15.04.20
Por Romualdo Venâncio
Saqueados pela pirataria, os setores de defensivos agrícolas e sementes, dois dos principais negócios de insumos do agro brasileiro, têm acumulado prejuízos de toda ordem. A comercialização ilegal desses itens gera perdas financeiras ao produtor e à cadeia produtiva; compromete o desempenho das lavouras no curto, médio e longo prazos; mina a arrecadação de tributos em todos os níveis; coloca em risco a segurança dos alimentos e dos consumidores; e pode prejudicar a imagem do agro nacional no mercado global. O cenário fica ainda pior por conta da dificuldade para combater e prevenir o problema, seja pela sofisticação e audácia dos criminosos, seja pela falta de infraestrutura das autoridades, o que exige uma ação cada vez mais estratégica e integrada de órgãos governamentais, forças policiais, indústria e entidades de classe. Para especialistas do setor, o comprador desses produtos tem consciência, com raríssimas exceções, do que está fazendo: quer baratear sua atividade. No final das contas, por maior que pareça a economia – um defensivo pirata pode custar a metade do preço daquele que está dentro da lei –, somente as quadrilhas por trás desse negócio ilícito é que levam vantagem. E não é pequena.
O agricultor tem grande responsabilidade nessa situação, tanto para o bem quanto para o mal, pois é ele quem decide comprar ou não insumos piratas. E, quando opta por adquirir um produto ilegal, seja qual for a sua motivação, assume o risco de integrar essa cadeia criminosa, no papel de receptador, e fica sujeito às penalidades cabíveis. Em geral, o objetivo e a redução de custos pontual, no exato momento em que planta, cultiva ou colhe. Mas, nessa situação, aquela história de que o barato sai caro pode ter consequências muito pesadas. “O comércio de defensivos piratas não é só um problema agronômico, é um problema de polícia, de crime organizado. Quem vende esses produtos não tem escrúpulo, e vem acompanhado de toda uma cadeia de criminalidade, tráfico de armas, drogas. A constatação da comercialização é apenas a ponta do iceberg”, comenta José Otávio Machado Menten, presidente do Conselho Científico Agro Sustentável (CCAS), secretário de Meio Ambiente de Piracicaba (SP) e professor sênior da Esalq-USP. “Temos inclusive um trabalho de orientação com os alunos sobre os riscos e a dimensão desse crime organizado”, acrescenta.
Segundo Menten, estima-se que os produtos ilegais, que em geral derivam de contrabando ou falsificação, representam entre 20% e 25% do segmento de defensivos agrícolas. Considerando que esse mercado gera negócios em torno de R$ 42 bilhões por ano, basta uma conta rápida e simples para ver que o crime pode faturar alto com o agro. Se a contabilidade for mais adiante, fica difícil precisar os prejuízos. Além de o agroquímico ilegal não apresentar a eficiência esperada na proteção das lavouras, não há como ter garantias sobre sua composição química, a concentração do princípio ativo pode ser insuficiente ou exagerada. “Mais que isso, existe o risco de conter um princípio ativo proibido no Brasil ou ainda ser um produto fitotóxico, que vai queimar as folhas das plantas e prejudicar o desenvolvimento”, diz o especialista.
Peso da cumplicidade
O primeiro documento que o agricultor precisa ter para adquirir um defensivo é a receita agronômica, fornecida por um profissional capacitado e legalmente habilitado. O segundo é a nota fiscal entregue pela agrorrevenda no momento da compra. “Quando acontece um caso de mau funcionamento de um produto na lavoura, o agricultor aciona o revendedor ou a cooperativa que o atendeu e, depois, a indústria. A partir daí ele é ressarcido ou indenizado, dependendo da análise do problema. Quando está com contrabando ou falsificação, não tem com quem reclamar”, alerta Fernando Marini, proprietário da Fehmar Assessoria Empresarial.
O produtor não consegue sequer fazer a destinação correta da embalagem do defensivo, pois é necessário comprovar a legalidade da compra daquele produto. Ou seja, de forma indireta, a pirataria impacta até no Sistema Campo Limpo, programa de logística reversa gerenciado pelo inpEV (Instituto Nacional de Processamento de Embalagens Vazias) que faz a destinação ambientalmente correta de 94% das embalagens de agroquímicos comercializados no Brasil. Desde 2002, já foram coletadas mais de 550 mil toneladas desses recipientes. “Para se livrar das embalagens, quem usa produtos piratas chega até a jogá-las em outra propriedade, transferindo o risco de ser processado para o dono dessa fazenda. Também descartam na água, enterram ou queimam e depois enterram. Em muitos casos, a investigação chegava ao local do crime por conta dos restos de fogueiras em fazendas”, diz Marini, que tem um envolvimento muito próximo com esse tema.
Durante 14 anos, o empresário e engenheiro agrônomo trabalhou no Sindiveg (Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal) acompanhando de perto essa movimentação, inclusive junto a autoridades dentro e fora do País. Marini foi contratado pela entidade, em 2005, exatamente para ser o gestor de uma campanha de combate ao contrabando. Ele conta que o gatilho para essa iniciativa foi a venda ilegal do herbicida Clorimuron, fabricado pela DuPont (hoje Corteva). “Ao perceberem que o problema não ficaria só no Clorimuron, as indústrias decidiram formar, dentro do Sindiveg, o Comitê Contra os Defensivos Ilegais”, diz. Naquela época, no início dos anos 2000, lembra Marini, produtos ilegais vindos do Paraguai entravam com facilidade no País. Essa fronteira continua a ser um grande desafio.
Um estudo realizado pela Revista Brasileira de Criminalística confirma que o Paraguai é responsável pela maior parte dos produtos contrabandeados que entram em quase todos os estados brasileiros, enquanto o Uruguai tem essa mesma relação com o Rio Grande do Sul. O levantamento foi feito com base em laudos periciais da Polícia Federal entre janeiro de 2012 e outubro de 2017, e apurou que houve 1.224 apreensões de diferentes agroquímicos naquele período. Cerca de 40% do material apreendido passou por análises químicas e, desse volume, mais de 18% era falsificado. Pelos rótulos desses defensivos ilegais, pode-se identificar sua origem: 49% eram brasileiros, 39% paraguaios e 14% uruguaios.
Por se tratar de um problema tão sério e complexo, é preciso ampliar o ângulo de visão, pois vai além das fronteiras na América do Sul. Marini comenta que o principal fornecedor de Paraguai e Uruguai é a China. “Não estou criticando os produtos chineses, mas há uma questão de qualidade e de diversas classificações. Tivemos um caso de apreensão de 100 quilos de um produto taxado como benzoato de emamectina [utilizado no combate à lagarta Helicoverpa armigera] e os exames laboratoriais identificaram 25 ingredientes ativos, dentre eles um herbicida”, diz o empresário, que já participou de encontros na China, com o Ministério de Agricultura chinês, sobre combate ao contrabando.
Efeito cascata
No segmento de sementes, a pirataria traz um risco enorme de comprometer todo o desenvolvimento da lavoura, pois é o ponto inicial da atividade. Se a genética que é plantada na terra não tem garantia de qualidade, toda a tecnologia aplicada dali para a frente pode ser desperdiçada. Em termos financeiros, o prejuízo causado pelos produtos piratas no mercado nacional de sementes é estimado pela Abrasem (Associação Brasileira de Sementes e Mudas) em R$ 2,44 bilhões por ano. A entidade vem trabalhando para destacar a importância do uso de sementes certificadas e conscientizar o setor, sobretudo os agricultores, em relação aos riscos da utilização de material pirata.
Entre as ações da entidade nesse sentido está a criação de uma campanha nacional, que traz como lema “Semente pirata espanta a produtividade”. Outra iniciativa foi o lançamento da cartilha Pirataria de Sementes: ilegalidade de A a Z, publicação que está disponível para download no site da instituição. Entre os problemas consequentes do uso de sementes piratas, a cartilha destaca a falta de garantia de qualidade, o risco financeiro pelo fato de a lavoura não poder ser segurada, a disseminação de pragas e doenças entre propriedades e regiões, a introdução de pragas e doenças quarentenárias que não existem no País e o não recolhimento de tributos e royalties, o que acaba prejudicando os investimentos em pesquisa e o avanço do melhoramento genético.
Jean Carlos Cirino, diretor administrativo da Apassul (Associação dos Produtores e Comerciantes de Sementes e Mudas do Rio Grande do Sul), comenta que o setor alcançaria um potencial financeiro de R$ 766 milhões, por safra, com arroz, trigo e soja se nas três culturas fossem utilizadas apenas sementes certificadas. “Esses recursos poderiam circular entre os integrantes da cadeia, gerando mais pesquisa e desenvolvimento, o que a médio e longo prazos certamente se traduziria em produtividade para o agricultor”, diz. Infelizmente, essa estimativa não pode se concretizar, pois a realidade é bem diferente. De acordo com estatísticas da entidade sobre a participação de grãos piratas na produção de sementes no estado, o arroz apresenta 43% e a soja 15%, ambos no período 2017/18, e o trigo 14%, em 2018.
Diferentemente do setor de defensivos, em que os produtos piratas são fabricados, no caso das sementes a pirataria envolve organismos vivos que vêm da própria lavoura. É destinar à semeadura grãos que não deveriam ter essa finalidade, o que só aumenta a responsabilidade do produtor. “Quem tem o poder de mudar essa situação é o agricultor, pois é ele quem decide que tipo de semente vai adquirir”, comenta Jean Carlos. Mas é claro que o segmento como um todo também é responsável, integrado com os órgãos de fiscalização. “Acredito que há mais envolvidos do que imaginamos, possivelmente podemos citar a Polícia Rodoviária Federal, que trabalha na fiscalização de transporte, e a Receita Federal, que atua em questões de evasão tributária.”
A opinião do executivo da Apassul é compartilhada por Oribel Silva, diretor executivo da Apasem (Associação Paranaense dos Produtores de Sementes e Mudas). “Todos são responsáveis pelo combate à pirataria de sementes, pois o impacto econômico atinge a todos, não apenas o nosso setor. O prejuízo social, por exemplo, é enorme, estimado em R$ 228,4 milhões de tributos que deixam de ser recolhidos”, afirma. Para ilustrar a dimensão da pirataria de sementes no Paraná, Oribel fala sobre o percentual de produtos certificados. Ele cita, por exemplo, que esse índice é de 15% no feijão, 6% na soja, 70% no trigo e 92% no milho.
Além do trabalho de orientação e conscientização, que no caso da Apasem é multiplicado pelas cooperativas associadas, há uma permanente contribuição com a fiscalização, atribuição dos órgãos específicos. “Sabemos das dificuldades para se realizar as fiscalizações, por isso a Apasem compila as denúncias e abre protocolos junto aos órgãos responsáveis”, comenta Oribel. No estado, quem tem essa função fiscalizadora é a Adapar, a Agência de Defesa Agropecuária do Paraná, órgão vinculado à Secretaria de Agricultura e Abastecimento. Mas a ação é limitada apenas à comercialização. Como determinado pela Lei 10.711/2003, a fiscalização na produção e no uso das sementes piratas fica na estância federal, a cargo do Mapa. Isso não impede a colaboração entre ambos. “Atuamos por denúncia ou quando temos acesso a algum documento que indique a existência de pirataria. Mas se recebermos alguma informação de irregularidade na produção ou no uso, fazemos a classificação e repassamos ao Mapa. E o mesmo acontece da parte deles”, explica Afonso Sikora, fiscal de Defesa Agropecuária da Adapar.
As denúncias são um instrumento poderoso nessa guerra contra a pirataria. E, quando bem fundadas, acompanhadas de informações reais e precisas, acabam tornando mais fácil e ágil o trabalho das autoridades. O combate passa a ser mais assertivo. Mas, para Jean Carlos, isso também é um desafio, porque a denúncia ainda é uma espécie de tabu para os brasileiros. O diretor da Apassul acredita que muita gente ainda veja essa atitude como algo que possa prejudicar alguém ou tenha medo de sofrer algum tipo de represália. “Essa é uma visão equivocada, pois a denúncia tem por objetivo defender aqueles que estão atuando de maneira correta, bem como o bom funcionamento das leis e normas que regem nossos direitos e deveres”, afirma. “Gosto muito de uma frase de Benjamin Disraeli, escritor e político britânico que morreu em 1881, que diz que o momento exige que os homens de bem tenham a audácia dos canalhas.” Também foi Disraeli quem disse: “Quando os homens são puros, as leis são desnecessárias; quando são corruptos, as leis são inúteis”.
Definições de semente
Na opinião de Jean Carlos Cirino, diretor administrativo da Apassul (Associação dos Produtores e Comerciantes de Sementes e Mudas do Rio Grande do Sul), para que o agricultor possa contribuir no combate à pirataria, é fundamental conhecer as opções de sementes à sua disposição.
Semente certificada – é produzida dentro no Sistema Nacional de Sementes e Mudas (SNSM), seguindo todos os padrões e normas regidas pelo Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa) e envolvendo toda uma cadeia de produção – biotecnologia, obtentores vegetais, produtores de semente, comerciantes e prescritores – que é remunerada pelo seu trabalho e o agricultor tem benefício pelo incremento de produtividade em sua lavoura.
Semente para uso próprio – o agricultor salva ou reserva parte de seus grãos para semear em sua própria área na safra subsequente, seguindo normas e procedimentos estabelecidos pelo Mapa. Subentende-se que ele não tem interesse no desenvolvimento da cadeia de sementes e acredita que sozinho conseguirá melhores resultados. Esta opção traz o risco da estagnação de patamares produtivos, pelo desestímulo ao desenvolvimento de novos cultivares pelas empresas de melhoramento genético.
Semente pirata – é todo grão colhido e vendido ou permutado com a finalidade de semeadura. É o grão que resulta de uma lavoura, o que o agricultor colhe ao fim de uma safra e destina à indústria, com objetivo energético ou alimentício. Diferente da semente que é colocada no solo para obter uma plântula robusta, vigorosa e com capacidade de gerar descendentes.
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