O verde dá as cartas

No passado, bastava ao agronegócio produzir itens de qualidade, mas agora isso tornou-se insuficien


Edição 29 - 29.04.22

No passado, bastava ao agronegócio produzir itens de qualidade, mas agora isso tornou-se insuficiente. Para responder às pressões do mercado, é preciso ser cada vez mais sustentável.

No final de janeiro passado, a gigante suíça de alimentos Nestlé divulgou um plano ambicioso de combate ao trabalho infantil na cadeia de cacau, fruto utilizado em boa parte de seu portfólio. Até 2030, a empresa pretende que US$ 1,4 bilhão cheguem a 160 mil famílias produtoras do oeste da África, especialmente na Costa do Marfim e em Gana, de onde saem cerca de 60% do cacau consumido no mundo. Em contrapartida, as famílias deverão adotar boas práticas agrícolas e estimular as crianças a frequentar a escola. “Nós vamos ajudar a garantir a confiança do consumidor em nossos produtos e responder à crescente demanda por cacau comprado com responsabilidade”, ressaltou Magdi Batato, vice-presidente executiva da Nestlé.

A Nestlé não incorporou em sua rotina ações como as apresentadas acima porque é uma empresa que se propõe a fazer o bem pura e simplesmente. Tal propósito certamente está por trás do movimento, mas o impulso para que o conglomerado se mobilizasse veio da própria sociedade. Nos últimos anos, a pressão para que as empresas deixassem de comprar cacau produzido em regiões que exploram mão de obra infantil partiu de Ongs ONGs de defesa dos direitos humanos, ganhou volume nas redes sociais e chegou às manchetes de veículos como o jornal americano The New York Times e a revista britânica The Economist, ambos de enorme influência no mundo. O tema sensível estava assim colocado na mesa, e ninguém – especialmente as empresas sérias – poderia ignorá-lo.

Para continuar sendo bem-sucedida, a Nestlé percebeu que era preciso dialogar com os novos tempos. Isso explica os enormes investimentos que a companhia faz e os inúmeros projetos que possui no campo da sustentabilidade, talvez a área mais relevante para o mundo corporativo neste século XXI21. Se, no passado, bastava às empresas produzir itens de qualidade, agora isso tornou-se insuficiente. Estar bem- posicionado exige atenção permanente, interação profunda com o mercado e reação rápida às demandas da sociedade. Expostas como nunca, as empresas descobriram a força implacável que vem do outro lado do balcão – o lado do consumidor. “No mundo digital, o poder do consumidor saiu da esfera regional e chegou ao planeta inteiro”, diz o consultor Eduardo Tancinsky. “Uma pressão que é feita na Europa, como o boicote a produtos brasileiros que devastam a Amazônia, pode levar a prejuízos em fazendas, digamos, no Mato Grosso.”

CARBONO NO CARDÁPIO

Um mecanismo importante para combater os malefícios ambientais é o mercado de crédito de carbono. De maneira geral, o crédito de carbono pode ser compreendido como a representação da não emissão de dióxido de carbono na atmosfera. A cada uma tonelada não emitida gera-se um crédito, que pode ser comercializado com países ou empresas que eventualmente não cumpriram suas metas ambientais. A gigante de produtos de higiene e limpeza Unilever e a varejista Amazon são exemplos de organizações que se comprometeram a tirar dinheiro do caixa para compensar as suas emissões. Como não poderia deixar de ser, o Brasil, palco da Amazônia, pode faturar alto com esse tipo de operação. Segundo estudo da ICC Brasil e Way Carbon, o potencial do mercado brasileiro é de US$ 100 bilhões em receitas até 2030.

A pressão vem de todos os lados, inclusive da mãe de todas as instituições que buscam o desenvolvimento mundial – a ONU. Segundo dados apresentados em um dos painéis do Pacto Global, a indústria têxtil é uma das mais poluentes do mundo. Ela responde por cerca de 10% das emissões globais de CO2 e por 20% da poluição de águas de rios. Além disso, 23% do consumo global de químicos é feito pelo setor e 5% de tudo o que se deposita em aterros sanitários são roupas.

Diante de dados tão devastadores, e da crescente pressão para que se mude esse quadro, o grupo catarinense de moda Malwee decidiu agir. O maior impacto que sua atividade gera em emissões é proveniente da chamada cadeia de valor. Segundo a engenheira Taíse Beduschi, gerente de sustentabilidade Sustentabilidade da Malwee, as matérias-primas são a principal fonte de problemas. O algodão, que responde por 70% das fibras usadas pela Malwee, é apontado, ao lado do couro bovino, como um dos grandes vilões ambientais do setor de moda no mundo, o que se deve sobretudo às elevadas emissões de carbono e ao alto consumo de água nas lavouras.

Recentemente, lembra a executiva, a empresa começou a comprar algodão com o selo Better Cotton Initiative (BCI), que certifica melhores práticas na produção do algodão. Até 2030, a Malwee pretende rastrear 100% de toda a sua cadeia de fornecimento. Isso inclui o monitoramento completo das atividades de seus fornecedores, como eventuais violações trabalhistas. Com isso, a companhia não apenas contribuiu para a preservação do planeta e para o aprimoramento da agenda social do País, mas escapa de ser alvo de críticas. “A sociedade exige cada vez mais padrões elevados de sustentabilidade em todas as atividades produtivas, e o mundo corporativo deve estar atento a essas demandas”, diz Tancinsky.

A cobrança chega a todas as camadas empresariais. Uma das maiores grifes de luxo do mundo, a americana Ralph Lauren também está preocupada com a sustentabilidade da cadeia do algodão. Em parceria com a conterrânea Dow, a principal indústria química do planeta, desenvolveu um método de tingimento de algodão mais sustentável. Segundo as duas gigantes, o tratamento conhecido como EcoFast Pure reduz significativamente a quantidade de água, de produtos químicos e de energia necessários para o tingimento das fibras. O objetivo, conforme alegam as empresas, é enfrentar desafios urgentes, como as mudanças climáticas e a crescente escassez de água.

Projetos como o da Ralph Lauren são importantes para reduzir impactos ambientais, mas o rastreamento da cadeia produtiva talvez seja a chave para que as empresas ligadas de alguma forma ao agronegócio protejam a natureza. Três dos maiores frigoríficos do Brasil – JBS, Marfrig e Minerva – afirmam manter sistemas de monitoramento que verificam o cumprimento da política ambiental de seus parceiros. O grande desafio, porém, é monitorar os fornecedores de seus fornecedores, já que nem sempre as empresas têm informações sobre eles.

CRÉDITOS DE COURO

Couro, por exemplo, é muito difícil de rastrear. Como ocorre na cadeia de carne, o ponto de partida para farejar a origem do couro é o gado. No Brasil, dono do maior rebanho bovino do mundo – são mais de 200 milhões de cabeças –, há muitos caminhos obscuros. Metade desses animais está na Amazônia, onde muitos produtores burlam leis ambientais para vender, com aparência de legalidade, o gado que ocupa áreas desmatadas. Uma prática conhecida é a “lavagem de gado”, a transferência de animais de fazendas ilegais para outras que são autorizadas a fazer a venda final, método que geralmente dribla os sistemas de monitoramento.

Em recente reportagem publicada pelo The New York Times, JBS e Marfrig disseram que pretendem rastrear todos os seus fornecedores indiretos na Amazônia até 2025. Por sua vez, a Minerva declarou que a meta é ter cadeias de suprimentos totalmente rastreáveis na América do Sul até 2030. Se cumprirem o prometido, as empresas darão notável contribuição para o planeta. Caso contrário, estarão sujeitas ao escrutínio – e ao boicote – de parceiros comerciais, sejam eles governos ou redes de supermercados. E, claro, entrarão na mira de consumidores furiosos.

O novo compromisso das empresas revela como, de fato, o jogo mudou. Os verbos “produzir” e “devastar” não podem mais estar na mesma página, sob o risco de as empresas sofrerem os efeitos adversos da pressão da sociedade. No final de dezembro, seis redes europeias de supermercados anunciaram a decisão de não vender mais carne bovina de origem brasileira até que se prove que ela efetivamente não veio de áreas de desmatamento.

Não é de hoje que se fale fala em boicote a produtos que degradam a Amazônia. Uma das primeiras ações desse tipo partiu do McDonald’s. No distante 2006, a rede de lanchonetes – que ironicamente sofre diversas formas de pressão por trabalhar com fast-food – anunciou a suspensão temporária da compra de soja brasileira por causa do desmatamento. Em 2019, grandes marcas internacionais de vestuário como H&M, Kipling, Timberland, Vans e The North Face interromperam a compra de couro do Brasil em meio à forte repercussão internacional das queimadas na região amazônica.

De fato, há sérios entraves a resolver, mas é preciso reconhecer que o Brasil tem bons exemplos a apresentar. No ano passado, o couro sustentável da JBS, chamado Kind Leather, recebeu a melhor nota do setor no Higg Materials Sustainability Index (Higg MSI), que certifica matérias-primeiras primas utilizadas na indústria da moda. Para a obtenção do selo, são avaliados aspectos como uso racional de água, eliminação de combustíveis fósseis e redução de produtos químicos. Segundo a JBS Couros, seu sistema de produção remove, logo no início do processo, as partes do couro que seriam pouco aproveitadas para então direcioná-las a outras indústrias, como farmacêutica e de alimentos. Com isso, a empresa transforma resíduos em matéria-prima, contribuindo para a sustentabilidade de toda a cadeia de valor.

Em outra frente, mas também na cadeia de couros, um projeto- piloto liderado pela Textile Exchange, através do programa Leather Impact Accelerator (LIA), pretende testar a ideia de se criar um mercado mundial de créditos de couro responsável, combatendo o desmatamento e incentivando a adoção de práticas de bem-estar animal. Pelos próximos três anos, com o apoio de grifes internacionais como a sueca H&M, a entidade, que reúne as principais empresas da moda no mundo, vai aplicar o modelo em propriedades da Amazônia e do Cerrado. A Produzindo Certo, empresa especializada em levar assistência técnica de sustentabilidade ao campo, será a responsável pela implementação do piloto junto aos pecuaristas.

“Queremos demonstrar como produtores conseguem passar a atuar como agentes de conservação quando devidamente remunerados”, afirma Charton Locks, diretor de Operações da Produzindo Certo. No projeto, o pecuarista que demonstra compromisso e responsabilidade na produção a partir de um protocolo determinado, sem desmatamento e com bem-estar animal, faz jus a um crédito de couro, calculado a partir da quantidade de animais que estiveram na fazenda durante o ano. “O modelo é semelhante ao que já acontece em mercados como o da palma, da soja e do carbono, por exemplo”, diz Charton. “A marca não estará comprando o couro diretamente do produtor, mas o remunerando pela quantidade que necessária para compensar parte do uso de couro na fabricação de seus produtos”.

COMMODITIES COM ALGO A MAIS

A cafeicultura brasileira também está atenta à nova realidade. Atualmente, o País conta com vários certificados de sustentabilidade, mas o Conselho dos Exportadores de Café do Brasil (Cecafé) pretende ir além. O objetivo da entidade é que o setor seja reconhecido como cultura de baixa emissão de carbono (CO2), um dos principais gases causadores do efeito estufa. Em 2021, o Cecafé iniciou um programa voltado à aferição do gás carbônico nas lavouras. Chamado de Projeto Carbono, seu objetivo é demonstrar quanto a cafeicultura brasileira está contribuindo para a redução das emissões de gases associados às mudanças climáticas. A primeira etapa, iniciada no final do ano passado, consistiu em avaliar 40 fazendas cafeicultoras em Minas Gerais.

Há inúmeros projetos em andamento. Todas as mil fazendas brasileiras que fornecem café para a Nespresso, uma das unidades de negócios do Grupo Nestlé, fazem parte do programa AAA de Qualidade Sustentável. Graças a essa iniciativa, realizada em parceria com a Rainforest Alliance, os cafeicultores têm acesso a técnicas que levam à produção de grãos de alta qualidade, mas com a adoção permanente de técnicas sustentáveis.

Maior celeiro de soja do mundo, o Brasil está na vanguarda global quando o assunto é produção sustentável. O País lidera a lista dos países com maior produção de soja certificada, com aproximadamente 3,7 milhões de toneladas. Três estados – Mato Grosso, Rondônia e Pará – concentram os exemplos positivos. Juntos, eles abrigam 89 propriedades que possuem o selo RTRS (Mesa Mesa-Redonda sobre Soja Responsável, na sigla em inglês), iniciativa internacional na qual produtores, comerciantes e processadores de soja trabalham em conjunto com bancos e organizações sociais para assegurar o cultivo de soja sustentável e a responsabilidade social do setor. Juntas, as fazendas perfazem um total de 1,7 milhão de toneladas de grãos em capacidade produtiva.

Mas, afinal, por que a certificação é importante? Com o selo, a região se beneficia principalmente pela facilidade no escoamento da produção para a Europa. “A exportação rastreada facilita as transações com empresas compradores compradoras que buscam a certificação”, aponta Cid Sanches, consultor externo da RTRS no Brasil. Em outras palavras: ela, em suma, se contrapõe a eventuais pressões do mercado. O mundo mudou. Produzir com sustentabilidade passou a ser a principal demanda da sociedade, que exige compromissos ambientais e sociais cada vez mais firmes. E não há dúvida: o agronegócio é protagonista desse movimento.