Para onde vai esse barco?

Por Flávia Tonin Foi o maior embarque já realizado a partir do porto de Rio Grande (RS) para a Jor


Edição 20 - 22.06.20

Por Flávia Tonin

Foi o maior embarque já realizado a partir do porto de Rio Grande (RS) para a Jordânia, com aproximadamente 20 mil bovinos, mas isso não assustava a equipe responsável pela liberação. O processo é uma rotina de trabalho, visto que têm crescido os embarques no porto. Só no ano passado foram 15 navios que saíram desse destino, superado apenas pelo estado do Pará, que é o principal ponto de partida dos navios boiadeiros. Lucrativa e polêmica, a exportação de gado vivo é uma atividade em expansão no Brasil e movimenta cerca de meio bilhão de dólares ao ano (leia quadro na pág. Xx). O calor dos debates aumenta a cada embarque, com efeitos diretos na atenção de autoridades e da opinião pública sobre a forma como são realizados. A megaoperação de Rio Grande, em março passado, retrata bem essa situação.

Algumas embarcações são velhas conhecidas dos que fazem a vistoria no cais gaúcho – e os fiscais já seguem aos pontos críticos. O Bader III, porém, ainda não tinha atracado por ali. Apenas mais recentemente, após reformas, o porto ficou apto a receber navios maiores. Como o embarque foi em março último, além dos uniformes, os três fiscais ostentavam um novo adereço: as máscaras para proteção individual devido à pandemia de Covid-19, que se iniciava no Brasil. Ela ainda não havia refreado as exportações.

Essa seria a última etapa do processo e a mais cansativa, pois tudo teria de ser coordenado. Pela via rodoviária, chegavam 211 caminhões. O primeiro passo foi entrar no navio, seguir para os compartimentos mais baixos e iniciar a vistoria. Nos vários setores, que precisam ser revistos, os fiscais analisavam a quantidade de alimento disponível, a enfermaria e a qualidade de água em cada um dos cinco pisos superiores. Na lista de checagem, atenção para a ventilação, de forma a evitar o acumulo de amônia. Outro ponto observado era a luminosidade, para permitir a vistoria pela tripulação.

Foram cerca de 29 horas de trabalho entre a primeira inspeção até a liberação para a primeira carga. A fiscalização pediu vários ajustes, a começar pela limpeza de compartimentos, realocação de alimento e descarte de medicamentos. Há vezes em que as solicitações são mais complexas, como o isolamento de baias que tenham paredes ou pontas que possam machucar os animais. Mesmo pequenas reformas podem ser solicitadas, o que não foi o caso dessa vez. Tudo depende do olhar do auditor responsável pela operação.

Liberado, começa o desembarque-embarque, que, neste caso, durou um pouco menos de três dias. É assim chamado porque os animais saem de caminhões que foram lacrados nas fazendas, chamadas de Estabelecimentos de Pré-Embarque (EPE), e sobem no navio, onde podem permanecer até um mês na viagem até o porto de destino. Depois, desembarcam novamente no país comprador e seguem para a fazenda ou abatedouro. Por mais que se sigam todas as normas, é inegável que a viagem, do começo ao fim, é realmente longa e estressante.

Como são 20 mil animais e todos foram inspecionados antes de os caminhões serem lacrados, uma vez embarcados eles passam por uma checagem por amostragem, com leitura eletrônica de brinco para confirmação de dados. A equipe da vigilância também pode verificar como estão as condições internas e fazer orientações para que os animais sejam realocados. Os ajustes ocorrem em concordância com o capitão do navio, já que há a necessidade de estabilidade da embarcação e o cumprimento da legislação. Animais mais fracos podem ser enviados à enfermaria. Alguns deles, até desembarcados. Essas orientações vão depender da experiência e do olhar de quem está sob o comando de cada operação. Com todos a bordo, assim que possível, sem perda de tempo, o navio segue para seu destino.

A concentração atrai a atenção

O processo de exportação é quase um plano de guerra. Chega a durar mais de 60 dias, com etapas de negociação entre países, definição de critérios dos animais, procura e compra nas fazendas, exames, exigências sanitárias, documentações diversas, aprovação dos compradores, além da coordenação logística para que todos estejam aptos para o embarque na mesma data. Mas é a etapa a bordo do navio que mais atrai os holofotes. Seja pela magnitude dessas embarcações, pelo volume de animais envolvidos, pela distância percorrida ou mesmo pela falta de transparência sobre o desenrolar da viagem.

Pouco se sabe sobre os dias no mar. Cada viagem resulta em um relatório, mas mesmo os envolvidos com o processo gostariam de mais informações para subsidiar a melhoria de seu trabalho. As dúvidas sobre as condições de transporte são as causas das maiores controvérsias em todo o mundo. E, quando há problemas, a tragédia é inevitável, seja por acidentes e morte dos animais ou por algum entrave burocrático que mantém a carga viva em alto-mar.

Por conta disso, os principais países exportadores são permanentemente pressionados a aperfeiçoar seus sistemas de fiscalização e serem mais rigorosos nas exigências aos transportadores. A Austrália é um dos países sempre citados como exemplo ao se falar de exportações em navios, pois precisou paralisar o comércio e fazer adequações para depois retomar a atividade. Ainda assim, a associação local de médicos veterinários faz críticas ao processo.

No Brasil, o setor passou por dois reveses marcantes. Em 2015, houve um naufrágio de um navio com 5 mil bois a bordo, em Barcarena (PA). Foi a partir desse acidente que a ONG Fórum Animal, assim como várias outras, passou a acompanhar mais de perto as exportações de animais vivos, informa a médica veterinária Vânia Nunes, diretora técnica da ONG. Outro episódio mais recente, em 2018, foi o do navio Nada, em Santos (SP). A movimentação de ativistas em torno das condições da embarcação chamou a atenção da opinião pública e acabou resultando na paralisação das exportações por vários dias. Na época, o relatório de uma perita judicial mostrava que os animais embarcados no navio Nada estavam “em péssimas condições de bem-estar”, o que motivou o professor Mateus Paranhos, da Unesp de Jaboticabal (SP), a elaborar um manifesto, endossado por outros 13 especialistas de universidades brasileiras, destacando haver falta de “regulamentações claras e detalhadas sobre como tratar a questão do bem-estar dos animais de produção nos diferentes cenários”.

Questionado, após dois anos, Paranhos, um dos mais importantes estudiosos brasileiros no tema, disse que “após o manifesto não houve mudanças expressivas relacionadas à questão do bem-estar dos animais”. Ele defende que padrões mínimos deveriam ser adotados, levando-se em conta as características e as necessidades dos animais. “O que está em jogo são os limites, até onde nós vamos”, questiona. Na sua visão, “se regras mínimas que levem em conta o bem-estar animal forem adotadas, é provável que torne inviável a exportação dos bovinos vivos para fins de abate, pois a capacidade de carga dos navios seria reduzida”. Em mais longo prazo, teme que as falhas verificadas nas condições atuais das exportações possam se tornar um “telhado de vidro” para toda a cadeia produtiva, “se expondo a críticas constantes e contundentes”.

A professora e coordenadora do Laboratório de Bem-estar Animal da Universidade Federal do Paraná, Carla Molento – também signatária do manifesto e, declaradamente, contra as exportações de animais vivos –, explica que o grau de bem-estar “depende de informações precisas sobre indicadores relevantes, com base em informações técnicas coletadas a partir de exame dos animais e de condições das instalações que se encontram durante todo o processo”. Ela defende que sejam considerados quatro grupos de indicadores. Inclusive elaborou, em novembro passado, uma proposta de avaliação com parâmetros que consideram itens nutricionais, ambientais, de saúde e de comportamento. “Precisamos de diagnóstico real e não de falas generalistas”, afirma.

O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) reconhece que um dos pontos críticos que merecem atenção dos exportadores são as condições de bem-estar animal e que a subjetividade do tema é uma das dificuldades para o cumprimento de sua função de auditor. Segundo a Coordenação de Trânsito e Quarentena Animal do Departamento de Saúde Animal da Secretaria do Mapa, “nas operações de exportação de animais vivos, não há dificuldade em certificar o cumprimento de protocolos sanitários e zoossanitários. Entretanto, para garantir que são cumpridas todas as exigências para o bem-estar das espécies pecuárias, há um grau de subjetividade que é difícil de mensurar”, informou à reportagem. Em sua explicação, a Coordenação afirma que “o auditor pode ter dificuldade de avaliar se o conjunto de aspetos necessários para o bem-estar das espécies pecuárias está sendo respeitado”. O órgão informa, porém, que essa dificuldade não impede a atuação para prevenir qualquer prática que submeta os animais à crueldade.

Na visão do presidente da Associação Brasileira dos Exportadores de Animais Vivos, Ricardo Barbosa, “o objetivo da pecuária é a produção de proteína de qualidade”. “Se maltratarmos o animal, ele não produz”, diz. E reitera que o setor segue regras básicas mundiais.

O setor se movimentou

O debate em torno dos processos de exportação levou o setor a fazer adequações, principalmente após a publicação da Instrução Normativa nº 46/2018. Houve ajustes nas EPEs e nos portos e, no final do ano passado, o ministério também organizou treinamentos voltados às equipes dos portos e aos exportadores. Segundo fontes, os embarques passaram a contar com um médico veterinário durante a viagem, algo que nem sempre existiu.

A médica veterinária Mirela Janice Eidt, fiscal federal agropecuária do Mapa, cujo doutorado analisou aspectos comerciais e operacionais das exportações brasileiras de bovinos vivos via marítima no período de 2012 a 2016 e que continua acompanhando o setor, ressalta que há melhorias. “Na época da pesquisa, a maioria dos navios era adaptada de transporte de carga, com convés de carga abaixo do principal”, afirma. Essas embarcações costumam ser chamadas de “navios sucata”. “Hoje muitos são acima, com ventilação e iluminação natural, além da automatização de cochos e drenagem. Precisamos que apenas navios bons venham para o Brasil”, diz. Ela também cita a importância de melhor infraestrutura portuária e nisso inclui o treinamento da equipe do porto visando a segurança coletiva, embarcadouros com requisitos mínimos de segurança para o serviço público e disponibilidade de áreas para aparte. “O Brasil está atrás de concorrentes quando se compara a estrutura portuária e as instalações”, afirma.

Atuando no setor há mais de dez anos, Jeferson de Freitas Rosa, gerente operacional de uma empresa exportadora no Pará, afirma que os produtores também buscam fazer adequações para atender o mercado. “A fazenda precisa seguir critérios para que o gado seja comprado”, resume, citando exigências ambientais e de bem-estar animal. Para os locais de quarentena, a normativa de 2018 trouxe uma lista com 14 itens sobre as características do local, algumas, inclusive, com recomendações técnicas e medidas. “A exportação é um mercado de oportunidade, mas não é fácil e barato manter-se nela”, analisa Rosa.

São nessas estações que os animais ficam em espera até o embarque no navio. Nelas ocorre o maior trabalho de fiscalização, pois há a vistoria um a um e checagem dos exames, que variam de acordo com as exigências dos países compradores. Quanto maior o navio, maior a concentração de animais. A equipe de trabalho, porém, é sempre a mesma. “Nessa hora, faltam auditores e pessoas para atividade de apoio”, comenta Soraya Macedo, diretora da Delegacia Sindical dos Fiscais Federais do Rio Grande do Sul. Para as exportações de bovinos, sugere que, a exemplo de outras cadeias como a de aves, os laudos fossem provenientes de laboratórios certificados pelo Mapa. “Aumentaria o respaldo para o serviço prestado”, comenta Soraya.

O complexo modus operandi das exportações é como uma moeda com dois lados bem definidos. Há os que a olham pelo prisma da atividade econômica e as divisas que a atividade traz para o País, juntamente com a cadeia de empregos. Por outro lado, os defensores dos animais não veem a atividade com bons olhos, pois não acreditam que há condições de bem-estar, seja no navio, sejano abate do país comprador.

Ao produtor resta decidir se opta por cara ou coroa. A reportagem da PLANT ouviu falas diferentes, ambas de quem tira seu sustento da pecuária. Há os que cumprem todas as suas obrigações internas e não se incomodam com o destino após a saída dos animais da fazenda. “Afinal, já temos que nos preocupar com tantas licenças e obrigações.” Outros, que optam por não exportar, dizem acreditar que “a carne na prateleira é proveniente de seres vivos que precisam ser olhados com respeito. Exigem as boas práticas de produção do começo ao fim.” O destino dessa viagem é uma escolha de cada um.

 

Um negócio de oportunidade.

A exportação de animais vivos no Brasil é um negócio que ultrapassou as 100 mil cabeças a partir de 2005, chegando a 784 mil cabeças em 2018, quando arrecadou US$ 529 milhões. “No ano passado, o mercado recuou, principalmente pela redução das compras pela Turquia, por desafios institucionais e de documentação”, afirma o presidente da Associação Brasileira dos Exportadores de Animais Vivos (Abreav), Ricardo Barbosa. Segundo Barbosa, o setor sente também um refreamento por causa das restrições de trânsito causadas pela pandemia. “Quando voltarem as atividades, vamos ter o dobro de trabalho.”

Com base na análise de dados de mercado, a consultora Lygia Pimentel afirma que o percentual exportado de gado vivo é muito pequeno, nem chega a 2%, para interferir em uma regulação de preço de mercado. “Há mais impactos regionais em praças próximas dos exportadores”, relata.

E os mercados locais sentem o mesmo. Logo após o embarque para a Jordânia, em março, o Sindicato das Indústrias de Carnes e Derivados do Rio Grande do Sul divulgou documento que, entre outros dados, informou “que o volume que deverá ser exportado no ano é suficiente para suprir cinco frigoríficos médios, que geram 1,5 mil empregos diretos e 6 mil indiretos”.

Para o produtor que se enquadrar dentro dos requisitos, a oferta pode ser tentadora, pois o preço de compra é, normalmente, mais valorizado do que a média local e o pagamento, muitas vezes à vista. O tipo de animal também varia muito entre os contratos, mas o mais procurado, segundo a Abreav, é o gado com sangue europeu, com mais de 250 kg e de alta qualidade.

 

Trânsito de dores e doenças

A tensão causada pela Covid-19 no mundo aflora também a preocupação com doenças que possam circular entre as nações pelos navios boiadeiros. Esse é um dos argumentos da defesa animal contra as exportações. Elencam ainda as questões de bem-estar animal durante a viagem e também as formas de abates dos países compradores.

“Nossa luta não parou e fazemos o movimento possível para suspender as exportações”, afirma Vânia Nunes, diretora técnica do Fórum Nacional Animal. Inclusive tramita no Senado um projeto de lei para o fim da atividade. As ações continuam em outras esferas jurídicas. No fim do ano passado, por exemplo, a entidade participou de uma audiência conciliatória na Justiça Federal sobre o tema.

“Entendemos que a prática é cruel e não agrega valor. Há o risco de aparecimento de doenças e os animais são submetidos a situações de estresse. Nos locais de destino, inclusive, há relatos de vulnerabilidade de pessoas e animais”, afirma.

TAGS: Bem-Estar Animal, gado vivo, Pecuária, transporte