Edição 20 - 02.07.20
Por Romualdo Venâncio* | Fotos: Gabriel Quintão
A passagem de Roger Waters pelo Brasil no final de 2018, com sua turnê Us + Them, foi mais marcante do que se imaginava. As apresentações do baixista, vocalista e um dos fundadores do Pink Floyd – uma das bandas mais importantes do rock mundial – sempre surpreendem por conta da qualidade musical, da tecnologia audiovisual e até do posicionamento político do artista. Na cidade de São Paulo, por exemplo, às vésperas de uma eleição presidencial, ele conseguiu, em certos momentos do show, dividir o público de mais de 45 mil pessoas entre aplausos e vaias. Está mesmo na essência da arte ir além do entretenimento, em várias direções, e quebrar barreiras, inclusive socioculturais. A vinda de Roger Waters à capital paulista foi até uma oportunidade de conectar o bom e velho rock’n’roll com a cultura afro-brasileira. O baterista Joey Waronker e a vocalista Jess Wolfe, que estavam com Waters naquela turnê, foram à Vila Sônia, na zona oeste da cidade, acompanhados do percussionista Bruno Buarque, para conhecer o Instituto Tambor, uma referência brasileira, e até internacional, na fabricação artesanal de instrumentos de percussão.
Waronker já sabia da existência do Instituto Tambor pelo percussionista brasileiro Mauro Refosco, seu parceiro em outra banda, a Atoms for Peace, que conta ainda com o vocalista Thom Yorke (Radiohead) e o baixista Flea (Red Hot Chilli Peppers). Não por acaso, Refosco tem peças personalizadas em seu set de instrumentos. “Dá para sentir o carinho e o amor com que esses instrumentos são feitos, e isso reflete no som, com qualidade superior, e na música”, diz ele, descrevendo o trabalho de Luiz do Nascimento Camargo, ou Luiz “Poeira”, como é conhecido o artista que assina cada peça fabricada no Instituto, fundado por ele em 2008. Waronker também ficou deslumbrado ao conhecer o lugar: “Há um trabalho incrível sendo feito aqui”.
Refosco, que mora nos Estados Unidos e toca percussão também com o Red Hot Chilli Peppers, aproveitou a turnê do grupo californiano pelo Brasil em novembro 2013 para visitar Luiz Poeira e retirar os tambores que encomendara meses antes. O artesão só não esperava pelas companhias do percussionista. Refosco chegou ao Instituto com o baterista Chad Smith e o guitarrista Josh Klinghoffer. Se foi uma surpresa para o anfitrião, mais ainda para as visitas. “Pela agenda deles, só poderiam ficar por 15 minutos. Mas quando a assessoria avisou que faltavam cinco minutos, o Chad disse para cancelarem o compromisso seguinte”, conta Luiz Poeira. Chad Smith ficou mesmo muito impressionado. “Se eu pudesse compraria todos os instrumentos e levaria para Hollywood. São verdadeiras obras de arte feitas com conhecimento, amor e criatividade”, comentou o baterista.
Respeito às origens
Uma visita ao Instituto Tambor traz mesmo a sensação de estar em um templo da cultura africana. Quando se entra na sala onde estão expostos os tambores, o showroom, o tempo parece parar, mesmo que por alguns segundos, pela mistura de formas, cores e detalhes dos instrumentos. E pelas histórias entalhadas por Luiz Poeira. Além disso, há uma fina sintonia entre a tranquilidade do espaço com a forma serena do artista, que é muito paciente e atencioso. Essa característica explica um pouco o respeito conquistado junto a percussionistas dos mais diversos segmentos culturais, pois a compreensão ao ouvir cada um dos clientes traduz com fidelidade aquela demanda em um instrumento único. O fato de sempre entregar uma peça personalizada, adequada ao perfil e à maneira de tocar de cada músico, garante a Poeira ter em sua lista de clientes, além do Bruno Buarque e do Mauro Refosco, nomes como Ari Colares, mestre Gabi Guedes, Luiz Guello, Mônica Salmaso e Maurício Badé.
A fabricação artesanal, instrumento por instrumento, sem entrar na produção em série, foi uma opção de Luiz desde o início. Ainda que isso torne o processo todo mais lento, sempre acreditou que seria a melhor maneira de valorizar seu trabalho. “Quando você produz em série para fornecer às lojas de instrumentos, por exemplo, pagam pouco por suas peças e depois vendem por um valor três ou quatro vezes maior”, comenta. Um atabaque mais sofisticado, com madeira nobre, customizado, pode levar até 20 dias para ficar pronto, mas dependendo da lista de espera, a entrega pode levar de três a cinco meses.
É por essa razão também que Poeira não produz comercialmente os instrumentos que aprendeu a construir quando esteve na África. Como o krin, fabricado a partir de escavação e entalhe de uma peça de madeira maciça. “É um processo trabalhoso e demorado, que não teria a devida valorização aqui, nem da matéria-prima nem da mão de obra”, avalia. No entanto, o período que passou na Guiné, em janeiro de 2013, elevou sua carreira a um patamar bem diferente do ponto de vista cultural. Por mais que já tivesse um reconhecimento, o fato de ter ido beber direto da fonte tem outro impacto, fortalece a credibilidade. “A vivência valeu muito pela experiência de ver como são feitos os tambores de maneira tradicional, com ferramentas tradicionais, tudo na raça. Eles entram na mata, cortam a árvore e trabalham com a matéria-prima bruta. O pouco tempo que fiquei lá foi muito importante.”
O aprendizado também foi bastante desafiador para Luiz Poeira no continente africano, a começar pela comunicação. Primeiro, quando chegou por lá até entenderam o que estava buscando, que técnicas queria aprender, mas acabou sendo apresentado a algumas pessoas que não trabalhavam exatamente com o que queria. E mesmo depois de alguns dias, quando conseguiu chegar aos mestres Kenda e Amoudu, que tinham o que procurava, havia a barreira do idioma. Seu interlocutor, Ibu Camará, ainda falava francês, mas Luiz Poeira não. Aos poucos, começaram a se entender por gestos, mas foi o trabalho que os aproximou de verdade. “No início, os mestres nem me deixavam pegar em nada, com medo de que eu me machucasse, pois são ferramentas bem rústicas. Mas, ao verem que eu sabia trabalhar, me deram mais espaço”, lembra. “Acabei ficando 15 dias com eles e aprendi a fazer as coisas de uma maneira mais tradicional.”
Tradição também evolui
Poeira considera Rômulo Nardes como seu mestre na arte dos tambores. “Foi ele quem me deu o direcionamento para fazer o trabalho”, afirma. Ambos chegaram a ser sócios no ateliê, mas Nardes passou a se dedicar exclusivamente a tocar os instrumentos. Também foi ele quem provocou o Luiz a otimizar o que a tradição já trazia de bom. Um exemplo é o ilú, tambor sustentado por uma base de três hastes de metal. “Propus que ele fizesse um ilú melhorado, aprimorado, sem deixar de lado a tradição”, diz Nardes. E foi o que aconteceu. O artesão desenvolveu o instrumento com novas opções de medidas e um sistema de ferragens com regulagem de altura para as hastes, permitindo ao músico escolher a posição mais confortável para tocar e ter maior facilidade tanto para transportar quanto para guardar o instrumento. Outro exemplo é a forma de prender as peles dos tambores, que, além da sonoridade, prioriza o conforto de quem toca, tem uma anatomia pensada para isso.
Esse cuidado vem desde a escolha das matérias-primas, sobretudo madeiras e peles (bovina, caprina e de búfalos). No caso das madeiras, são utilizadas caxeta e mogno, porque aceitam a envergadura e os entalhes, que são bem particulares e se tornaram uma espécie de marca registrada do Instituto Tambor. “Até gostaria de ter outras opções de madeiras. Já testamos cedro-rosa, cedrinho, eucalipto, mas por enquanto essas duas é que melhor atenderam”, explica Luiz Poeira. A madeira é usada sempre em ripas, pois os tambores são moldados pelo processo de tanoaria, o mesmo aplicado na produção de barris. Dessa forma, o aproveitamento é mais eficiente, porque no processo de escavação boa parte vira lasca e acaba sendo desperdiçada.
A caxeta, comprada de madeireiras, é usada nos instrumentos de maneira geral por ser leve, macia e clara, o que permite a aplicação de pirografia, a cargo de outro artista, Rafael Gonçalves. Muitos tambores são customizados com desenhos feitos dessa forma. “Comecei até a trabalhar com pigmentação para destacar ainda mais os detalhes”, explica Poeira. Já o mogno é de uma remessa de uns 30 anos que foi adquirida de um mestre que fabricava tambores japoneses. Ou melhor, da família dele. “Quando eu soube do trabalho do mestre Sato, quis conhecê-lo. Me disseram que seria difícil, que ele não me receberia, pois era muito reservado. Arrisquei. Ele me recebeu só no portão, a princípio, mas a conversa evoluiu, fui conquistando a confiança dele e acabou me convidando para entrar”, conta o artesão. “Quando ele morreu, fiz uma negociação com a família, pois não iriam utilizar aquela madeira. Hoje, esse mogno é destinado a uma série limitada de instrumentos de madeira especial – atabaque, conga, ilú, dunun e ashiko.”
Reverência à cultura
O primor de Luiz Poeira na fabricação dos instrumentos é um reflexo também de seu respeito pelas origens e pelas vertentes dessa cultura afro-brasileira, sobretudo a capoeira. Aliás, foi por aí que tudo começou. Ele é também capoeirista, faz parte dos Irmãos Guerreiros, tradicional grupo de Capoeira Angola formado no município de Taboão da Serra (SP), e dá aulas de forma voluntária. O primeiro contato com a arte veio aos 11 anos, na escola. “Havia uma professora, a Cristina, que era dançarina e tinha métodos diferentes do convencional, do que a gente via sempre. Um dia ela convidou um professor de capoeira, o mestre Alcachofra, para uma demonstração e eu adorei”, lembra. “Pedi à minha mãe para treinar e fiquei uns dois anos.”
O reencontro com a capoeira aconteceu um tempo depois, aos vinte e poucos anos. E esse novo contato trouxe à tona o talento na fabricação de instrumentos, que começou pelo berimbau, passou para o caxixi e depois outras peças. Até que veio a arte do entalhe, de forma autodidata. “Um dia cheguei a sonhar que era entalhador”, conta ele. O início foi na base da experimentação, buscando oportunidades de utilizar ferramentas e matéria-prima que estivessem ao seu alcance. Uma das principais referências foi um livro que encontrou do artista argentino Hector Julio Páride Bernabó, o Carybé. Por ter passado boa parte da vida em Salvador, na Bahia, Carybé manifestava em sua arte a forte relação com a cultura afro-brasileira, tanto que criou diversas obras ligadas ao candomblé e à própria capoeira, o que atraiu e estimulou ainda mais Luiz Poeira.
Foi a capoeira que lhe rendeu o apelido “Poeira”. Por conta da dedicação e do comprometimento com o aprendizado, houve um período em que circulava por todos os lugares que pudesse para ver, conhecer e jogar capoeira, participava de todas as rodas que conseguisse, e os outros capoeiristas percebiam tal empenho. Em uma dessas ocasiões, um dos professores, o mestre Elefante, perguntou se poderia lhe dar um apelido – disse que seria Poeira, pois estava em todo lugar.
O reconhecimento conquistado no meio artístico foi uma recompensa pela trajetória desafiadora. Luiz, que hoje tem 46 anos, é pai e avô, nasceu na cidade de São Paulo, em uma família de origem humilde, e começou a vida profissional como office boy, tal qual muitos garotos nessa mesma condição, nos anos 1980. Depois se tornou motoboy, dividindo-se entre as entregas para diferentes empresas durante o dia e para pizzarias à noite. E já tentando encaixar nessa jornada o início da fabricação dos instrumentos. Foi exatamente um dia ruim nessa rotina que o levou a rever as prioridades. Ao fazer uma entrega de pizza em uma noite chuvosa, já tarde da noite, foi repreendido por um cliente por ter usado o elevador social. O apartamento ficava no 13º andar e o elevador de serviço estava quebrado. “Uma mulher abriu a porta para receber o pedido, e ouvi a voz de um homem lá de dentro reclamando. Ele dizia, gritando, que eu deveria ter subido pelas escadas e não pelo elevador social”, recorda.
Aquela situação foi um divisor de águas. Dali para a frente, as pernadas e batucadas foram ganhando cada vez mais espaço na vida de Poeira, até assumirem o merecido protagonismo. A arte agradece.
*Colaborou Tobias Ferraz
TAGS: Instituto Tambor, Joey Waronker, Luiz Poeira, Mônica Salmaso, Roger Waters