Cultura gravada em madeira

Aos 86 anos, o xilógrafo J. Borges continua produzindo as ilustrações que levaram os costumes pop


Edição 29 - 25.05.22

Aos 86 anos, o xilógrafo J. Borges continua produzindo as ilustrações que levaram os costumes populares do Agreste ao resto do mundo, receberam elogios de Ariano Suassuna e o transformaram em Patrimônio Vivo de Pernambuco

Considerado o maior de todos os gravuristas por ninguém menos que o escritor, poeta, dramaturgo e professor Ariano Suassuna (1927-2014), José Francisco Borges ajudou a transpor para as artes visuais alguns dos significados do imaginário nordestino. Tanto que é difícil definir exatamente o que mais chama a atenção em suas obras. Se são as cores vivas, o traço simples, mas imediatamente reconhecível, ou as representações do cotidiano do homem do campo, de costumes populares e de lendas regionais. De qualquer maneira, é impossível não se encantar por seu trabalho.

O que J. Borges, como o artista é conhecido, registra nos blocos de madeira que cria como matrizes para suas obras – uma técnica conhecida como xilogravura – está intimamente ligado a sua experiência de vida. Seu pai, Joaquim Francisco Borges, era um homem do campo e logo colocou o filho para ajudar no trabalho pesado. J. Borges trabalhou em lavouras brancas e colheu cana. Também foi carpinteiro, pedreiro, oleiro e vendedor de colheres de pau que ele mesmo produzia. Conheceu a realidade do agreste, mas também sua riqueza cultural e as histórias fantásticas que seu pai lhe contava antes de dormir.

Com pouco estudo formal, descobriu sua aptidão artística meio sem querer. Com 20 anos, em uma de suas muitas empreitadas, passou a revender o cordel de outros autores. Participava de feiras, dormia em hotéis e acabou se acostumando com a vida um pouco mais tranquila. Tanto olhou para as palavras dos outros que decidiu colocar no papel as próprias histórias. Escreveu O Encontro de Dois Vaqueiros no Sertão de Petrolina, que cativou um editor local e foi publicado em 1964. O original se perdeu, mas o sucesso daquela história, com capa desenhada pelo mestre Dila, apelido de José Soares da Silva (1937-2019), o motivou a escrever mais.

Já no segundo cordel, O Verdadeiro Aviso de Frei Damião Sobre os Castigos que Vêm, como forma de economizar dinheiro sem abrir mão da ilustração, decidiu arriscar. Pegou um pedaço de madeira e, usando uma faca – e os conhecimentos adquiridos como carpinteiro –, baixou o relevo, desenhando uma igreja, inspirada na matriz de Bezerros, sua cidade natal, no interior de Pernambuco. Levou a peça a uma gráfica, viu a tinta ser aplicada e o desenho ser transposto para o papel. Gostou do resultado. Mandou imprimir o cordel ilustrado e foi vender, ele mesmo, as próprias histórias.

Continuou escrevendo e ilustrando até que chamou a atenção de outros cordelistas. Passou a aceitar encomendas e produzir gravuras. Foi assim que aperfeiçoou sua arte, desenhando pessoas, animais, seres imaginários, naturezas-mortas… Tudo o que os outros autores precisavam. Vendia as matrizes em madeira a preços baixos e conquistava uma clientela crescente.

No início dos anos 1970, uma série de coincidências fez com que sua obra alcançasse uma projeção inédita. José Maria de Souza (1935- 1985) e Ivan Marquetti (1941-2004), dois artistas plásticos do Rio de Janeiro que ficaram encantados pela arte de J. Borges, apresentaram suas gravuras para Suassuna. O escritor chamou o artista para a Universidade Federal de Pernambuco, onde lecionava, com o objetivo de conhecer de perto o homem por trás daqueles desenhos. Lá, armou uma entrevista coletiva improvisada com alguns jornalistas como forma de divulgar seu trabalho, apresentando-o como o melhor xilógrafo do Nordeste. Foi assim que J. Borges deu entrevista para veículos impressos e para redes de TV. Logo na semana em que as reportagens foram veiculadas, ele começou a receber compradores interessados em seus desenhos. “E depois disso nunca mais tive sossego na vida”, brinca ele.

Passou a produzir gravuras maiores e adicionou cores aos desenhos, uma verdadeira mudança, já que nos cordéis as ilustrações são monocromáticas. Em plena ditadura, participava de feiras, escapava da censura e das patrulhas em busca de materiais subversivos ao explorar temas mais amenos e pouco ligados à política. A fórmula deu certo e ele participou de exposições e foi convidado por galerias a mostrar seu trabalho.

Borges nunca abandonou sua cidade natal, Bezerros, no interior de Pernambuco. Mas sua arte ganhou o mundo. Suas gravuras já foram expostas em museus internacionais, como o Louvre, em Paris, na França, o Museu de Arte Popular do Novo México, em Santa Fé, e o Museu de Arte Moderna de Nova York, ambos nos Estados Unidos. E continuam viajando por aí. Até o final de fevereiro, o Museu de Arte do Rio (MAR) exibiu 40 xilogravuras, sendo dez obras inéditas, 10 matrizes inéditas e as 20 obras mais importantes da sua carreira.

Em 2002, J. Borges tornou-se o único brasileiro a participar do Calendário da Organização das Nações Unidas. Foi tema de reportagem do The New York Times. E também coleciona reconhecimentos e prêmios nacionais e internacionais, como a medalha de honra ao mérito da Fundação Joaquim Nabuco, em 1990, e o Prêmio de Gravura Manuel Mendive, na 5ª Bienal Internacional Salvador Valero, na Venezuela, em 1995.

Suas obras já estamparam capas de livros – de títulos de Eduardo Galeano (1940-2015) e José Saramago (1922-2010) a edições comemorativas de Dom Quixote e dos Contos dos Irmãos Grimm. E continuam ganhando novos significados. No dia 19 de fevereiro, uma obra original, com desenhos que remetem às feiras livres, foi aplicada em um modelo de tênis pela marca Ous, conhecida pelos modelos para skatistas, em uma parceria com a loja Guadalupe, de São Paulo. A edição, limitada a 240 pares, marcou a estreia de seus desenhos em um calçado. É um exemplo da versatilidade e do apelo universal de seus traços.

Em mais de 60 anos de carreira, J. Borges produziu 314 folhetos de cordel e um número muito maior de xilogravuras. Continua produzindo, embora em um ritmo menor. Os cordéis, que ele chama de “jornalismo da zona rural”, são feitos apenas sob encomenda. Continua escavando os blocos de madeira sozinho, em seu ateliê, em Bezerros, em um amplo espaço em que fica cercado pelas matrizes. Conta com ajudantes para colocar a tinta e aplicar o papel nos moldes originais, e tem ainda gente para cuidar de suas redes sociais e vender os desenhos pela internet. Além do ateliê, o Memorial J. Borges conta com espaço para oficinas e um museu. E as reproduções são vendidas a preços acessíveis – uma exigência do artista. Mais do que uma obra de um dos maiores artistas do mundo, cada colecionador leva para casa um pedacinho da cultura popular brasileira.