Edição 24 - 22.04.21
Pesquisa aponta que mais da metade dos produtores agrícolas sofre prejuízos na convivência de suas lavouras com animais silvestres. O manejo controlado das espécies pode ser a difícil solução para esse sério problema ambiental
Os conflitos entre produtores e animais silvestres, como aves e mamíferos – sem falar nos insetos, vermes, vírus, bactérias e outras pragas, vêm de longe. Eles surgiram a partir da chamada revolução agrícola, ocorrida há 12.500 anos, quando os seres humanos deixaram de ser caçadores-coletores nômades e se transformaram em agricultores e domesticadores de espécies. Começaram, então, a ocupar cada vez mais espaço para suas plantações e criações, visando alimentar uma população sempre crescente. Até hoje a luta continua, com prejuízos constantes para ambas as partes.
Mesmo no Brasil, que tem apenas 521 anos de história, os agricultores sempre tiveram que lidar com ataques de animais silvestres às suas lavouras. Os primeiros habitantes do território, os indígenas, já tinham esse tipo de problema. Depois, os plantios feitos por portugueses e outros que chegaram ao Brasil séculos atrás e a colonização por imigrantes mais recentemente, nos últimos 150 anos, também foram prejudicados.
“Onde se planta muita coisa junto, que tenha algum valor nutritivo e seja atrativo para as aves e mamíferos, seja uma grande plantação, seja uma horta no fundo do quintal, haverá ataques de animais em busca de alimentos”, afirma o biólogo Rômulo Ribon, do Departamento de Biologia Animal da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Segundo ele, roças de mandioca eram – e ainda são – atacadas por tatus e porcos-domato, e as de milho por estes últimos e aves como periquitos, maritacas e papagaios. “Isso é comum”, diz.
Para dar números ao problema, pesquisadores do Paraná realizaram um levantamento dos danos causados por espécies da fauna silvestre nativa e exóticas na produção agropecuária no estado, principalmente na região dos Campos Gerais (MG). “Avaliamos 42 propriedades, nas quais verificamos que os tipos de estrago foram consumo de plantas (57,14%), arranque delas (42,86%), buracos no solo (38,09%), nidificação (9,52%), morte de animais (16,67%) e outros (14,29%)”, explica Verônica Oliveira Vianna, chefe do Departamento de Zootecnia da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), que participou da pesquisa.
Quanto às culturas, o milho e a soja foram as mais afetadas, com 64,29% e 28,57%, respectivamente. Os animais que causaram mais danos foram javali (33,33%), aves (30,95%), tatu (28,57%), capivara (16,67%), quatis (14,29%), catetos (11,90%), lebres (7,14%), lobo-guará e ratos (4,76%), e ouriço, cachorro-domato, lontra, cutia, serpentes e gato-do-mato, macaco-prego e graxaim-do-campo (2,38%).
Os produtores foram também indagados se os prejuízos têm aumentado ou diminuído ano após ano. Para 52,38% eles vêm aumentando, para 23,81% estão diminuindo e para 14,28% são constantes. Com esses resultados, verificou-se a necessidade de reconhecer padrões de danos e avaliar os problemas ano após ano, para possibilitar maior confiança na tomada de decisões com o objetivo de minimizar tais conflitos.
O certo é que há relatos desses problemas por todo o Brasil. Entre os maiores causadores de estragos estão tanto animais nativos como exóticos (invasores). Entre os mais comuns, estão o javali (Sus scrofa), aves (pombas, chupins e maritacas, principalmente), a lebre-europeia (Lepus europaeus), tatus (há várias espécies, todas da família Dasypodidae), capivaras (Hydrochoerus hydrochaeris) e, na pecuária, onças-pintadas (Panthera onca) e onças-pardas (Puma concolor).
Desses, um dos invasores é o javali. De origem europeia e asiática, ele foi introduzido no Uruguai na década de 1990, para a criação em cativeiro com o objetivo de produzir uma carne exótica para o mercado sulamericano. Mas, como é comum acontecer, quando se tenta criar espécies selvagens em cativeiro, vários deles escaparam. Por ser o ancestral dos porcos domésticos atuais, que têm inclusive o mesmo nome científico, e haver um grande parentesco entre eles, podem acasalar com grande facilidade, gerando animais férteis, chamados javaporcos.
E foram eles, e não o javali puro, que se espalharam pelo País e causam os maiores danos às plantações. Eles são muito maiores, podendo chegar a 300 kg, e têm uma taxa reprodutiva bem mais elevada. “O javaporco é muito pior do que o javali ou porco puro, porque acaba somando o melhor de cada um, ou seja, a rusticidade e a alta taxa reprodutiva do primeiro com o porte e a eficiência alimentar do segundo”, explica o engenheiro agrônomo Rafael Salerno, criador da Rede Aqui Tem Javali e que atua em todo o País no controle da espécie.
Além disso, os javaporcos são onívoros, ou seja, podem se alimentar tanto de plantas como de outros animais, como insetos, vermes, pequenos vertebrados e, às vezes, até aves e cordeiros. “Na agricultura, as principais culturas atacadas no Brasil são o milho, a mandioca e o amendoim”, diz Salerno. “Eles causam também grandes danos ambientais, prejudicando aguadas para o gado, transmitindo doenças e atacando as criações.”
De acordo com ele, os prejuízos econômicos causados pelo javaporco são grandes. “Em alguns casos de pequenos produtores, ele pode chegar a 100% da lavoura”, diz. “Nos médios, pode ser de 50% e para os grandes já foram observadas perdas que podem superar os 10%. Em termos de valores, pode variar de R$ 10 mil até mais de R$ 500 mil em um ano, mas às vezes pode inviabilizar a cultura na propriedade ou até a própria atividade rural.”
A lebre-europeia também é uma espécie que veio da Europa e está devastando lavouras brasileiras. Conhecida como lebrão – mede 25 cm sentada (sem contar as orelhas) e 70 cm quando salta com as pernas esticadas –, ela foi introduzida na Argentina e no Chile, na primeira metade do século passado, para caça esportiva. As fêmeas começam a se reproduzir aos 5 meses de idade, e cada uma tem de quatro a sete gestações anuais, podendo chegar até 28 crias por ano.
Não é de surpreender, portanto, que ela tenha se proliferado naqueles dois países e chegado ao Brasil. Seu primeiro registro em território nacional data de 1952, em Santa Vitória do Palmar (RS). De lá para cá, vem subindo o mapa do País a espantosos 45 km por ano, já tendo sido detectada no Mato Grosso do Sul, em Goiás e em Minas Gerais. Onde se estabelece, o lebrão causa grandes prejuízos, que podem chegar a 100% nas plantações de brócolis e couve-flor, por exemplo, e a 20% nas de laranja, limão e tangerina (neste caso, elas roem o caule e as plantas morrem). Os lebrões atacam ainda outras culturas, como soja, feijão, café e mandioca, para citar algumas.
As espécies invasoras não são as únicas, no entanto, que causam estragos nas lavouras brasileiras. As nativas não ficam atrás, principalmente as aves. Que o diga, Renato José Laguardia de Oliveira, presidente do Sindicato Rural de Barbacena (MG), que reúne produtores rurais desse município e dos vizinhos. “Nosso problema são as maritacas (Aratinga leucophthalma)”, conta. “Elas atacam os pomares de frutas, como pêssego, maçã, nectarina, goiaba, além das plantações de milho, causando grande prejuízo para os produtores e para a região. Elas bicam os frutos (furam e danificam), impossibilitando sua comercialização.” Do milho, elas arrancam grãos das espigas.
No caso das lavouras da Estação Experimental do Arroz (EEA), do Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga), em Cachoeirinha, na Região Metropolitana de Porto Alegre, os danos foram causados por outras aves, o pombodoméstico (Columba livia) e o chupim (Molothrus bonariensis). O primeiro se alimenta das sementes de arroz e soja durante todo o processo de plantio e colheita e das primeiras folhas, no início do desenvolvimento da oleaginosa. O segundo come avidamente gramínea semeada ou no cacho. Ambos têm um ciclo reprodutivo rápido e, na ausência de predadores, aumentam sua população com facilidade.
Segundo a engenheira agrônoma e mestre em fitotecnia Flávia Miyuki Tomita, gerente da Divisão de Pesquisa do Irga, a localização e a atividade desenvolvida na Estação Experimental favorecem o aparecimento de aves. “Somos uma ‘ilha’ entre Porto Alegre e Cachoeirinha e temos fartura de comida (arroz, soja e milho), que é um grande atrativo para os pássaros”, explica.
Flávia relata que, com o passar dos anos, a população das duas espécies foi aumentando e estava ficando inviável continuar a experimentação em campo na Estação. “Nenhuma das alternativas de controle que tentávamos estava dando bons resultados”, conta. “Usávamos redes para proteger pequenas parcelas de arroz e rojões (fogos de artifício) para espantar os pássaros com o barulho. Nada deu certo.”
Foi então que resolveram empregar outros animais silvestres para controlar os pombos e chupins, no caso, seus predadores naturais, os falcões, devidamente treinados para isso por uma empresa de falcoaria. Por meio de um estudo preliminar, a equipe do Irga identificou quais as espécies causadoras de danos à lavoura e, com base nisso, estão sendo utilizados seus predadores naturais diretos.
Um deles é o falcão-peregrino (Falco peregrinus), que é o predador natural do pombodoméstico. Para controlar os chupins, são utilizados falcões menores, no caso, o falcão-decoleira (Falco femoralis). “Com o uso da falcoaria, respiramos aliviados, comemora Flávia. “As perdas com pássaros atualmente são pequenas e isso viabiliza a continuidade do nosso trabalho de pesquisa em campo.”
Nem sempre, no entanto, é fácil encontrar uma solução para o problema. “Aqui na região, já foram feitas várias tentativas para inibir os ataques das maritacas a pomares e roças de milho”, conta Oliveira. “Todas falharam, no entanto. Com o passar dos dias, elas se acostumam com as medidas inibidoras e voltam a atacar. Uma das ações que poderiam amenizar os prejuízos seria um manejo controlado dessa espécie, mas para isso necessitamos de autorização do Ibama. O Sindicato já fez pedidos nesse sentido, mas ainda não teve resposta.”
Por isso, há quem defenda soluções de longo prazo e estabelecidas caso a caso. “Elas devem ser diversificadas, pois cada local tem uma história diferente da de outro”, diz Verônica. “O dano pode ser o mesmo em áreas distintas, mas será que a causa é a mesma? Então, cada local tem que ser investigado, avaliado, para promover medidas que possam minimizar tais prejuízos.”
De acordo com Flávia, para encarar esse tipo de situação, é importante entender que os animais não são a causa, e sim a consequência do problema. “ Eles sempre estiveram lá, mesmo antes das plantações”, explica. “Mas as áreas de cultivo representam um ambiente com o equilíbrio alterado, nas quais a comida está amplamente disponível, tornando o risco de ser predado muito pequeno, se comparado com a oportunidade de encher o papo.”
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