A Cultura Viva do Interior do Brasil

Em um momento em que uma população crescente deixa os centros urbanos e se instala em cidades do i


Edição 24 - 26.03.21

Em um momento em que uma população crescente deixa os centros urbanos e se instala em cidades do interior, o Instituto Arado se propõe a pesquisar e preservar o imaginário rural do País por meio de projetos que privilegiam as artes visuais.

Registro fotográfico de uma mão pintando
-Detalhes do trabalho e dos objetos expostos no Arado

Abrir a página do Instituto Arado no Instagram é fazer uma viagem pela cultura caipira. São rótulos de produtos, capas de discos, antigos panfletos, desenhos botânicos, reproduções de quadros e muitos outros materiais que imediatamente trazem lembranças à tona. Pode ser uma garrafa de pinga, a embalagem de um queijo tradicional da Serra da Mantiqueira ou mesmo a capa de um livro. É um sentimento que mostra que não só aqueles que trabalham no setor agrícola que mantêm vivos os hábitos, as memórias e o imaginário do interior do Brasil. Os dados mais recentes do IBGE podem até indicar que o Brasil é um país majoritariamente urbano – afinal, apenas 15% dos brasileiros moram em áreas rurais –, mas o êxodo para as grandes cidades é tão recente que essa cultura está bastante viva.

Hoje, o Arado é um instituto de pesquisa do imaginário rural brasileiro, com sede no município de Queluz, em São Paulo. Mas surgiu inicialmente como um estúdio de criação cuja trajetória está diretamente ligada à de seu fundador, Bruno Brito. Natural de Jacareí, no Vale do Paraíba, mudou para São Paulo para estudar artes visuais, mas sempre manteve uma conexão forte com as tradições rurais da região em que cresceu. Mesmo na maior metrópole da América Latina, seu olhar se voltava para o interior. Fez um mestrado em artes e estudou a obra de Almeida Júnior (1850-1899), precursor do estilo que viria a ser conhecido como regionalista. “Meu trabalho tenta mostrar o que ainda encontramos, hoje, da paisagem que ele pintou no século passado”, conta Bruno.

Quando concluiu o mestrado, em 2018, começou a desenvolver projetos gráficos que traduzissem o universo rural. Logo, viu a lista de demandas crescer. Fez trabalhos para restaurantes, marcas de queijo e de café, produziu pôsteres e camisetas. Para o Sesc São José dos Campos, por exemplo, criou um mapa com antigas rotas de viagem da região do Vale do Paraíba que remontam aos tempos da colônia. O instituto também foi responsável pelas ilustrações da partitura de Legado, canção composta por Renato Teixeira para a minissérie de mesmo nome produzida pela Basf.

Registro fotográfico de um Homem Adicionando mais um desenho a uma fileira de outros desenhos
-Detalhes do trabalho e dos objetos expostos no Arado

O foco da pesquisa de Bruno está na região Centro-Sul. Mas seu plano é abrir o leque e incluir outras regiões. “Acho maravilhoso o Arado poder abarcar o Brasil como um todo. Precisamos olhar mais para o universo sertanejo do Nordeste, para o Cerrado, para o Norte”, afirma o fundador. Para fazer isso, ele vai lançar um programa de correspondentes, que ficarão responsáveis pela pesquisa em cada região. É uma abordagem que pretende também abarcar outras narrativas que incluam os negros e os indígenas na cultura caipira. “O Sudeste sempre foi o mainstream. Temos que ampliar o debate e fazer jus à nossa missão de pesquisar o imaginário brasileiro. E assim encontramos as divergências, mas também muitas similaridades”, diz Bruno.

Enquanto o projeto dos correspondentes não tem início, o Arado está montando uma biblioteca colaborativa que se propõe a oferecer um panorama da história, dos saberes e da cultura do campo. No site do instituto é possível pesquisar títulos bastante variados, que incluem Formação da Culinária Brasileira, de Carlos Alberto Dória, sobre a gastronomia nacional; As Festas no Brasil Colonial, de José Ramos Tinhorão; ou o volume em que José Hamilton Ribeiro compila as 270 maiores modas de viola. “A biblioteca mapeia o que está além do meu raio de visão“, conta Bruno.

Registro fotográfico de Bruno Brito
-Bruno Brito, o criador, a paisagem da Mantiqueira e obras do Arado, como a partitura ilustrada da canção Legado

A biblioteca também abarca clássicos da literatura que retratam a vida no campo.  É o caso de Sagarana, de João Guimarães Rosa (1908-1967); Urupês, de Monteiro Lobato (1882-1948); e São Bernardo, de Graciliano Ramos (1892-1953). Há ainda espaço para títulos recentes, como o fenômeno Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, contado a partir do ponto de vista das filhas de trabalhadores de uma fazenda no Sertão da Bahia, descendentes de escravizados que continuam oprimidos mesmo após a abolição. “É uma obra importante em vários aspectos. Faz uma inversão da literatura pautada na figura masculina, fala de opressão e não tem aquela visão romântica do universo rural pacífico”, diz.

O reconhecimento do valor da cultura caipira e a busca por trazer à tona seus elementos é um movimento que vem crescendo há algum tempo. Bruno vê essa volta às origens como uma importante busca contemporânea. “Passamos por crises hídricas e sanitárias e por problemas de urbanização. Já havia um movimento de sair dos centros urbanos em direção ao interior”, diz. Ele cita como os chefs passaram a levantar a bandeira da comida do campo na gastronomia. “Virou quase uma obrigação.” A tendência ganha ainda mais força com a pandemia. “Muitas pessoas saíram dos centros urbanos e descobriram que a vida no campo não apenas é possível, mas interessante”, diz Bruno.

Nesse sentido, há uma preocupação em tornar o Arado um centro de referência como forma de validar narrativas verdadeiras, baseadas em pesquisa. “As pessoas vêm para o campo, muitas com capital. Surgem novas empresas e marcas e começam a usar a narrativa do rural, do caipira, para vender. O papel aceita tudo, até mentira”, afirma Bruno.Segundo ele, o design vive um momento de usar esse storytelling para dar uma cara de “marca tradicionala produtos que acabaram de surgir. “Muitas crises éticas também são estéticas. Quando não tem uma referência do que era, ou do que é, está a esmo”, afirma ele. Sobre o trabalho que faz, Bruno evita termos como “resgate“. Ele prefere dizer que traz à tona elementos dessa cultura. “Não temos a pretensão de não deixar aquilo morrer. Reconhecemos que a cultura passa por transformações, mas tentamos registrar algumas coisas para a posteridade.”

Além do projeto de correspondentes das outras regiões do Brasil, o Arado tem outros planos para 2021. Atualmente, o time do instituto está ilustrando e diagramando um livro sobre o hub Preta Terra, que oferece consultoria, planejamento e formação sobre agrofloresta, agricultura regenerativa e sistemas de produção integrados. Além disso, vai colocar dentro do site uma loja virtual com elementos da pesquisa materializados na forma de cartazes e pôsteres, por exemplo.

 

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