Edição 18 - 20.03.20
Por Evanildo da Silveira
Na pecuária do século 21, um bezerro pode ser o que sua mãe come. Ou então, dito de maneira mais técnica, o que uma vaca de corte ingere durante sua gestação pode ser determinante para o desempenho futuro de seus bezerros em termos de produção de carne e gordura. Pesquisadores das universidades federais de Viçosa (UFV) e Lavras (UFLA), ambas em Minas Gerais, desenvolveram uma tecnologia, que usa alterações e suplementação alimentares em determinados períodos da prenhez, para manipular e reprogramar o desenvolvimento fetal. Os resultados preliminares do trabalho mostram que filhotes das mães que passaram pela técnica produziram 9,3% mais carne do que aqueles que não receberam o tratamento.
O zootecnista Mateus Pies Gionbelli, um dos líderes do grupo de pesquisa em Nutrição Gestacional e Programação Fetal, que reúne cientistas das UFV e UFLA e de outras instituições brasileiras e estrangeiras, diz que o trabalho envolve tratamentos alimentares, ou seja, diferentes condições nutricionais durante alguns períodos específicos da gestação, principalmente nos terços médio e final dela. “São nessas duas fases que se dá o recrutamento de células indiferenciadas (aquelas que poderão dar origem a qualquer tecido) para formar a grande massa de células de tecido muscular e esquelético e adiposo do bezerro”, explica. “Esse conjunto delas formará o potencial de produção de carne e gordura em locais estratégicos da carcaça durante a vida adulta do animal.”
A pesquisa visa manipular a trajetória de desenvolvimento do indivíduo por meio da nutrição da mãe durante a gestação, acrescenta o também zootecnista e outro líder do grupo, Marcio de Souza Duarte, da UFV. “Utilizamos, nesse caso, estratégias alimentares e compostos bioativos, como vitamina A e selênio e aminoácidos específicos como metionina e arginina, adicionados à dieta da matriz, em pontos estratégicos da gravidez, com o objetivo de programar o desenvolvimento do tecido muscular do feto”, explica.
Nos sistemas de produção tradicionais, explica Gionbelli, as vacas se alimentam menos durante a estação seca e a natureza adaptou a programação ao desenvolvimento dos fetos dessas matrizes para se tornarem indivíduos capazes de viver em ambientes de escassez de nutrientes. “Isso causa alterações na forma como o DNA é expresso”, explica. “Ele não é alterado, mas sua expressão sim. Os problemas nutricionais e ambientais que a mãe enfrenta na gestação podem causar algumas modificações na estrutura que protege o DNA, de forma a expor mais algumas de suas regiões ou bloquear outras. A consequência é que alguns genes podem ser mais expressos e outros menos.”
Isso acarreta um risco de subdesenvolvimento de tecidos musculares e esqueléticos, que leva à geração de bezerros com menor potencial de produção de carne na vida adulta. “Eles têm uma grande chance de ter menor ganho de peso e rendimento de carcaça e pior qualidade de carne”, diz Gionbelli. “O que nós fazemos, por meio da nutrição materna durante a gestação, é tentar corrigir esses problemas, de modo que a expressão do DNA dos fetos em desenvolvimento possa ser maximizada, ou seja, otimizar o que esses animais já têm em seu genoma, para que ao longo da vida eles tenham desempenho compatível com o seu potencial genético.”
Com seu trabalho, os pesquisadores buscam gerar progênies que apresentem maior potencial produtivo de tecido muscular, o que renderá ao pecuarista maior eficiência, gerando mais carne por animal. “Ainda, caso seja de interesse do mercado, podemos realizar estratégias que busquem aumentar a deposição de gordura na carcaça e, principalmente, marmoreio, responsável por conferir mais sabor, suculência e maciez à carne e que agrega valor ao produto final”, diz Duarte.
De acordo com ele, os trabalhos que o grupo vem realizando ao longo dos anos têm desvendado mecanismos que regem o controle fino do desenvolvimento muscular. Isso inclui como esse tecido, ainda durante a fase fetal, responde a estímulos nutricionais. Tais estímulos participam do controle da expressão de genes por meio de mecanismos conhecidos como “mecanismos epigenéticos”, em que se consegue a realização do controle da expressão de genes sem que ocorra alteração do DNA do indivíduo.
Fatores epigenéticos podem ser entendidos como aqueles que alteram a estrutura do DNA, de modo a silenciar ou ativar regiões específicas do genoma, as quais compreendem genes de interesse, responsáveis pelas características fenotípicas que se quer alterar, como o desenvolvimento muscular e adiposo, por exemplo. “Buscamos em nossos trabalhos identificar quando e o que fornecer à matriz gestante para que esse controle epigenético possa ocorrer na progênie”, conta Duarte. “Cabe destacar que algumas dessas alterações são trangeracionais, ou seja, podem se perpetuar em outras gerações advindas da progênie programada durante a fase fetal.”
Resumindo, o grupo não faz manipulação genética. “O que fazemos é usar da interface nutrição x genoma”, explica Duarte. “Isso significa que trabalhamos com planejamento estratégico ou compostos dietéticos, que interagem de forma direta com o genoma animal, de modo a controlar quais regiões devem ou não ser ativadas em determinado momento do desenvolvimento fetal.”
Assim, levando-se em consideração que o desenvolvimento do tecido muscular ocorre em grande parte durante a fase fetal, esta é a fase crucial para manipulação do seu desenvolvimento. Aquela em que a intervenção na alimentação da matriz gestante será imposta, com o objetivo de programar a trajetória de desenvolvimento da progênie, dependendo do interesse que se tem. “Ela pode compreender desde a fase embrionária (estágios iniciais de desenvolvimento intrauterino, em que há grande controle da formação de células musculares) até a etapa final de gestação (em que há grande controle da formação de células adiposas intramusculares, responsáveis pela formação de marmoreio)”, diz Duarte. “O que fazemos é delinear estratégias de alimentação, de acordo com os objetivos almejados e, assim, intervimos na trajetória de desenvolvimento intrauterino de modo a atender às expectativas.”
Os estudos do grupo de pesquisa em Nutrição Gestacional e Programação Fetal começaram em 2017. Foram produzidos em conjunto pela UFV e UFLA 60 animais com a nova tecnologia, cujo desenvolvimento ainda está sendo acompanhado. “Além disso, temos 100 animais de uma empresa, dos quais uma parcela está sendo avaliada”, conta Duarte. “Os 60 primeiros que estão sendo acompanhados, da pesquisa de 2017, foram divididos em três grupos: um de gestantes que não receberam suplementação com proteína e energia em nenhum momento da gestação; um em que receberam dos três aos seis meses apenas; e outro em que receberam dos seis aos nove meses.”
Os resultados observados na progênie foram o aumento do número de fibras musculares na oriunda de matrizes suplementadas no terço médio da gravidez (3 a 6 meses), e de deposição de gordura subcutânea naquela gerada pelas vacas suplementadas no terço final (6 a 9 meses). “A média de peso ao desmame não variou entre os filhos de mães suplementadas no terço médio ou terço final de gestação”, informa Duarte. “O número de fibras musculares foi 16% maior nas crias de fêmeas que receberam suplementos (tanto no terço médio como no terço final) em comparação aos daquelas que tiveram alimentação especial. O que resultou em aumento de 12% na área de olho de lombo de animais gerados pelas primeiras.”
Duarte cita ainda os resultados de um trabalho semelhante, realizado por um colaborador do grupo nos Estados Unidos e que foi mais longe, até o abate dos animais – o que não ocorreu com o estudo dos pesquisadores no Brasil. “Animais gerados por matrizes suplementadas com proteína (usando pasto de melhor qualidade como forma de manipulação da dieta do meio para o final da gestação) tiveram um aumento de 5% do peso ao desmame”, revela Duarte. “Além disso, aumentaram em 10% o ganho médio diário; em 4% o peso ao abate após a fase de terminação em confinamento; 5% o peso de carcaça e em 19% o conteúdo de gordura de marmoreio, sua carne foi 17% mais macia.”
Ao longo do trabalho, o grupo também fez outras descobertas. Uma delas é que a má nutrição da matriz durante a gestação pode limitar o crescimento muscular da progênie, além de programar o tecido muscular para utilizar, prioritariamente, gordura como combustível metabólico para produção de energia. “Isso, além de comprometer o desempenho do animal (limitar o seu ganho de peso), dificulta ainda o acúmulo de gordura na carcaça/carne dele, o que é prejudicial do ponto de vista econômico”, diz Duarte.
De forma contrária, os estudos também indicam que a superalimentação materna durante a gestação tem impacto sobre o controle de genes responsáveis pela gordura de marmoreio, favorecendo a deposição deste tecido na progênie quando submetida à dieta de terminação (alta energia). “Isso traz muitas perspectivas de adoção de manejo alimentar do rebanho, possibilitando tomadas de decisão para que o produtor não tenha surpresas ao submeter o animal ao abate e não obter o produto que se esperava”, explica Duarte.
TAGS: Mateus Pies Gionbelli, Nutrição Animal, Pecuária, Pecuária fetal