde de US$ 16 milhões com o Rabobank. “Conseguimos um desconto na taxa de juros que está atrelado a dobrar a área do projeto para 8,1 mil hectares até a expiração do crédito em 2023”, explica o economista.

A reNature, startup holandesa que tem o brasileiro Felipe Villela como um dos fundadores, é outra empresa que tem disseminado o conceito. “Queremos regenerar 100 milhões de hectares, o que significa 2% da área agrícola mundial. Vamos fazer isso apoiando 10 milhões de agricultores na transição para uma agricultura de baixo carbono”, explica o cofundador. 

Mas, afinal, o que é agricultura regenerativa? Trata-se de um sistema de manejo que promove a resiliência climática ao regenerar o solo. “Ser sustentável é reduzir os impactos negativos, ser carbono neutro é minimizar o dano já causado ao meio ambiente”, diz Villela. “Ser regenerativo vai além. É ser carbono positivo, melhorar as condições do ambiente com técnicas como plantio direto, plantas de cobertura que não deixam o solo exposto e retêm água e carbono. Tem a ver com rotação e diversificação de culturas, como o plantio de árvores, arbustos e forrageiras que atraem os inimigos naturais da plantação principal”, acrescenta.

Criada em 2019, a reNature vem ajudando empresas como Nestlé, Danone, Chandon, Tommy Hilfiger a mapear a cadeia de suprimentos e mensurar o impacto da adoção de determinados pacotes tecnológicos na redução das emissões de gases do efeito estufa (GEE). Tal ação está alinhada com dois objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU): agricultura sustentável (2º ODS) e ação contra a mudança do clima (13º ODS). Além disso, a temática está em sintonia com o Pacto Ecológico Europeu, que propõe medidas para a Europa se tornar neutra em carbono até 2050.

 

Semáforo amarelo

O aquecimento global é uma grande ameaça para o mundo, sobretudo para os países produtores de café. No Brasil, modelagens climáticas indicam que, se houver um aumento de 4 °C, importantes regiões produtoras poderiam se tornar inaptas à cafeicultura. Diante disso, em 2019 a Nespresso começou a pensar em como dar uma resposta às mudanças climáticas. Na época, o Brasil estava adiantado na estratégia de sustentabilidade. “Desde 2017, tínhamos cumprido a meta de fazendas com certificação Rainforest e isso nos deu um respiro para pensar o planejamento para 2020 –- 2030”, diz Guilherme Amado, responsável pelo programa de agricultura sustentável da Nespresso no Brasil e no Havaí.

Neste ínterim, ele foi apresentado a Felipe Villela, cofundador da reNature, que atua de diferentes formas para ajudar grandes empresas na transição para uma economia de baixo carbono. “A primeira delas é através de um planejamento estratégico, em que mapeamos a cadeia de suprimento e identificamos onde a companhia pode trabalhar para atingir os indicadores almejados”, diz Villela. A segunda maneira é via assistência técnica. “Implantamos projetos-pilotos em fazendas-modelos para disseminar as práticas”, diz o empreendedor.

O monitoramento do impacto é a terceira forma de ação. “Medimos o carbono sequestrado, os aspectos sociais e, em breve, vamos lançar uma plataforma de Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA)”, explica. A quarta modalidade “stakeholders engagement” facilita o acesso a investimentos e a mercados premium. “Fazemos a ponte com empresas europeias dispostas a pagar um diferencial por produtos regenerativos”, ressalta Felipe.

A parceria da reNature e Nespresso engloba todas as modalidades. “Desde as primeiras conversas, queríamos identificar uma fazenda para criar uma unidade demonstrativa”, diz Amado. Em 2020, o contrato entre as duas empresas foi assinado e, no ano passado, foi dado início ao projeto com nove fazendas do Cerrado Mineiro, região que concentra mil dos 1.,2 mil fornecedores de café da Nespresso no Brasil.

A propriedade-modelo é a Guima Café, do grupo mineiro BMG, que tem 850 hectares de cafezais. Deste montante, 53 hectares são de cafeicultura regenerativa, sendo que 3 hectares foram implantados especificamente para o projeto. “Os 3 talhões ficam numa área com solo e microclima idênticos. No primeiro, plantamos no método convencional, ; no segundo, colocamos plantas de cobertura nas entrelinhas do cafezal; e no terceiro, além das forrageiras, plantamos uma linha de biodiversidade com abacate, cedro e erva-baleeira”, diz Lucimar Silva, gestora da Guima Café.

Segundo o cofundador da reNature, o objetivo é monitorar os impactos relacionados ao sequestro de carbono, biodiversidade, resiliência climática e comparar os dados financeiros. “O quanto cada manejo diminuiu no uso de fertilizantes, quanto aumentou a renda por conta dos abacates. Vamos acompanhar o processo para compartilhar os dados com outros produtores que queiram implementar”, diz Villela.

Paralelamente, a Nespresso tem outras parcerias. Uma delas é com a pesquisadora Madelaine Venzon, da Epamig, que estuda controle biológico conservativo, que consiste no plantio consorciado da lavoura principal com arbustos (erva-baleeira e fedegoso) e árvores (ingá) que aumentam a população de inimigos naturais das pragas do café. 

Outro acordo de peso é com o Ribersolos,  – Laboratório de Análises Agrícolas de Ribeirão Preto (SP), que está conduzindo a amostragem para formação de uma base de dados – baseada na metodologia da microbiologista Ieda de Carvalho Mendes, da Embrapa – que desenvolveu, para outras culturas, uma tabela com níveis de atividade microbiológica do solo. “Daqui dois anos, queremos que ela trabalhe uma tabela semafórica para o café, com indicadores verde, amarelo e vermelho associados à matéria orgânica e à composição do solo, argila, areia e silte”, explica Amado.

 A Nespresso também tem uma parceria importante com o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), que desenvolveu um guia do que seria a agricultura regenerativa para o Cerrado Mineiro. “É uma região estratégica em nível global, porque é a única no mundo que tem mecanização em escala”, diz o líder do Programa Nespresso AAA de Qualidade Sustentável. 

“Os cafés do Cerrado são ingredientes-chaves para grande parte de nossas cápsulas, porque os cafeicultores de lá têm grandes volumes, qualidade, consistência e padrão”, acrescenta. Além disso, os cafés naturais (aqueles que secam com a casca) dão corpo à bebida e seguram o blend com outros cafés com acidez mais alta. “Outra vantagem é que existe disponibilidade de fornecimento, ou seja, compramos menos café do que há disponível. Ainda temos uma margem de crescimento grande”, explica.

Sob medida – A marca premium de café da Nestlé trabalha com um sistema de agricultura regenerativa TaylorMade, customizada para se encaixar ao seu modelo de negócio. “Para a Nespresso, a cafeicultura regenerativa é um modelo de agricultura lucrativa baseada na natureza”, diz Guilherme. “Hoje, o nosso desafio é estabelecer quais os indicadores-chave para monitorar o solo saudável, a biodiversidade, a água, o carbono e os indicadores econômicos”, acrescenta.

A companhia estima que, na sua base de fornecedores, 150 se enquadrariam na nomenclatura de “early adopters”, produtores que estão na vanguarda da adoção das novas tecnologias. Não por acaso, para este ano, a meta da empresa é escalar o projeto de nove para 100 fazendas, implementando quatro práticas agrícolas.  A primeira delas, considerada a mais importante, é o plantio de um mix de seis forrageiras entre as linhas dos cafezais. Cada planta de cobertura tem uma finalidade. O trigo-mourisco atrai abelhas e crisopídeos, um inimigo natural do bicho mineiro. A braquiária tem raízes profundas e ajuda a infiltração da água. “Quando há plantas de cobertura, aumenta a umidade do solo, a evapotranspiração é menor, com isso irrigo menos e aproveito melhor os recursos hídricos”, diz Lucimar.

A segunda é a escolha de cultivares de café mais adaptados às mudanças climáticas, ou seja, mais resistentes ao estresse hídrico. No caso da fazenda Guima, a variedade escolhida foi a IPR 100, que tem tolerância à ferrugem, antracnose e resistência à seca. Já a terceira é a utilização de insumos orgânicos e compostagem com acréscimo de pó de rocha e inoculação de micro-organismos que ajudam a ativar os nutrientes desse resíduo das pedreiras. E a quarta e última é a arborização, que consiste em plantar árvores e arbustos aonde for possível, uma vez que eles reduzem a erosão por vento e fazem um sombreamento parcial que ajuda na maturação dos cafés. “Nossa recomendação é de que haja uma linha de biodiversidade (de árvores) a cada 40 metros. Estamos preparando um guia de espécies, mas a ideia é que tenham um fim econômico, ecológico ou os dois”, explica.

Neste primeiro momento, a Nespresso tem ajudado os nove fazendeiros parceiros com a consultoria e financiamento de árvores, do mix de sementes de plantas de cobertura e das análises de solo. “Para as 100 fazendas, ainda vamos conseguir oferecer recursos, mas quando escalarmos para mil fazendas, esperamos contar com recursos que venham de outras fontes. Não só do prêmio Triple A, mas do mercado de carbono e do pagamento por serviços ambientais”, diz Amado.

É importante lembrar que para a Nestlé atingir a meta de ser Net Zero até 2050, a empresa terá que comprar créditos de carbono dentro da própria cadeia, não mais de projetos externos. “Não consigo enxergar outra solução, a não ser utilizar os solos. É a melhor tecnologia à disposição e, dentro da pegada de carbono global, a produção de café verde tem uma porcentagem significativa, que vem da adubação nitrogenada. O regenerativo tem a ver com isso, com todas estas outras formas de adubação, que diminuem a necessidade de fertilizantes químicos”, diz o líder do Programa Nespresso AAA de Qualidade Sustentável.

Cafeicultura Regenerativa – Fernando Nogues Beloni, produtor de café, batata e cebola na região de Patrocínio (MG) nunca tinha ouvido falar no termo agricultura regenerativa, até que um cliente, um distribuidor francês de cafés especiais, indagou se ele adotava esse tipo de manejo. “Não sabia o que era, disse que iria ver, porque já fazia muita coisa sustentável”, diz.

Ao pesquisar sobre o conceito, descobriu que o sistema implementado nos 400 hectares de café da Agrobeloni se enquadrava como agricultura regenerativa. Ele faz o plantio de forrageiras (capim braquiária, feijão-guandu, milheto, etc.) entre as linhas dos cafezais. Além de contribuir para manter a temperatura do solo mais amena, esta técnica atrai os inimigos naturais das pragas do cafezal, que vem visitar as flores de plantas de cobertura, como trigo mourisco e crotalária. E, ao serem roçadas, a parte aérea dessas forrageiras se transforma em adubo verde, fazendo a ciclagem de nutrientes e diminuindo a necessidade de adubo químico.

Este é um dos pilares da agricultura regenerativa: promover o equilíbrio do ecossistema, ajudando a reduzir a demanda por fertilizantes sintéticos. Neste contexto, uma mudança implementada há cinco anos por Beloni tem feito toda a diferença. “Comecei a fazer compostagem em larga escala com os resíduos das fazendas: palha de café, batata podre, cebola e também compro esterco bovino, esterco de aves, bagaço de cana e pó de rochas regionais”, diz. “Fazemos um blend para a compostagem ter uma relação carbono/nitrogênio ideal”, explica.

Com essa prática, o agricultor reduziu consideravelmente o uso de fertilizantes químicos. “Já não uso adubos fosfatados há três anos, potássio também não coloquei nada este ano. O que fazemos é um complemento do nitrogênio, que só o da compostagem ainda não é suficiente. Mesmo assim, já diminuímos bastante”, diz o cafeicultor, que é cooperado da Cooperativa dos Cafeicultores do Cerrado Mineiro (Expocaccer).

O manejo sustentável ganhou ainda mais força há três anos, quando o produtor implantou uma biofábrica na fazenda para multiplicar fungos e bactérias, que são usados no controle biológico das pragas e doenças da lavoura. “Isso nos fez reduzir o uso de defensivos químicos.”

Mas quando indagado pelo cliente francês, o agricultor não sabia que seu cafezal era regenerativo. Também não conhecia nem um tipo de certificação para esse modo de produção. “Mas, logo na sequência, li uma reportagem do grupo Scheffer, que tinha conquistado a certificação Regenagri, emitida pela certificadora Control Union e fui atrás.”

Em dezembro de 2021, saiu o selo da Agrobeloni, que se tornou a primeira fazenda de café no mundo certificada como agricultura regenerativa. “Ano passado, já tinha vendido toda a minha produção, mas para a próxima safra já tenho pedidos tanto da França como do Japão.”.

Por ser algo novo, Beloni não sabe quanto a mais receberá por esse diferencial. “Cafés com certificação Rainforest costumam receber entre R$ 30 e R$ 50 a mais por saca. Os cafés carbono neutro da cooperativa monteCCer receberam R$ 100 a mais por saca. Acredito que o acréscimo do Regenagri também ficará em torno de R$ 100”, diz.

Por sinal, os princípios fundamentais da agricultura regenerativa, que consiste em não revolver o solo e fazer plantio de forrageiras de cobertura estão muito difundidos na região. Segundo Juliano Tarabal, superintendente da Federação dos Cafeicultores do Cerrado, “de uns cinco anos para cá, a maioria dos produtores tem adotado este manejo”.