Edição 18 - 23.03.20
Por Romualdo Venâncio
Ser uma grande liderança é bem diferente de ocupar um cargo de liderança. Isso vale para qualquer setor econômico – e mais ainda para o agronegócio, que passa por seu momento mais disruptivo (sim, essa palavra também impacta o universo agro). De um lado, há uma intensa, abrangente e rápida revolução tecnológica que eleva o agro ao mesmo patamar – ou até acima – em que estão diversos outros segmentos. De outro, acontece uma revisão de conceitos que não reconhece o sucesso na lucratividade sem que haja respeito às pessoas. O equilíbrio entre esses dois campos define a coluna dorsal das lideranças que o agronegócio necessita agora e daqui para a frente. Há quem se encaixe facilmente nesse perfil, quem precisará se dedicar mais para chegar lá e, infelizmente, quem resistirá às mudanças. Esse terceiro grupo terá dificuldades para se enquadrar não só no agro, mas em quaisquer ambientes profissionais e sociais, até porque o estímulo para se tornar uma liderança disruptiva deve vir também da própria pessoa. Quem estiver nessa sintonia terá mais chances de avançar.
Outra consequência dessa transformação: subiu a régua que define a dificuldade da função de headhunter. As consultorias organizacionais têm de ser bem mais criteriosas, mais ágeis e ao mesmo tempo mais pacientes e cuidadosas para encontrar executivos com as competências necessárias e adequadas para esse novo cenário. Principalmente porque grande parte desses profissionais não está preparada para o futuro, segundo o estudo The Self-Disruptive Leader, realizado pela consultoria global Korn Ferry. A pesquisa envolveu dados de mais de 150 mil lideranças corporativas de 18 mercados internacionais (Alemanha, África do Sul, Arábia Saudita, Austrália, Brasil, China, Estados Unidos, França, Holanda, Hong Kong, Índia, Indonésia, Japão, Malásia, México, Polônia, Reino Unido e Singapura), nos segmentos de serviços financeiros e empresariais; tecnologia, mídia e telecomunicações; e industrial. O estudo ainda buscou a opinião de 795 investidores e analistas, dos quais 70% afirmaram que “as pressões de curto prazo tiravam dos líderes a capacidade de promover inovação, digitalização e mudança”.
Uma das conclusões do estudo é que as empresas necessitam de lideranças que tenham a capacidade de romper pensamentos, valores e ações que já não combinam com a nova realidade e de se reconstruir. É o que a Korn Ferry chama de líder autodisruptivo. De acordo com a pesquisa, na média global, apenas 15% dos executivos apresentam condições para um desempenho excepcional em um ambiente tão volátil. No Brasil, o número é ainda menor: 13%. Esse índice tão reduzido é uma preocupação para as empresas em todos os campos, sobretudo na gestão das pessoas e dos negócios e nas decisões de investimentos. A verdade é que uma coisa puxa a outra, se a liderança erra a mão no trato com as equipes, há consequências imediatas nas taxas de produtividade, sintomas que não demoram a aparecer para o mercado. Daí em diante vira efeito avalanche.
Também por isso é tão relevante o cuidado com o bem-estar e a saúde mental dos profissionais, tanto das lideranças quanto de seus liderados. Embora muita gente reconheça momentos de pressão ou situações de crise como um incentivo à descoberta de soluções inovadoras, é de um cenário bem diferente que vem o melhor estímulo. É o que diz Wander Pereira, o professor de Engenharia de Software que criou a disciplina de Felicidade na Universidade de Brasília (UnB). Na conceituada Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, essa disciplina já existe há mais de dez anos. “Criatividade e felicidade são coisas indissociáveis, quando você está feliz a criatividade se torna inovação”, afirma Wander, acrescentando que para ser inovador também é preciso ter disciplina e conhecimento.
Há quem diga que dentro das corporações as pessoas fazem alianças entre elas, e não necessariamente com a corporação. A análise faz sentido, pois toda relação nas empresas – e em quaisquer instituições – se constrói por meio dos indivíduos. Por mais que colaboradores possam admirar a empresa em que trabalham e se orgulhar de estar ali, é pela relação de confiança e cooperação com os colegas, independentemente do nível hierárquico, que se dispõem a suar um pouco mais a camisa. Sem essa conexão, só mesmo por imposição, algo que vem perdendo efeito, ou por alguma recompensa convincente. Aí reside um grande desafio apontado pelo estudo da Korn Ferry: “A maioria dos líderes não consegue motivar as pessoas de forma eficaz, construir confiança ou tomar decisões e agir de forma inteligente com rapidez o bastante”. Para a consultoria, as habilidades desse líder do futuro devem refletir as dimensões contidas na sigla em inglês ADAPT, que envolve as capacidades de antecipar, impulsionar, acelerar, fazer parcerias e confiar. “Nos últimos 100 anos, os líderes aprenderam que controle, consistência e conclusão são os princípios da liderança empresarial. Mas as mudanças dramáticas no ambiente global fazem com que já não haja um esquema confiável”, diz Dennis Baltzley, líder de soluções globais para desenvolvimento de liderança da Korn Ferry.
Momento de transição
Para Jeffrey Abrahams, managing partner da FESA Group, consultoria especializada na busca e seleção de altos executivos, é o agronegócio que está disruptivo neste momento, com toda a transformação digital das fazendas, a era do 5G no campo, as inovações de food tech e as mudanças de hábitos e costumes dos consumidores. “Está ocorrendo uma grande mudança que, com mais ou menos intensidade, vai impactar todas as áreas do setor. E acredito que o agro vai andar mais rápido do que a gente imagina”, afirma o especialista em recursos humanos, com vasta experiência nas cadeias produtivas do agronegócio. “Quem não estiver nesse bonde ou nessa vibe de novas tecnologias vai acabar ficando para trás, e a criatividade e a capacidade analítica vêm nesse pacote.”
Entre as competências mais importantes para que lideranças do setor acompanhem a atual revolução, Jeffrey destaca a resiliência, a capacidade de leitura de novos cenários e a rapidez de implementação. Segundo ele, para integrar tais características é imprescindível ter vontade de aprender, e aprender rápido, em qualquer idade. “Onde você pode melhorar seus atuais processos para ser mais rápido, mais ágil e mais inteligente? Esse questionamento acontece – e está acontecendo – com as lideranças”, comenta. Outro diferencial importante, na opinião de Jeffrey, é a capacidade analítica de dados para poder lidar com tamanho volume de informações geradas a partir de agricultura de precisão e digitalização, inteligência artificial, algoritmos, machine learning, big data e outras inovações que estão por vir. A turma old school pode apresentar certa resistência, o que é uma postura arriscada para quem precisa, no mínimo, garantir espaço no mercado. Sobretudo em relação à questão digital, pois é como se tivesse de aprender um novo idioma e saber como utilizá-lo de forma adequada.
A agilidade e a facilidade para acessar e transmitir dados, o tempo todo, são grandes vantagens do ambiente digital, mas sem controle pode gerar uma sobrecarga e desviar a atenção do que realmente interessa. “É assustador o volume de informações que a gente recebe o dia inteiro. Os executivos precisam ter filtro e cuidado para não perder o foco do core business, daquilo que é o feijão com arroz e que paga as contas”, alerta Jeffrey.
O resultado de tudo isso só será bem aproveitado e duradouro se as lideranças tiverem a capacidade de trabalhar em rede, de compartilhar e trocar informação com seus pares e suas equipes. Mas lidar bem com a relação humana demanda controle do ego. “A vaidade humana é uma coisa impressionante e complicada. É difícil lidar, pois exige autoconhecimento”, comenta Jeffrey. Ele diz que o ego inflado é um grande inimigo dos executivos e que uma boa ajuda para evitar estragos pode vir da intervenção de quem está acima na hierarquia organizacional, mostrando o que está acontecendo e propondo uma nova conduta. Portanto, as lideranças também devem estar preparadas para conduzir outras lideranças. “Se a pessoa não consegue mudar sozinha, precisa fazer terapia, procurar ajuda de um coach, pois aquela postura afeta o ambiente, o ecossistema onde opera.” Trata-se de uma questão inclusive de saúde, pois os níveis de pressão e tensão podem levar a doenças psicossomáticas.
Diante de tantas variáveis que influenciam o desempenho de uma liderança em uma agroindústria, um grupo agrícola ou pecuário e até mesmo uma grande fazenda, poder identificar, com maior assertividade, a pessoa compatível com a função é uma vantagem enorme. Esse ganho passa pela eficiência no processo de assessment, a seleção em si dos profissionais, que envolve entrevistas, análise de competências, testes psicométricos, avaliação da parte cognitiva e da capacidade de planejamento, além da habilidade para lidar e trabalhar com gente. Toda essa bateria dá uma boa ideia de como será o desempenho do profissional. Jeffrey comenta que ainda é possível medir o que chamam de “fator descarrilhador”. “A avaliação pega pontos da personalidade da pessoa que vão tirá-la do eixo, mostrando onde perde o controle e o que pode ocorrer em um momento crítico”, diz. Segundo ele, enquanto entre 80 e 90% das contratações são feitas com base em aspectos técnicos, cerca de 80% das demissões acontecem por questões comportamentais.
E se o tema do momento é a disrupção, por que não tratar desse fenômeno dentro do processo de seleção de lideranças? Não há dúvidas de que muita gente gostaria de ter a mesma previsibilidade – ou até mesmo a precisão – de uma análise de DNA para garantir o sucesso de uma contratação, saber desde o primeiro momento se vai ou não dar certo. O executivo da FESA Group faz uma provocação sobre fatores bioquímicos que podem influenciar o comportamento, e por consequência o desempenho, de uma liderança. “Quanto será a constituição bioquímica de um líder fora de série? Quanto pesa esse tipo de informação? É uma área que acho interessante, poder saber a influência do nível de dopamina e serotonina, por exemplo, pois para estar motivado o profissional precisa de energia, e se estiver fluindo bem a companhia avança”, diz Jeffrey. “Ainda nem tocamos nessa superfície.”
Presença feminina
A disrupção no agronegócio não se mede apenas pelos avanços tecnológicos, mas também por mudanças de conceitos comportamentais. Tanto que as lideranças femininas estão deixando de ser notícia por uma questão de gênero e cada vez mais ganhando espaço nas manchetes por sua competência. A quarta edição do Congresso Nacional das Mulheres do Agronegócio, por exemplo, realizada em São Paulo (SP), no mês de outubro, recebeu 1,9 mil pessoas, segundo a organização do evento. Participantes vindas de diversas partes do Brasil acompanharam e realizaram várias discussões sobre a contribuição feminina para a aceleração das inovações do agro dentro e fora do País. Há duas décadas, talvez, seria difícil imaginar um encontro como esse. Muito mais pelos fortes traços de uma cultura patriarcal do que pela relevância das mulheres no agro, que de uma forma ou de outra está aí desde sempre.
Que o diga Carla Salomão, a primeira mulher a integrar, no Brasil, uma equipe comercial de campo no segmento de defensivos agrícolas. Em fevereiro de 1982, ela começou a trabalhar na DuPont para cobrir a região norte do Paraná. Sua primeira entrevista para o emprego foi exatamente com Jeffrey Abrahams. O processo de disrupção, neste caso, começa bem antes da contratação de Carla. Nascida no Rio de Janeiro, filha de um piloto de avião e de uma advogada, era muito bem inserida na alta sociedade carioca, como ela mesma diz. Mas a vontade de “melhorar o mundo” a levou até a Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais, para cursar engenharia agronômica. “Quis ser física nuclear, pilota, arquiteta, mas por fim achei que a agricultura seria o futuro. Foi uma decisão muito radical para aquele momento, pois minha realidade social era bem diferente”, diz.
A oportunidade na DuPont veio assim que Carla terminou sua formação, por isso precisou de extrema dedicação para aprender rapidamente o máximo que pudesse. “Eu procurava suprir a falta de experiência com mais conhecimento. Fui preparada para saber e para estudar, então fui me capacitando pelo método learn by doing”, afirma. Com metas a cumprir e uma rota de quase 400 quilômetros para percorrer entre as cidades de Goioerê e Jacarezinho, traçava os mapas de visitas e saía cortando estrada dentro de uma Belina. Por ser a única mulher naquele trabalho, jovem, com origem puramente urbana, suas visitas às fazendas eram um acontecimento, e Carla soube tirar vantagem de tal condição. “Além de não ser vista como concorrente por outros vendedores, era sempre a primeira a ser recebida pelos compradores. Aquela garota carioca era como um fruto proibido, então eu entrava antes de todo mundo”, diz ela. Mas reforça que jamais teve qualquer problema de descriminação ou foi incomodada. “Eu era uma menina muito bonita, tinha tudo para, no mínimo, ser cantada, mas sempre me respeitaram. Me tornei alguém que eles apreciavam receber, pois agregava, levava informação, novidades, conhecimento.”
A inquietação em busca de novas fronteiras levou Carla a outra decisão inusitada: saiu da DuPont para se dedicar ao mestrado em Economia Rural na Esalq/USP, em Piracicaba (SP). Conseguiu uma bolsa e defenderia uma tese sobre sementes e seu pacote tecnológico. O percurso ali foi mais desafiador do que Carla imaginava. Teve de interromper os estudos e retornar ao Rio de Janeiro para cuidar da mãe, que havia adoecido e faleceu dois anos depois. Ao retornar para o mestrado, a agrônoma havia perdido a bolsa e decidiu mudar o tema para análise de risco e tomada de decisão. Antes que terminasse a tese, participou de uma seleção para a Vale (do Rio Doce, na época) e foi contratada para trabalhar no Rio. Tocou as duas coisas em paralelo. “Na Vale passei a aprender e a entender melhor o ambiente corporativo. E a ter paciência, pois havia muitas circunstâncias políticas e as tomadas de decisão ocorriam bem distantes do pessoal técnico. Isso me incomodava, pois eu era técnica e dinâmica, queria que as coisas acontecessem”, comenta.
Após cinco anos, pediu demissão da Vale para começar uma nova história na holding que se associou à Agrícola Fraiburgo, de Santa Catarina, companhia que mudou a história do mercado de maçãs no Brasil. “Fiquei dois anos e meio na holding, ainda no Rio, onde criei o conselho de administração, e fui convidada para assumir a presidência da operação no Sul”, diz Carla. A administração da executiva foi sustentada pelo tripé sistema, processos e pessoas. Ela conta que o processo de mudanças em todos os níveis da gestão, começando pela diretoria, durou três anos. “Treinamos as pessoas para que falassem a mesma língua e aprendessem a utilizar as novas ferramentas e os novos sistemas, e essa capacitação acabou exigindo mais inovações”, comenta. “Recuperamos uma empresa forte em volume, mas pouco eficiente, e a tornamos altamente eficiente, gerando produtos de alta qualidade.” Pelo trabalho à frente da Fraiburgo, Carla ganhou notoriedade no setor como um todo, chegando a integrar a diretoria do Instituto Brasileiro de Frutas (Ibraf) e representar o segmento nacional de maçãs no mercado externo. “Quando achei que já tinha feito tudo o que queria, decidi sair para me dedicar a projetos pessoais e ter mais tempo livre para a família”, diz a agrônoma, que logo se viu diante de seis novas iniciativas. Como a ideia era desacelerar, teve de reduzir bem o leque.
Hoje, aos 61 anos bem vividos, Carla mora em Portugal e seu negócio é representar produtores de vinho e azeite locais (e um da Espanha) e administrar a entrada e a distribuição desses itens no mercado brasileiro. Até por isso ainda mantém uma base no Rio de Janeiro. “Também faço a gestão das marcas, verifico a apresentação e a colocação dos vinhos e azeites no importador e nos pontos de venda, saída dos contêineres. Faço isso há 17 anos”, conta a empresária, dona da Azavini, que atribui a satisfação dessa trajetória, entre outras coisas, ao planejamento da carreira e às características que a tornaram uma importante liderança no agronegócio. “Entre os vários tipos de liderança, destaco aquele que é baseado na formação de pessoas, que tem animação e positivismo. Se for centralizadora, não funciona. E não é sempre que se encontra uma liderança assim, pois geralmente são muito impositivas e até medrosas – temem a capacidade dos outros.”
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