Edição 28 - 28.02.22
Projetos de gestão hídrica e de preservação de nascentes transformam fazendas em ativos estratégicos para enfrentar estiagens cada vez mais severas
O Brasil possui 12% da água doce do mundo. A abundância não significa, entretanto, que o recurso hídrico está disponível de forma equânime em todos os cantos do País. Prova disso é o semiárido, região em que a agricultura só é viável por causa da irrigação. Mas a conjuntura atual, caracterizada pelas mudanças climáticas e pela pior crise hídrica dos últimos 91 anos, acende um alerta: é imprescindível uma boa gestão dos recursos hídricos.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), as áreas que contam com algum tipo de sistema de irrigação em todo o mundo representam pouco menos de 20% do total de cultivo, mas contribuem com 40% da oferta de alimentos, fibras e biocombustível. Isso evidencia a importância do recurso para a segurança alimentar e nutricional da população mundial. Em território nacional, a irrigação possibilita, por exemplo, que algumas regiões tenham três safras no mesmo ano.
O Brasil está entre os dez países com a maior área irrigada – ocupa a sexta posição com 8,2 milhões de hectares, atrás de China, Índia, EUA, Paquistão e Irã. E há possibilidade de expansão. De acordo com um levantamento de 2019/20, feito pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Regional e a Esalq/USP, da área total hoje ocupada no País com agricultura e pecuária, 22% tem potencial efetivo de irrigação. Em números, isso representa uma área adicional de 13,7 milhões de hectares, sobretudo no Centro-Oeste (45%), Sul (31%), Nordeste (2%) e Norte (2%).
Há, no entanto, barreiras a ser superadas. Uma delas é aprimorar o manejo hídrico. “O Cerrado Mineiro é dependente de irrigação. Mas são raros os produtores rurais que têm um manejo apurado. A maioria, enquanto tem água, está molhando”, diz Oséias Mendes, coordenador de projetos do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), que trabalha com os cafeicultores da região. Outro gargalo é a falta de dados sobre o uso da água. Isso acontece porque vários comitês de bacias hidrográficas – comissão com múltiplos participantes que, segundo a política nacional do setor (instituída pela Lei 9.433, de 1997), deveria gerir os recursos hídricos – em muitos lugares ainda engatinham.
Exemplos positivos são, por outro lado, cada vez mais comuns. O protagonismo de produtores rurais tem feito a diferença e acarretado em um aumento da produção de água no período da seca. Também há iniciativas de plataformas, como a da Produzindo Certo e do Consórcio Cerrado das Águas, construindo um caminho para a melhor gestão dos recursos hídricos. Em comum, elas têm o objetivo de fazer um raio X das fazendas e das bacias hidrográficas em que estas propriedades estão inseridas para conseguir, no médio prazo, saber o quanto o incremento da produção agropecuária impacta na disponibilidade de água. E, uma vez comprovado que os agricultores contribuem para aumentar a oferta hídrica, ter parâmetros sólidos para apresentar ao mercado e atrair investimentos e Pagamento por Serviços Ambientais (PSA).
Fábrica de água
Muito antes do tema PSA vir à tona, Marco Túlio Paolinelli, produtor rural do Triângulo Mineiro, já se dedicava a recuperar minas (nascentes d’água), plantar árvores e aplicar técnicas de manejo para conter as voçorocas, grandes erosões no solo causadas pela ação das águas das chuvas. Dono de oito fazendas na região, desde 1983 o engenheiro agrônomo faz curvas de nível – que auxiliam a água da chuva a escoar de forma mais mansa, o que protege o solo e evita a erosão. Ele também abre bolsões interligados, que retêm e ajudam a infiltrar o recurso hídrico no solo.
Na fazenda São Francisco, de 885 hectares, foram feitos 20 quilômetros de curvas de nível e 800 bolsões. Tal manejo resultou no que ele denomina de uma “Fábrica de Água”. A propriedade abriga uma Área de Proteção Ambiental (APA) do Rio Uberaba, por onde passam os córregos Borá e Borazinho, que são responsáveis por 16% da captação de água do rio. “O Borazinho costuma ter uma vazão de água bem menor que o Borá. Mas fizemos curvas de níveis e bolsões nos arredores do Borazinho, que – no tempo da seca – passou a ter mais água que no Borá”, diz Paolinelli, que há alguns anos começou a fazer a medição da vazão dos córregos. “Quando chega agosto, setembro, outubro, o período de estiagem, é como se tivesse um lago embaixo do solo. O lençol freático fica encharcado, o que ajuda a abastecer o Borazinho”, explica o produtor. Ele produz no sistema de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF) e planeja fazer um parque ecológico com 80 mil árvores nativas.
Árvores que salvam rios
Outro projeto que tem colocado o produtor rural em evidência é o Conservador das Águas, que teve início em Extrema (MG) em 2005. Na época, o poder público municipal em parceria com diversas ONGs, como a The Nature Conservancy (TNC), começou a mobilizar os proprietários rurais para proteger as nascentes e florestas, recuperar as matas ciliares, reflorestar topos de morro, fazer terraços e barragens para evitar erosão, além de adotar manejos que ajudam a proteger o solo. “Uma vez que é um programa voluntário, há um incentivo [pagamento por serviço ambiental] para o proprietário rural adotar boas práticas e até mesmo antecipar a questão legal, já que o Cadastro Ambiental Rural dá o prazo de 20 anos para recompor o percentual mínimo de Reserva Legal”, diz Samuel Roiphe Barrêto, gerente de Água da TNC.
O projeto já plantou 2 milhões de árvores e hoje abrange os 20 mil hectares de área rural do município, englobando 300 sítios. Entre eles, o de Rubens Carbore, um funcionário público que desde 1984 vem reflorestando as margens do Rio Jaguari, que passa por sua propriedade. Na época, era chamado de louco, mas sua dedicação ao reflorestamento fez com que seu sítio fosse um dos primeiros beneficiados pelo projeto da Secretaria de Meio Ambiente de Extrema.
A iniciativa rendeu dezenas de prêmios ao município mineiro e mostrou que preservar o meio ambiente não é um impeditivo para o desenvolvimento econômico, pelo contrário. “Quando os recursos naturais (solo e água) são bem cuidados, o agricultor produz mais e protege sua área de extremos climáticos”, explica o gerente de Água da TNC. O projeto de Extrema deu origem ao Plano Conservador da Mantiqueira, que visa replicar as ações em 425 municípios da região da Serra da Mantiqueira. O Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) varia de cidade para cidade. Mas, em média, o valor é de R$ 250 reais por hectare.
Parceira do projeto Conservador das Águas e de outras iniciativas similares em dezenas de municípios, a TNC ajuda nos arranjos entre o poder público, o setor privado e a sociedade civil. “Nosso trabalho tem a ver com o fortalecimento da base local, que são os municípios. É preciso ter uma governança mínima para o programa ser implementado e ter perenidade”, diz Barrêto.
Raio X Hídrico
A falta de dados confiáveis é um dos gargalos da administração pública e não é diferente para o agronegócio. Mas um projeto-piloto da Plataforma Produzindo Certo (PPC) está driblando esta dificuldade. Através de uma parceria com o pesquisador Peter Cheung, doutor em Hidráulica e Saneamento pela USP de São Carlos, com pós-doutorado em IRSTEA Bordeaux, a plataforma está com um projeto-piloto em Mato Grosso, em que faz o diagnóstico da disponibilidade hídrica em algumas propriedades rurais. “A gente olha a geolocalização da fazenda, estuda a bacia hidrográfica em que ela está inserida, pega dados da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico [ANA], do MapBiomas, de radares meteorológicos, do Centro de Pesquisas e Previsões Meteorológicas [CPMET] e do CAR [Cadastro Ambiental Rural]”, explica Cheung.
Com esses dados em mãos, que incluem informações de solo, de clima, de vegetação, de intensidade e volume de chuva, o pesquisador usa softwares que fazem a simulação de cenários hídricos. “Eu consigo simular e quantificar o impacto de uma fazenda trocar de cultivo. Isso pode orientar o produtor a tomar decisões, como adotar boas práticas visando minimizar os impactos e/ou intervenções na bacia hidrográfica”, explica. “É uma análise preditiva, de olhar o futuro e saber qual é o risco hídrico daquela propriedade”, acrescenta.
Um dos grandes empecilhos é o ambiente institucional. A Lei 9.433, de 1997, instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, que prevê a gestão integrada das águas via comitês de bacias hidrográficas, que são uma espécie de “Parlamento das Águas”. Um fórum que envolve produtores rurais, consumidores, pescadores, turismo, poder público, entre outros. A função dessa comissão é gerir, deliberar outorga ou cobrança pelo uso da água. “O problema é que muito pouco se desenvolveu em termos de comitês no Brasil. Em regiões com muita disponibilidade hídrica quase não existe comitês porque não há conflito”, diz Cheung.
No entanto, o pesquisador frisa a importância dos comitês. “É por meio deles que são estabelecidos os indicadores de desempenhos, parâmetros para avaliar, por exemplo, se o incremento da produção agrícola em uma determinada bacia hidrográfica contribuiu para aumentar ou diminuir o volume de água”, explica o pesquisador.
Cheung – que também é professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) – tem um acordo de confidencialidade com a Produzindo Certo. Ele orienta grupos de trabalho com graduandos e mestrandos que estão desenvolvendo e validando a metodologia para o cálculo do risco hídrico de uma propriedade rural.
O exemplo do vizinho
Em várias bacias em que os comitês foram organizados, ações saíram do papel e começaram a mostrar resultados. E esses resultados acabam sendo compartilhados, gerando iniciativas semelhantes em bacias vizinhas – ou mesmo mais distantes. Caso típico nesse sentido é o efeito multiplicador que começa a se observar a partir do Consórcio Cerrado das Águas, plataforma multi-stakeholders, que engloba empresas, governo e sociedade civil para a implementação de ações para promover a resiliência climática e tem como objetivo “produzir” água através da preservação e conservação ambiental (leia mais sobre o projeto em reportagem na seção Fronteira).
O embrião do Consórcio surgiu em 2014, quando a Nespresso e a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) fizeram um estudo no Cerrado Mineiro para diagnosticar os desafios na região frente às mudanças climáticas. A resposta foi: água e solo. Com isso em mente, em 2019 foi criada a figura jurídica do Cerrado das Águas, que conta com oito membros associados que participam do planejamento estratégico e contribuem anualmente com US$ 15 mil para a implementação das ações. Trata-se de um time de peso: Nestlé, Nespresso, Lavazza, Cofco, Cooxupé, Expocaccer, NKG Stockler e Volcafé.
O projeto-piloto começou em Patrocínio (MG), município que é o maior produtor de café do Brasil. O ponto de partida foi a Bacia Hidrográfica do Córrego Feio. “A bacia do Córrego Feio não tinha nenhum tipo de medição para saber a quantidade de água, a vazão anual. O Consórcio instalou três estações telemétricas para fazer a medição em tempo real, para a gente começar a ter um histórico”, explica a secretária executiva do consórcio, Fabiane Almeida. Além disso, periodicamente são feitas análises da água da bacia. “Futuramente, vamos saber se as iniciativas melhoraram a qualidade e a disponibilidade de água”, acrescenta.
O consórcio venceu a desconfiança inicial dos agricultores. Hoje, das 122 propriedades rurais na Bacia do Córrego Feio, 57 aderiram a alguma ação. “Houve uma mudança radical. Inicialmente, os produtores ficavam ressabiados. O primeiro semestre foi muito difícil, mas depois um foi chamando o outro”, conta Fabiane. Agora o Consórcio está em fase de expansão para Serra do Salitre (MG), Bacia Hidrográfica do Ribeirão Grande; e Coromandel (MG), Bacia Hidrográfica do Buriti. “Projeto como o Consórcio das Águas trazem o senso de urgência climática. A ideia é começar hoje para que no futuro a gente colha não só café, mas também água”, diz Guilherme Amado, líder do programa Nespresso AAA de qualidade.
Mais tecnologia, menos desperdício
Gerir bem o recurso hídrico pode resultar em economia para diversos segmentos do agronegócio, entre eles o sucroenergético. “As usinas precisam de água para fazer o controle de temperatura no processo de evaporação do suco da cana-de-açúcar. E também na destilação do etanol, porque, se a temperatura for muito alta, há evaporação e perda do combustível”, diz Jorge Augello, CEO Latam da Buckman, empresa global especializada em tecnologias para otimização do uso da água, e diretor da Associação Latino-Americana de Dessalinização e Reúso de Água (Aladyr).
O controle da temperatura é feito pela água que passa por torres de resfriamento. No entanto, é necessário monitorar a qualidade desse recurso hídrico. “Com o tempo, a água usada vai se contaminando. Se não houver o controle microbiológico, ela se torna fonte de corrosão e de incrustação das tubulações por cálcio e magnésio”, diz o CEO da Buckman.
Sem o devido cuidado, as crostas vão diminuindo o diâmetro dos dutos. “Isso gera perdas não apenas por danos na tubulação, mas também pela redução do transporte d’água e da capacidade de troca de calor”, explica Augello. Foi para resolver esse problema da indústria que a Buckman desenvolveu soluções para o controle de temperatura, com o uso de machine learning e inteligência artificial para prever eventuais problemas e evitar quedas nas trocas de calor. Um efeito colateral benéfico da tecnologia é a economia no balanço hídrico da unidade.
As tecnologias da empresa têm duas pegadas, química e digital, que impedem o crescimento de micro-organismos que espessam as paredes das tubulações. “Usamos a molécula monocloramina, que impede o crescimento microbiológico, que acarretaria em problemas de resfriamento em usinas”, diz o diretor da Aladyr.
A companhia também atua na área de reaproveitamento de condensados. Em outras palavras, nas caldeiras, o caldo da cana-de-açúcar é aquecido, o que gera vapor (a água em estado gasoso). “Temos sistemas para recuperar este condensado, o que gera uma água muito pura. Para você ter uma ideia, uma usina padrão pode recuperar mais de 200 mil litros de água por hora”, diz Augello, que tem clientes como o grupo São Martinho.
Segundo o diretor da Aladyr, outra forma de reaproveitar a água no setor sucroenergético é por meio da vinhaça, resíduo da produção de etanol. “Vinhaça é 80% água. Uma forma de reaproveitar o recurso hídrico, que vem com matéria-orgânica, é gerando biogás”, explica.
Um terceiro segmento de atuação da empresa é no tratamento do recurso hídrico que será usado para a produção de vapor. “Esta água precisa de um pré-tratamento para tirar os sais e proporcionar uma vida longa à caldeira. Nós usamos o processo de osmose reversa, que nada mais é que a dessalinização da água, uma tecnologia muito popular nas usinas”, diz.
“Nosso trabalho é prolongar a vida útil dos ativos da companhia. Sejam as tubulações, as caldeiras ou trocadores de calor. O coração da operação da usina é a fabricação do etanol. Com a otimização dos recursos, você consegue controlar a temperatura no processo mantendo o etanol líquido e impedindo o aquecimento e a perda em forma de vapor”, finaliza Augello.