O homem que desafia os gigantes da carne

Por André Sollitto O anúncio, de página inteira, tinha alvo explícito: a Marfrig, uma das maiore


Edição 16 - 13.09.19

Por André Sollitto

O anúncio, de página inteira, tinha alvo explícito: a Marfrig, uma das maiores empresas de proteína animal do mundo, controlada pelo empresário Marcos Molina. E o texto, publicado nos grandes jornais brasileiros no início de agosto passado, trazia uma clara provocação: “Maior produtora de hambúrguer animal do mundo, bem-vinda. Essa é uma mensagem do futuro. E viemos contar como está tudo por aqui. O mundo não pertence aos gigantes, mas aos transformadores. Aqui no futuro, não é sobre ‘diversificar os negócios’. É sobre preservar a diversidade do planeta. Não adianta falar em desenvolvimento sustentável, matando boi e usando mais recursos naturais. Porque se você é parte do problema, você não pode ser a única solução”.

Marcos Leta

Assinada pela Fazenda Futuro, uma startup criada para produzir alimentos a partir de proteínas vegetais, a peça respondia a outro anúncio veiculado dias antes, em espaço semelhante, pela Marfrig. Nele, a multinacional brasileira do setor de carnes informava um lance surpreendente: a produção de um hambúrguer à base de vegetais, em parceria com a ADM, uma das maiores processadoras agrícolas e fornecedoras de insumos do mundo. “Só a maior produtora de hambúrguer do mundo, que atende os clientes mais exigentes, pode produzir em escala hambúrguer vegetal com sabor animal”, dizia a publicidade da Marfrig.

Foi a deixa que o empreendedor carioca Marcos Leta esperava para uma grande jogada de marketing. Como um Davi encarando um Golias do mercado de alimentos, o fundador da Fazenda Futuro entrou na arena. Colocou-se na posição de inovador e iniciou um bom combate – encarar um gigante, bem maior do que você, é sempre um risco, mas bem menor do que perder uma disputa para um rival inferior. “Na verdade, a gente só está seguindo com o nosso propósito de empresa, que é mudar o sistema e oferecer uma alternativa à carne de origem animal que é produzida hoje. Se é uma empresa que diversifica o produto, mas no final do dia seu core business continua outro…”, disse Leta, dias depois, à PLANT. Não convém subestimá-lo. Com poucos meses de atuação, a Fazenda Futuro já faz barulho, a ponto de se sentir no direito de “peitar” uma potência do agro.

A troca de provocações mostra como a disputa pela hegemonia quando o assunto é carne à base de plantas – uma inovação que já movimenta cifras bilionárias mundo afora – está acirrada, inclusive aqui no Brasil.

“Minha visão é que o mercado ainda nem começou. O que estamos tendo a oportunidade de ver é o início de uma revolução dentro de um sistema superantiquado, que é o sistema de carne animal. Ele ainda vai se sofisticar muito com a tecnologia. Cada vez mais, vamos conseguir nos aproximar de outros cortes de carne. E, no decorrer do tempo, nossa carne vai ser mais barata que a de origem animal. Se chegarmos numa sofisticação em que entregamos o mesmo sabor e textura, por um preço menor, com mais sustentabilidade, possivelmente as pessoas vão trocar muito mais.”

Leta se refere a um fenômeno recente que ganhou uma força enorme nos últimos meses: a moda das proteínas alternativas, feitas à base de vegetais, que reproduzem o sabor e a textura da carne animal. O que começou como uma curiosidade, principalmente nos Estados Unidos, agora já se espalha pelo setor. Grandes redes de fast-food passaram a oferecer versões plant based em seus cardápios, startups recebem investimentos milionários e até as grandes companhias de carne sentiram a necessidade de olhar para esse nicho com mais atenção. A americana Beyond Meat, uma das food techs mais badaladas do momento, por exemplo, é avaliada em US$ 10 bilhões e a abertura de seu capital foi um sucesso entre investidores. Sua principal concorrente, a Impossible Foods, vale US$ 2 bilhões. E gigantes, como a Cargill e a Tyson Foods, correm atrás do prejuízo.

Será que essas startups valem tudo isso?

“Hoje, os principais fundos de venture capital estão olhando muito mais a longo prazo, até 2030, 2040. A sociedade, do jeito que ela consome carne, não vai ter terra para produzir proteína de origem animal. Então, vai ser preciso descobrir alternativas. Se você olha por essa perspectiva, das mudanças que serão necessárias na alimentação e no modelo de produção, para gastar menos recursos naturais e alimentar o maior número de pessoas possível, então eu não acho que as pessoas estão pagando caro por empresas como a Beyond e a Impossible”, afirma Leta.

ALIMENTOS E TECNOLOGIA

Marcos Leta tem 36 anos e é empreendedor há dez anos. Seu primeiro negócio, criado em parceria com o sócio Alfredo Strechinsky, foi a marca Do Bem, conhecida pelos sucos integrais naturais vendidos em embalagens coloridas e modernas. O jeito descolado da empresa e um storytelling baseado na origem das frutas utilizadas (e na narrativa dos agricultores que as produziam) conquistou os consumidores e despertou o interesse de gente grande no mercado de bebidas — como a Ambev, maior cervejaria brasileira, que comprou a Do Bem em abril de 2016 por um valor não informado. No final daquele ano, a dupla passou a estudar o mercado de proteínas alternativas.

“Já queríamos, e isso era uma questão pessoal nossa, fazer algo maior, mais relevante para o Brasil. E vimos que estávamos no maior mercado do mundo de carne, e ele continuava antiquado. Tudo era produzido da mesma forma, sacrificando o animal, gastando mais recursos naturais do que o normal. Não fazia muito sentido.”

Eles viajaram para os Estados Unidos, conheceram algumas empresas que desenvolviam a tecnologia necessária e fizeram um investimento na Good Catch Foods, responsável por produzir um atum à base de vegetais. Quando retornaram, passaram a desenvolver seu próprio hambúrguer. Segundo eles, foram nove tentativas até a versão 1.0, lançada oficialmente em maiode 2019.

Na ocasião, o Futuro Burger foi apresentado em parceria com restaurantes badalados, como o TT Burger, lanchonete do chef Thomas Troisgros, no Rio de Janeiro, e a Lanchonete da Cidade, em São Paulo. Hoje, ele pode ser encontrado em mais de 500 lanchonetes e hamburguerias e em praticamente todas as principais redes varejistas, nacionais e regionais.

“Sempre tivemos um bom relacionamento com todos os varejistas, muito porque com a Do Bem realmente construímos a categoria de sucos naturais integrais no varejo no Brasil. Essa experiência foi superpositiva e nos permitiu entrar de uma forma muito mais rápida e eficiente no mercado.”

A Fazenda Futuro é, oficialmente, uma empresa de alimentos, mas em alguns pontos do discurso do fundador e da prática de mercado comporta-se como uma startup de tecnologia. Seu primeiro produto, por exemplo, pode ser comparado a um software, já que deve receber atualizações ao longo do tempo para o lançamento de novas versões. A maneira de se apresentar a investidores também está mais para o Vale do Silício do que para as lavouras do interior do Brasil. Com aportes na casa dos milhões e valorizações seguindo a onda das food techs americanas, o negócio se valorizou rapidamente, em ritmo desproporcional ao volume de vendas e ao ritmo de produção, que crescem mas ainda são modestos se comparados aos concorrentes animais.

Em julho passado, a Fazenda Futuro recebeu um aporte de US$ 8,5 milhões. Participaram da rodada de investimentos o fundo Monashees, especializado em soluções de tecnologia, e o Go4It Capital, cujo foco é em esportes e saúde. Com os recursos, a startup é avaliada hoje em US$ 100 milhões. Também ampliou sua capacidade inicial, de 150 toneladas por mês, para 550 toneladas.

“Temos todo um pipeline de inovação. Vamos lançar uma versão 2.0 do nosso Futuro Burger, atualizada a partir do feedback dos clientes. Analisamos o que as pessoas estão falando e atualizamos nosso produto, com um mindset de software. Daremos início, nos próximos meses, a uma parceria com o Spoleto, de almôndegas e carne moída. E ainda neste ano vamos entrar no Chile, Paraguai e Uruguai. Vamos usar a mesma marca, com uma tradução diferente, chamada Hacienda Futuro. Desde o início da construção da marca queríamos ter o mesmo significado em todos os mercados que a gente entrasse. A melhor maneira de você já começar com uma relação próxima ao consumidor local é você falar a mesma língua que ele. Tivemos essa preocupação desde o início.”

AFINAL, DO QUE É FEITO?

O Futuro Burger é tech, mas começa nas lavouras. É resultado de um blend de três grãos: soja, ervilha e grão de bico. Especiarias e extratos naturais são usados para replicar o sabor da carne, e a beterraba entra na composição para fornecer o “sangue”.

“A gente não usa nada transgênico. É uma filosofia que temos buscado desenvolver no Brasil”, diz Leta. Boa parte da matéria-prima é nacional, mas uma parcela é importada. Leta diz estar preparado para dar conta da demanda crescente. Startups estrangeiras sofreram com a falta de matéria-prima. A Impossible Foods fechou diversas parcerias com redes de lanchonetes nacionais, incluindo o Burger King. Para atendê-los, deixou de lado alguns dos primeiros restaurantes a oferecer o Impossible Burger, e os clientes reclamaram nas redes sociais. Em julho, a empresa anunciou que havia resolvido o problema. Mas a questão merece atenção. Tanto que a Marfrig, ao lançar o seu produto plant based, fez questão de ressaltar a parceria com a ADM.

“São problemas de aumento de volume no futuro: como os produtores de vegetais vão se organizar e fazer os investimentos necessários para suprir essa demanda mundial. O que a gente vê, e temos feito isso, é trabalhar em conjunto com os fornecedores e produtores para dar um direcionamento sobre o volume que será atingido nos próximos anos, e fazer os investimentos junto com eles para aumentar essa produtividade e garantir os vegetais necessários”, afirma Leta.

A necessidade de matéria-prima também fomenta um debate sobre o quão sustentável é a produção de proteína alternativa, já que ela depende de insumos comoditizados.

“O pensamento tem que ser o inverso. Se você pegar 80% de soja que é produzida, ela vai para ração animal. Em um espaço em que você tem X bois, você precisa de 14 vezes esse espaço para produzir a ração. Agora, se você diminui o consumo de bois, você diminui o espaço necessário e o gasto para a produção dos vegetais. Porque você direciona sua produção diretamente para o ser humano. Além disso, acho que a tecnologia está só no início. Existem outras formas de obter proteína, de obter texturas, que já estamos trabalhando. Obviamente a gente não abre, mas estamos só no início dessa transição do sistema de carnes do mundo.”

“Dizemos que a nossa carne é a mais inclusiva que existe. Ela satisfaz todo mundo. Os veganos e vegetarianos podem consumir, até porque muitos deles gostavam do sabor, da textura e do cheiro da carne, mas pararam de consumi-la por questões éticas. Eles não aguentam ver um animal morrer. E tem o carnívoro mesmo, o flexitariano.”

Leta se refere a um tipo de alimentação menos restritivo que as outras dietas, em que o consumo de carne é limitado a alguns dias da semana, mas não é abolido por completo. “Hoje, para mim, todo mundo tem ido para o flexitarianismo. Não é mais uma tendência, é uma realidade.” A mudança de mentalidade é um sinal do que vem pela frente. “Nos últimos anos, a gente se descolou muito do caminho do meio ambiente. O futuro é vivermos e nos alimentarmos de uma forma mais equilibrada e mais consciente, não só com o alimento que ingerimos, mas também com o ambiente em que vivemos.”

Barulho a Fazenda Futuro tem feito. Resta saber se Leta e seu sócio vão seguir a lógica da Do Bem, e vender a empresa no futuro para uma grande companhia, ou se continuarão batalhando com os gigantes da carne.

AS CARNES DO AMANHÃ

As grandes companhias do mercado de carne desenvolveram marcas específicas para seus produtos à base de plantas ou compraram startups já estabelecidas

Tyson Foods

Disponível no Brasil: não

Uma das investidoras da startup Beyond Meat, a gigante americana vendeu sua parte na empresa pouco antes do IPO, e lançou uma nova marca, Raised & Rooted, responsável por produtos como nuggets plant based e um hambúrguer que mistura carne animal e vegetais.

JBS

Disponível no Brasil: sim

Maior processadora de carne do mundo, a empresa anunciou em maio um hambúrguer feito com soja, farinha e beterraba. O Incrível Burger já está à venda sob a marca Seara Gourmet.

Marfrig

Disponível no Brasil: sim

Após anunciar uma parceria com a ADM para produzir hambúrgueres à base de plantas em larga escala, o Burger King divulgou que seu Whopper Rebelde, com lançamento previsto para setembro, será produzido pela Marfrig.

Cargill

Disponível no Brasil: não

Outra grande do agro, a Cargill não lançou uma linha plant based. Em vez disso, tem investido em startups como a Memphis Eats e a Aleph Farms, responsáveis por produzir carne em laboratório a partir de células animais, um processo que dispensa o abate.

Superbom

Disponível no Brasil: sim

Conhecida pela produção de alimentos voltados para veganos e vegetarianos, a empresa lançou na feira Apas deste ano seu Burger Gourmet, versão feita com ervilha e já à venda no País.

Nestlé

Disponível no Brasil: não

Na Europa, a companhia lançou a marca Garden Gourmet para comercializar seu Incredible Burger. Nos Estados Unidos, a empresa comprou a startup Sweet Earth, fabricante de proteínas alternativas que já são vendidas em mais de 100 mil lojas, incluindo grandes redes varejistas como a Whole Foods.

SmithField Foods

Disponível no Brasil: não

Maior processadora de carne suína do mundo, a SmithField criou o braço Pure Farmland para comercializar uma linha completa de alimentos à base de vegetais, como almôndegas e hambúrgueres.

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