Edição 21 - 15.09.20
Por Patrícia Lima | Fotos de Tadeu Vilani
– Eu tropeava, nesse tempo. Duma feita que viajava de escoteiro, com a guaiaca empanzinada de onças de ouro, vim varar aqui neste mesmo passo, por me ficar mais perto da estância da Coronilha, onde devia pousar.
Parece que foi ontem!… Era por fevereiro; eu vinha abombado da troteada.
Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma reboleira de mato, que está nos vendo, na beira do passo, desencilhei.
Você pode não saber que “viajar de escoteiro” significa andar sozinho, sem conduzir outros animais além da própria montaria. Também não deve saber que uma “guaiaca empanzinada de onças de ouro” é o mesmo que uma cinta com muitos bolsinhos, presa ao corpo, neste caso cheia das mais valiosas moedas de ouro, circulantes em meados do século 19. Sabe que uma “reboleira de mato” é uma espécie de moita, composta por pequenos arbustos, típica das paisagens do Pampa? É provável que o significado literal de cada uma dessas expressões regionais lhe escape. É impossível, porém, que você não se sinta convidado a esta prosa para a qual o narrador chama. É assim que João Simões Lopes Neto, escritor gaúcho que viveu entre 1865 e 1916, descortina em sua fala uma mistura de paisagem e gente, cristalizando na cadência da fala popular o universo rural do interior de um Rio Grande do Sul antigo, que hoje só existe nos contos e na memória.
O trecho que abre esta reportagem também é o início de Trezentas Onças, o primeiro dos 19 textos de Contos Gauchescos, livro publicado em 1912. O narrador é Blau Nunes, o vaqueano, apresentado ao leitor na nota introdutória da edição. Sabe-se dele que foi tropeiro, teve família e também percorreu os diversos cantos do Rio Grande do Sul servindo nas forças militares que sustentaram as muitas guerras que tiveram a região platina como palco. Homem simples, mas com alguma instrução, Blau encontra um interlocutor de quem nada se sabe, que o acompanha em certo recorrido e ouve dele os causos que conta de memória. Algumas das histórias são anedotas. Outras, as mais marcantes, são as lembranças que Blau remexe, conforme o trajeto que percorre com o “patrãozinho”. O mesmo narrador-personagem conduz o livro publicado em 1913, Lendas do Sul, no qual estão estilizadas literariamente três lendas populares no Rio Grande do Sul.
Um velho experimentado que conta em primeira pessoa suas memórias de amores, guerras e crenças a um interlocutor silencioso, com a musicalidade do idioma popular. Sim, você já leu isso antes. Quando Guimarães Rosa passa a palavra a Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, faz a mesma operação narrativa – guardadas, obviamente, as enormes diferenças entre um e outro: para se ficar em apenas uma, o gaúcho escreveu contos breves, enquanto o mineiro produziu um caudaloso romance. Já que se falou em Rosa, vale destacar que a verve de Simões Lopes Neto não lhe passou despercebida. Guardado no acervo do Instituto de Estudos Brasileiros, na USP, o exemplar de Contos Gauchescos e Lendas do Sul que pertenceu a Guimarães Rosa revela a leitura minuciosa que o autor de Sagarana fez da obra.
Simões Lopes Neto não foi, porém, o primeiro escritor a enfrentar o desafio de transformar a vida e a fala dos personagens do campo em literatura. Por que, então, ele é tão emblemático? A explicação está na operação narrativa que construiu. Contemporâneos seus, nos primeiros anos do século 20, também usaram a matéria rural como tema ficcional. Coelho Neto, famoso na época, foi um deles. Em sua prosa, porém, não conseguiu resolver a distância que havia entre o narrador culto e os personagens populares. Quando tratou desse problema, o crítico e professor Antonio Candido comparou justamente os dois escritores, apontando uma certa falsificação linguística praticada por Coelho Neto. Enquanto a fala do homem do campo vinha marcada com erros de ortografia para salientar seu modo de expressão, o narrador usa a norma culta no curso do relato. Segundo Candido, essa técnica delimita a distância entre o autor letrado e o pitoresco personagem, de falar rebaixado.
É essa equação que Simões Lopes Neto primeiro resolve, entregando a condução do relato ao próprio personagem, sem rebaixar sua fala com erros gramaticais, mas marcando a cadência do seu sotaque e a característica dialetal de suas expressões. O professor de literatura brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Luís Augusto Fischer, que coordenou uma edição anotada dos Contos e Lendas em 2012, comenta que Simões Lopes Neto desatou um dos nós mais apertados da ficção brasileira da época, que era incorporar à literatura os elementos do povo, de gente iletrada ou semiletrada. “E talvez uma solução que fosse ao mesmo tempo literária e historicamente adequada, que conferisse protagonismo respeitoso com uma visão emancipadora do homem do povo, ainda demorasse quem sabe uma geração para surgir (até Guimarães Rosa, ao menos), não fosse o aparecimento de Simões Lopes Neto, com estes dois livros”, assinala Fischer, no ensaio que abre a edição.
Paisagens e dramas universais no cenário do campo
– Está vendo aquele umbu, lá embaixo, à direita do coxilhão?
Diziam os antigos que aí encostado havia um lagoão mui fundo onde até jacaré se criava. Eu, desde guri, conheci o lagoão já tapado pelos capins, mas o lugar sempre era respeitado como um tremedal perigoso; até contavam de um mascate que aí atolou-se e sumiu-se com duas mulas cargueiras e canastras e tudo…
A abertura do conto No Manantial, um dos mais poderosos de todo o conjunto dos Contos Gauchescos, convida o leitor a observar a singeleza da paisagem dos campos abertos do Rio Grande do Sul. Blau Nunes não situa muito bem o relato no tempo, mas dá para saber que tudo ocorreu em meados do século 19, já que o próprio narrador participou dos funestos acontecimentos que relembra. O umbu, o coxilhão, o próprio manantial, que é um pântano, são elementos encontráveis ainda hoje em meio às extensas pastagens e aos plantios de soja, que cobrem o bioma Pampa em território gaúcho.
A natureza, não por acaso, é determinante na literatura de Simões Lopes Neto, por desafiar e moldar o caráter dos homens que viviam na região. As grandes estâncias de gado, divididas entre poucos proprietários pelas Leis das Sesmarias, são os pontos de referência de onde partem os personagens e suas histórias de guerra, de amor, de vida e de morte. Ainda no ensaio introdutório à edição de 2012, o professor Luís Augusto Fischer destaca que as narrativas percorrem esse universo campeiro desde os tempos mais primitivos, anteriores às cercas de delimitação das propriedades, até a realidade pastoril. Os Contos e Lendas nada têm a dizer sobre a cidade, a modernidade ou a lógica da mercadoria. “Escrevendo nos marcos da literatura naturalista, Simões Lopes Neto pegou da experiência direta que tinha do mundo campeiro gaúcho, da fazenda de criação de gado, assim como da tradição guerreira do mundo da fronteira do Brasil com os países do Prata, e com esse barro forjou personagens impressionantes, homens desassombrados e mulheres determinadas, vivendo cenas de intensa força, que só ocorrem quando somos confrontados com os limites do que temos de mais humano, o amor, o desejo, a sobrevivência física, a luta pela domesticação da natureza, a guerra.”
Um escritor forjado entre o campo e a cidade
“A estrada estendia-se deserta; à esquerda os campos desdobravam-se a perder de vista, serenos, verdes, clareados pela luz macia do sol morrente, manchados de pontas de gado que iam se arrolhando nos paradouros da noite; à direita, o sol, muito baixo, vermelho-dourado, entrando em massa de nuvens de beiradas luminosas.
Foi caindo uma aragem fresca; e um silêncio grande, em tudo.”
Quem já viu um entardecer de verão nas imensidões do Pampa reconhece de pronto a paisagem desta cena, mais uma do conto Trezentas Onças. Sem correr risco de spoiler, pode-se dizer que Blau Nunes galopa apressado pelas estradas entre as estâncias enquanto observa a beleza melancólica do crepúsculo, sempre mais lenta e dramática nessas latitudes. Como o seu personagem, o autor também observou incontáveis vezes o pôr do sol nos campos. Essa é, porém, uma das únicas semelhanças entre eles.
João Simões Lopes Neto nasceu em Pelotas, no sul do Rio Grande, em junho de 1865. Sua mãe, Thereza, foi assistida por parteiras no casarão da imensa Estância da Graça, uma das mais bem-sucedidas charqueadas do estado. Seu avô, João Simões Lopes, era um dos homens mais ricos da província. O resgate mais completo da vida do escritor está no livro João Simões Lopes Neto – Uma Biografia, publicado em 2003 por Carlos Francisco Sica Diniz. A obra aponta que, por ter emprestado dinheiro ao Império para obras de infraestrutura e também para o financiamento de guerras, este avô ganhou um título de nobreza, passando a ser chamado de Visconde da Graça.
O menino cresceu no ambiente rural da estância, cercado de natureza, de animais e das gentes que habitavam aquele entorno – peões, capatazes, escravos, velhos contadores de histórias. Quando tem por volta de 10 anos, divide-se entre a vida na estância e o colégio francês, onde estuda, no centro de Pelotas, que era então a metrópole mais desenvolvida e de vida cultural mais intensa do estado – quando adulto, ele escreve um livro para leitura escolar, nunca publicado em vida, no qual o narrador é um menino que se divide entre as férias, na estância, e a vida urbana, na escola.
Ao completar 11 anos, a primeira e talvez a mais devastadora tragédia chega com a morte da mãe, vítima de doença pulmonar. Como era costume nas famílias aristocráticas, João Simões foi mandado ao Rio de Janeiro para estudar. Permaneceu na então capital do país até os 18 anos: estava lá, por exemplo, quando Machado de Assis publicou Memórias Póstumas de Brás Cubas. Quem retorna a Pelotas, no final de 1884, é um jovem herdeiro, disposto a empreender e a atuar na vida cultural de sua cidade. Imediatamente começa a publicar poemas e triolés satíricos na imprensa pelotense. Em parceria com amigos, escreve para teatro por um longo tempo, com grande sucesso. Consolida sua reputação como intelectual proferindo conferências cívicas, uma moda da época.
Apesar da abastança que reinava na família, o escritor nunca quis viver de renda. Foram muitos os projetos empresariais em que se envolveu: foi despachante, comerciante, teve uma fábrica de cigarros, uma de café, uma destilaria, uma vidraria e chegou a investir pesado na extração de prata em Santa Catarina. O talento para as letras, porém, não o ajudou nos negócios. Falhou em tudo o que tentou e, assim, dilapidou a herança que recebeu do avô. Quando rompe a primeira década do século 20, João Simões está financeiramente aniquilado, trabalhando como professor e jornalista assalariado, morando de favor. Seu movimento intelectual, por outro lado, está mais avançado do que nunca. Surge, assim, em 1910, o Cancioneiro Guasca, primeira recolha de folclore popular gaúcho. Pouco tempo depois, começam a aparecer na imprensa pelotense alguns contos. Até que em 1912 é publicada a primeira edição dos Contos Gauchescos. No ano seguinte, a mesma editora lança as Lendas do Sul – desde 1949, os dois livros são publicados em conjunto.
O que teria feito a chave de um intelectual urbano virar para que todo o esforço da sua maturidade se voltasse para a matéria rural? Sua correspondência e sua biblioteca se perderam depois da morte prematura, aos 51 anos. Portanto, fica difícil especular essa resposta. O que se sabe é que o mundo rural sempre foi presente na rotina de João Simões. O pai, Catão Bonifácio, tomava conta de uma das fazendas do Visconde, em Uruguaiana, para onde o escritor viajou algumas vezes. Diz-se que foi nesse trajeto que ele ouviu, na companhia de Catão, o relato da lenda da Salamanca do Jarau. É ao pai, aliás, que ele dedica os Contos Gauchescos, além de homenageá-lo com o personagem Tandão Lopes, no conto Juca Guerra.
O fato é que Simões Lopes Neto recorreu ao universo campeiro de sua infância, mas não só a este. Voltou muito no tempo para fazer uma espécie de luto pelo mundo que, já àquela altura, morria. A lei da honra sobre a lei do estado, a imensidão do campo sem cerca, as disputas primitivas entre os homens por guerras ou por amores, o embate com a natureza, tudo está na obra de Simões. Obra essa que é narrada a partir de dentro, em linguagem que, é verdade, parece difícil, mas que uma vez enfrentada, oferece ao leitor uma experiência artística completa, que ultrapassa os muros do regionalismo.
Como ler Simões Lopes Neto
Depois de sua morte, em 1916, pouco se falou da obra do escritor pelotense. Foi em 1949 que a coisa começou a virar. Em um esforço notável, a Editora Globo publicou uma edição conjunta dos Contos Gauchescos e Lendas do Sul, como título de estreia de sua Coleção Província, que depois viria a publicar nomes como Érico Veríssimo. O ensaio de abertura dessa edição é do crítico Augusto Meyer, que revela a importância da obra no cenário da literatura brasileira considerada regionalista. Também nesta edição, um glossário feito por Aurélio Buarque de Holanda abre as portas para o texto.
Depois dessa, muitas outras reedições ocorreram. Novas obras, inclusive, foram descobertas e publicadas, como o livro de leitura infantil cujo narrador é um menino. As obras maiores de Simões, porém, seguem sendo os Contos e Lendas. Para mergulhar no universo construído pelo escritor, porém, é preciso compreender a sua linguagem – motivo pelo qual uma edição anotada é tão importante. A mais completa e acessível é a edição publicada em 2012 pela L&PM, com introdução, fixação de texto e notas feitas pelo professor Luís Augusto Fischer.
“Vancê está vendo bem, agora?
Vancê quer, paramos um nadinha. Com isto damos um alcezito aos mancarrões, e eu… desaperto o coração!
Ah! Saudade!… Parece que ainda vejo minha morena, quando no rancho do Chico Triste botei-lhe os versos…”
Trecho final do conto No Manantial
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