Edição 21 - 17.09.20
Por André Sollitto
Pouco antes do isolamento que foi adotado por vários países da Europa, o Parlamento Europeu apresentou um documento que representou um importante passo em direção a um método de crescimento regenerativo capaz de dar conta das demandas que vão surgir nas próximas décadas. O Plano de Ação de Economia Circular prevê a adoção de inúmeras medidas em todas as áreas produtivas, inclusive na agricultura: seja por meio de redução de desperdício, sejapor meio do uso mais eficaz e consciente da água e de nutrientes no solo.
Mas o que é, exatamente, economia circular? Basicamente, é reutilizar, recuperar e reciclar. Envolve o pensamento de novos sistemas capazes de reduzir a necessidade de busca por recursos finitos do nosso planeta e regenerar sistemas naturais. Também envolve estratégias para que a geração desses resíduos seja reduzida ou, melhor ainda, removida dos sistemas econômicos. Em vez de simplesmente adaptar métodos já existentes, propõe o desenvolvimento de novos métodos, mais eficazes e sustentáveis. O termo “circular” justamente se refere a reincorporar resíduos, por exemplo, à produção. Trata-se de um círculo fechado.
É um conceito ainda pouco popular no Brasil. O agricultor brasileiro já está bastante familiarizado com outros conceitos de sustentabilidade, do manejo agroecológico ao sequestro de carbono. Ele já percebeu as vantagens de pensar a longo prazo nos cuidados com a terra, não apenas pelos óbvios benefícios ecológicos, mas também pelas vantagens financeiras. A economia circular, no entanto, ainda é um tanto misteriosa. Mas a situação começa a mudar.
Iniciativas do gênero despontam por aqui e, pelo peso de quem está por trás delas, demonstram o potencial do conceito. Uma das maiores empresas de energia do País, a Raízen está entre as que mais se empenham em adotar estratégias de economia circular em sua produção. A atuação é concentrada em algumas frentes. Na questão do uso da água, por exemplo, desenvolveu o programa Redusa, que atua para reduzir o consumo de água por tonelada de cana moída e diminuir o uso de água fria nas caldeiras por meio do reúso de águas quentes. De acordo com a empresa, já foram economizados 8 milhões de litros desde sua implementação. Há ainda um outro programa destinado à gestão de resíduos. A vinhaça, resultante do processo de destilação do caldo da cana, a torta de filtro, proveniente da filtração desse caldo, e a cinza, resíduo da queima do bagaço, são usados como fertilizantes naturais. A torta e a vinhaça também são usadas na planta de Biogás da Raízen para gerar energia. E o bagaço da cana é utilizado na produção de energia elétrica.
A Tetra Pak, conhecida por sua embalagem longa vida, é outro exemplo. A empresa tem um departamento dedicado ao tema e trabalha com um conceito ainda mais avançado, a economia circular de baixa emissão de carbono, que leva em consideração o impacto climático das matérias-primas e da cadeia de valor da manufatura. Além da reciclagem e de operações que dependam de energia de fonte renovável, a Tetra Pak busca matérias-primas de origem vegetal. As caixas longa vida, por exemplo, levam 71% de papel cartão renovável. O próprio formato da embalagem permite que os caminhões transportem até 20% a mais de carga, reduzindo a necessidade de mais viagens.
Se esses exemplos apontam o enorme potencial existente, também é fato que ainda é pouco explorado. O levantamento Radar AgTech, feito em 2019 sobre o ecossistema de inovação no agro brasileiro, identificou 1.125 empresas que trabalham com inovação no setor. Entre as 530 startups com soluções depois da fazenda, uma das divisões estabelecidas no estudo, apenas 14 trabalham dentro da categoria Bioenergia e Biodiversidade. São empresas que desenvolvem novos processos, métodos e tecnologias para a produção de bioenergia e/ou para a proteção da biodiversidade. Destas, apenas sete lidam diretamente com bioenergia. É uma grande oportunidade, pois oferece uma renda adicional ao produtor, além da oportunidade de explorar fontes de energia renováveis.
Levantando a bandeira
Uma das principais referências mundiais em economia circular é a organização britânica Ellen MacArthur Foundation. Criada em 2009 pela velejadora aposentada, a entidade lidera uma série de iniciativas que unem esforços globais em causas específicas. Em 2018, foi uma das responsáveis pela Platform for Accelerating the Circular Economy, uma aceleradora de projetos lançada durante o Fórum Econômico Mundial com o objetivo de envolver empresas e governos na busca por práticas mais sustentáveis.
A fundação é responsável pela organização de programas para setores específicos de produção, sempre com a intenção de incorporar processos de economia circular. Ao lado de marcas como Wrangler, Lee e Banana Republic, por exemplo, lançou a Jeans Redesign, uma série de diretrizes para tornar a produção das populares calças mais sustentável e menos danosa ao ambiente. O guia inclui princípios para que o jeans seja facilmente reciclável, rastreável e tenha uma durabilidade grande. O mais interessante é que as empresas assinaram o documento em abril deste ano, em meio à pandemia provocada pela Covid-19. A emergência sanitária só tornou ainda mais clara a necessidade de mudanças na produção, especialmente na indústria da moda. E esse é apenas um dos programas. Existem iniciativas focadas na redução do uso de plástico e outras dedicadas à alimentação.
Além das empresas, a fundação busca envolver governos na busca por cadeias produtivas mais sustentáveis e inteligentes. Em junho de 2019, lançou uma iniciativa de sustentabilidade que se propõe a resolver grandes problemas da cadeia produtiva de alimentos, como o desperdício e a falta de segurança alimentar. A ação aconteceu após a divulgação do relatório “Cidades e a Economia Circular da Comida” no Fórum Econômico Mundial, que mostrou que até 2050 quatro quintos de toda a comida do mundo será consumida em cidades. E São Paulo é uma das signatárias da iniciativa, juntamente com outras metrópoles, como Londres e Nova York. “A cidade de São Paulo acredita que a economia circular é uma alternativa possível ao desperdício e à poluição do sistema produtivo atual”, disse o prefeito da capital, Bruno Covas, na ocasião. Com duração de três anos, o programa tem o apoio de empresas do setor, como a Nestlé e a Danone.
Reaproveitando bananas
O Google também tem fomentado a inovação e a economia circular na área de produção de alimentos. No ano passado, por meio de seu Food Lab Accelerator at Google (FLAG), sua aceleradora de foodtech, juntou forças com a organização não governamental Thought For Food (TFF) e lançou o Circular Economy of Food Prize, um prêmio dentro do desafio anual do TFF. A vencedora foi a startup brasileira Feitosa, que oferece uma solução simples, mas eficaz: um ketchup de banana feito a partir de frutas que seriam descartadas pelos produtores simplesmente porque não atendem aos padrões do mercado.
A empresa foi criada pelo chef Fabricio Goulart. Após trabalhar em restaurantes no Canadá, retornou ao Brasil em 2014, momento em que as hamburguerias estavam em alta. Em vez de trabalhar com os lanches, resolveu apostar nos molhos e desenvolveu um ketchup com a fruta, justamente porque ela tem muito açúcar quando está madura. Ele entrou em contato com uma cooperativa de bananicultores do Rio Grande do Sul e começou a comprar as bananas fora do padrão. “Essas frutas representavam de 40 a 60% da produção deles”, afirma o chef. Segundo Fabricio, ainda era pouco. “Aquilo gerou uma ideia de circularidade”, afirma. Passou a fazer outros molhos e geleias. Usando as cascas, criou uma caponata à base de banana. A linha de produtos inclui uma cerveja e snacks feitos com a fruta, e as embalagens são todas recicláveis.
A decisão de se inscrever no desafio do TFF e da aceleradora do Google foi tomada depois que o empreendedor não encontrou programas específicos para o que tinha em mente. “Conceitos como upcycling e economia circular são bastante sólidos lá fora, mas desconhecidos por aqui”, diz. Antes, participou do programa Shark Tank na tentativa de conseguir um financiamento para produzir seus molhos em escala industrial. Os jurados gostaram da ideia, mas acharam que não haveria mercado para seus produtos. Movido pela vontade de provar o valor de sua ideia, se inscreveu no desafio internacional. Foi escolhido entre mais de 5 mil inscritos. Agora, no entanto, a produção está parada por conta da Covid-19. “Mas acredito que 2021 será o ano em o mercado internacional vai olhar para o Brasil como celeiro de foodtechs. E espero que nós, como Feitosa, consigamos nos envolver em projetos fora do País. Replicar e ganhar escalabilidade”, diz Fabricio.
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