Edição 27 - 05.11.21
Por Lívia Andrade
O Brasil vive a pior crise hídrica dos últimos 91 anos. Muitos reservatórios de hidrelétricas – que são as responsáveis por 64,9% da geração nacional de energia elétrica – estão em níveis críticos, com um volume de água inferior a 10% da capacidade. Tal situação levou o governo a decidir pela contratação emergencial de termoelétricas, uma energia mais cara, que já deixou a conta de luz, em média, 7% mais alta este ano.
E o cenário não é nada animador para 2022. Segundo cálculos preliminares da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), as tarifas podem subir até 16,68% no próximo ano. Avaliações recentes feitas pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e Empresa de Pesquisa Energética (EPE) vão nessa mesma direção. Elas indicam que os reservatórios de água das hidrelétricas começarão o próximo ano em níveis piores que no início de 2021 – uma consequência do fenômeno La Niña, aliada às mudanças climáticas, agravadas pelo desmatamento, queimadas e utilização de combustíveis fósseis.
A crise energética joga um balde de água fria em um ano em que a economia brasileira tenta se recuperar dos prejuízos causados pela pandemia da Covid-19. A população sente os efeitos no bolso: aumento da conta de luz e inflação dos alimentos. Mas nem tudo são más notícias. Há um oásis no deserto, que vem do agro brasileiro. O setor tem uma capacidade gigantesca de geração de energia a partir do sol, dos ventos, dos resíduos orgânicos, dos subprodutos da produção de açúcar e etanol, dos dejetos da pecuária e da criação de suínos etc.
Para se ter uma ideia, só o setor sucroenergético tem um potencial quase sete vezes maior do que é utilizado. “No ano passado, nós geramos 22,6 mil gigawatts-hora (GWh), mas com a biomassa que temos, sem aumentar um só pé de cana-de-açúcar, poderíamos ter gerado 148 mil GWh”, diz Zilmar José de Souza, gerente de bioeletricidade da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica). “Mas para isso precisamos de uma política de longo prazo, de diretrizes mais críveis e de previsibilidade de contração”, acrescenta.
Com um melhor planejamento, as usinas brasileiras poderão fornecer energia limpa e “poupar água”, uma vez que o pico do processamento de cana-de-açúcar (de abril a novembro) coincide com o período de estiagem, caracterizado pela pouca chuva, o que afeta os reservatórios das hidrelétricas. “A sazonalidade do setor sucroenergético cobre o período de déficit hidráulico. É uma energia firme, de base renovável, com um custo de geração de R$ 400 por MWh, uma alternativa muito melhor do que as térmicas movidas a gás natural ou óleo diesel, que têm um custo que oscila entre R$ 1.000 e R$ 1.800 por MWh”, diz Plinio Nastari, presidente da consultoria Datagro.
“A cana-de-açúcar é uma máquina biológica muito eficiente para conversão de energia solar em biomassa, que por sua vez pode se transformar não só em alimento, mas em energia na forma de etanol, bioeletricidade, biogás e em vários outros produtos”
Plinio Nastari, presidente da consultoria Datagro
15.721 GWh foram gerados pelo setor sucroenergético de janeiro até 15 de agosto deste ano. Esse montante evitou a emissão de 4,3 milhões de toneladas de CO2 na atmosfera, marca que somente seria atingida se plantássemos 30 milhões de árvores nativas ao longo de 15 anos.
Fonte: Zilmar José de Souza, gerente de bioeletricidade da Unica
Sem perdas de transmissão
E as vantagens vão além. “Esta geração ocorre perto do centro de carga, perto das cidades. Então, com um menor investimento em linhas de transmissão e com menos perdas. Lembrando que, no Brasil, as perdas de transmissão de energia são estimadas em 14% devido à distância entre as linhas”, explica Nastari. Mas tudo esbarra na falta de um plano de curto, médio e longo prazo. “Em 2010, a gente chegou a acrescentar 1.750 MWh de energia nova [proveniente de parques de cogeração novos] à matriz elétrica. Mas no ano passado caiu para 304 MWh. Essa gangorra desestrutura não só o setor sucroenergético, mas a cadeia produtiva em volta, que é 100% nacional, exporta tecnologias na produção de caldeiras, de usinas e que se vê diante deste cenário de falta de previsibilidade, de continuidade”, explica Souza.
A ausência de um planejamento estratégico pode ter consequências perversas para o País. De acordo com Caio Megale e Rodolfo Silva, economistas da XP, há um sério risco de racionamento de energia em 2022, que – se acontecer – poderá zerar o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. Se, no entanto, o Brasil fizer a lição de casa, resolver as questões regulatórias e der segurança para os fazendeiros e usineiros investirem, o agro nacional – com seu potencial de geração de energia limpa e neutra em emissões de gases do efeito estufa (GEE) – tem tudo para atrair aportes das grandes gestoras globais de ativos, que já sinalizaram que não mais investirão em empresas que não tenham um plano robusto de transição para uma economia de baixo carbono.
Neste contexto, o Brasil tem a seu favor o RenovaBio, uma política nacional de biocombustíveis, instituída pela Lei nº 13.576, de 2017. Ao promover a expansão dos combustíveis verdes na matriz energética, o programa ajuda o País no cumprimento das metas de redução dos gases de efeito estufa (GEE) assumidas no Acordo de Paris e dá aos produtores de biocombustíveis certificados o direito de solicitar a emissão de créditos de descarbonização, os famosos CBios. “O RenovaBio estimula o aproveitamento integral e mais eficiente da energia contida na cana e, portanto, premia através da possibilidade da emissão de mais crédito de descarbonização aquelas empresas que aproveitam melhor o bagaço, a palha e o biogás”, diz o presidente da Datagro. “Além da receita obtida com a venda da bioeletricidade, ao expandir a capacidade de produção, o produtor recebe o benefício de vender mais CBios e ter uma renda ainda maior”, acrescenta.
A riqueza energética de um canavial ainda é pouco conhecida. “A cana-de-açúcar é uma máquina biológica muito eficiente para conversão de energia solar em biomassa, que por sua vez pode se transformar não só em alimento, mas em energia na forma de etanol, bioeletricidade, biogás e em vários outros produtos”, diz Nastari. Uma tonelada de cana-de-açúcar, por exemplo, corresponde a 1,2 barril de petróleo. Traduzindo em miúdos, o volume de cana que é produzido e processado para açúcar e etanol no Brasil equivale a uma produção de 2,13 milhões de barris de petróleo por dia. Não muito atrás dos 2,9 milhões de barris de petróleo que o País produz diariamente.
Pré-sal caipira
O apelido carinhoso foi dado pelos moradores do interior paulista ao potencial de geração de energia do setor sucroenergético. E eles têm razão. É possível produzir energia a partir do bagaço da cana-de-açúcar, da palha, da vinhaça (subproduto da produção de etanol) e da torta de filtro (resíduo da produção de açúcar). Para se ter uma ideia, de janeiro até 15 de agosto deste ano, só o segmento de biomassa (em que o bagaço de cana-de-açúcar representa 80% do total) gerou 15.721 Gigawatt-hora (GWh), segundo dados da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE).
“Este número significou poupar 11% de energia armazenada em forma de água nos reservatórios das hidrelétricas do Centro-Oeste e Sudeste do País”, diz Zilmar de Souza, da Unica. “Imagina se o Brasil tivesse contratado 30% a mais [de energia] de biomassa a cada ano? Talvez o País não estivesse passando pelo apuro atual”, conjectura.
Segundo a Unica, até 2020, o setor sucroenergético no Brasil tinha 366 usinas, sendo todas unidades autossuficientes em energia. “Dessas, 220 venderam o excedente [de bioeletricidade] para rede, 146 não venderam”, diz Souza. “No total, foram gerados 22,6 mil GWh no ano passado, isso corresponde a um aproveitamento de apenas 15% do nosso potencial de geração”, acrescenta.
Desafio sucroenergético
O segmento tem tudo para exportar mais energia para o Sistema Interligado Nacional (SIN) e aumentar sua eficiência energética, aproveitando a biomassa, a palha e a vinhaça. “Mas falta um plano estruturado para o aproveitamento desse potencial, falta uma política direcionada a viabilizar a energia do setor e, às vezes, há entraves para conexão da usina ao SIN, dificuldades com autorizações de interligações”, diz Plinio Nastari.
Outro empecilho é o modelo dos últimos leilões para contratação de energia de longo prazo, que foram focados em “energia nova”, proveniente de novos parques de cogeração, o que demanda um aporte considerável. “O investimento é da ordem de, aproximadamente, R$ 6 milhões por megawatt de potência instalada”, diz Nastari.
Tal situação, inclusive, é uma das dificuldades do setor, uma vez que muitos grupos sucroenergéticos têm um potencial de geração de energia maior, mas não têm incentivo para aumentar a cogeração nos parques já instalados, porque os leilões privilegiam novos parques. “A imprevisibilidade quanto à receita e a falta de estímulo para usar 100% da capacidade são gargalos do setor”, diz Gustavo Segantini, diretor comercial da Tereos Açúcar e Energia Brasil.
Há dez anos, a subsidiária brasileira do grupo francês Tereos vem investindo no aumento da capacidade de cogeração de energia. “Somos autossuficientes, consumimos cerca de 500 mil megawatts por ano e, no ano passado, exportamos 1,150 milhão de megawatts de energia para o sistema”, diz Gustavo Segantini, diretor comercial da Tereos. “Este volume de cogeração é suficiente para abastecer o consumo residencial de uma cidade de 2,3 milhões de habitantes durante um ano”, acrescenta.
No entanto, a produção de energia a partir da queima do bagaço é inferior à capacidade instalada do parque de cogeração da Tereos. “Nossa biomassa não é suficiente para utilizar 100% do nosso potencial, teríamos que ter uma quantidade maior ou contratar terceiros”, diz Segantini.
Nesse sentido, Souza frisa a necessidade de uma previsibilidade mínima. “Se no ano passado, antes de começar a safra, tivessem sinalizado ao setor sucroenergético, poderíamos ter nos planejado e contratado biomassa de terceiros, como casca de arroz, cavaco de madeira”, explica. “A safra de cana-de-açúcar começa em abril e vai até novembro, mas, se houver planejamento, conseguimos antecipar a geração de energia para fevereiro e estender até janeiro”, acrescenta.
Se por um lado, a falta de biomassa é um empecilho para a Tereos usar sua capacidade máxima de produção de energia; por outro lado, a disponibilidade de vinhaça é uma oportunidade. A cada um litro de etanol produzido são gerados em torno de 10 a 13 litros de vinhaça, subproduto que demandava um alto investimento para ser transformado em biofertilizante. “A gente entendeu que tinha uma maneira melhor de utilizar a vinhaça, um jeito mais eficiente gerando energia elétrica ou combustível através do biogás”, diz Segantini.
Isso levou a empresa a investir, um valor não revelado, num projeto-piloto na unidade de Cruz Alta, em Olímpia (SP). Lá, toda a vinhaça – que soma 900 milhões de litros por ano – vai para uma lagoa. Na sequência, passa por um biodigestor anaeróbio, que transforma a matéria orgânica da vinhaça em biogás. E depois o biogás passa por um processo de dessulfuração e se transforma em biometano.
Parte do biometano é comprimida e vira combustível para a frota movida a gás e parte é direcionada para um tubo gerador e produz energia elétrica. “Este ano, vamos conseguir gerar de 10 a 20 MWh de energia, fora a geração de biometano comprimido para a nossa frota”, diz o diretor comercial da Tereos. “Já estamos fazendo testes e a ideia é substituir os caminhões movidos a diesel. Queremos reduzir ainda mais nossa pegada de carbono e substituir o combustível fóssil [da frota de caminhões] por combustível limpo”, acrescenta. Para o futuro, o plano da Tereos é expandir o projeto da vinhaça para todo o grupo, que – somando todas as unidades – tem a seu dispor 8,7 bilhões de litros de vinhaça por ano.
O volume de cana que é produzido e processado para açúcar e etanol no Brasil equivale a uma produção de 2,13 milhões de barris de petróleo por dia. Não muito atrás dos 2,9 milhões de barris de petróleo que o País produz diariamente.
Fonte: Plinio Nastari, presidente da consultoria Datagro
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