Caçada a Monteiro Lobato

Por André Sollitto Não é exagero afirmar que o primeiro contato de muitos brasileiros com a liter


Edição 15 - 12.08.19

Por André Sollitto

Não é exagero afirmar que o primeiro contato de muitos brasileiros com a literatura foi por meio de uma das obras do escritor taubateano Monteiro Lobato (1882-1948). Precursor dos livros infantojuvenis no País em um período em que os jovens leitores só tinham à disposição traduções de contos dos irmãos Grimm ou de fábulas de La Fontaine, cujos temas abordados eram muito distantes da realidade nos trópicos, Lobato criou o Sítio do Picapau Amarelo, com personagens queridos até hoje. Foi também autor de romances adultos e tradutor de grandes autores. Agora, sua obra entrou em domínio público – o que acontece 70 anos após a morte do escritor. Junto com a perspectiva de colocar seus livros ao alcance de mais pessoas, volta-se a debater a maneira como ele retratou o homem do campo e o negro, e como sua obra poderia reforçar estereótipos raciais.


A visão de Lobato sobre o caipira foi popularizada por Jeca Tatu, personagem que apareceu pela primeira vez na coletânea de textos Urupês, lançada originalmente em 1918. Na obra, o homem do campo é visto como indolente e preguiçoso, descuidado com a higiene e incapaz de trabalhar. Em uma época em que outros escritores glorificavam a vida no campo, Lobato apresentou aos leitores uma imagem muito diferente das regiões rurais. Um homem cosmopolita, Lobato teve alguns contatos com a vida no campo ao longo de sua existência. Herdou uma fazenda do avô e se dispôs a tentar aplicar tecnologias agrícolas modernas para restaurar a antiga glória da propriedade. Seus esforços não deram certo e, frustrado, culpou o caipira pelo fracasso. Esse retrato do Jeca Tatu seria revisitado – e alterado – com o passar do tempo.

“Lobato estava sempre se corrigindo. Não tinha medo de voltar atrás, nem vergonha, de se corrigir quando tirava novas conclusões”, afirma Marcia Camargos, biógrafa e especialista na obra do taubateano, coautora de Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia. De acordo com ela, nas palavras do escritor, o Jeca Tatu “não era daquele jeito, mas estava assim”. Posteriormente, a obra passou a ser analisada como uma denúncia contra o descaso do governo com a população do campo. Campanhas de saúde foram feitas e uma versão infantil do personagem foi levada ao rádio para ensinar práticas de higiene.


A relação de Monteiro Lobato com o Brasil profundo, agrário, é tema de outro livro, Cidades Mortas, de 1919. O escritor faz um retrato da decadência do Vale do Paraíba após a onda verde do café. Práticas predatórias tornaram o solo improdutivo após um período de grande desenvolvimento. Pragas atacaram as plantas, a devastação das matas alterou o clima da região e o solo sofreu erosão. O café continuou a ser cultivado em outras regiões – deixando um rastro de ruínas no caminho. “A obra retrata com crueza e senso poético a devastação dessa paisagem”, diz Marcia.

O próprio Sítio do Picapau Amarelo dialoga com a infância de muitos brasileiros, que conviveram com a família no campo. “O Brasil em que Lobato viveu era agrário”, diz Marcia. Os costumes e lendas do interior se mesclam a epopeias gregas, viajantes europeus e outras histórias para criar um imaginário que perdura até hoje – mas que revela costumes de uma sociedade que havia abolido a escravidão há pouco tempo.

É aí que entra a visão do negro em sua obra, muito mais problemática. Já foi parar na Justiça em mais de uma ocasião. Em 2010, em resposta à ouvidora da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), o Conselho Nacional de Educação recomendou que o livro As Caçadas de Pedrinho, de 1933, não fosse escolhido para o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), que distribui acervos às escolas públicas. Se ainda assim fosse escolhido, seria preciso fazer uma ressalva quanto ao teor racista do texto. O Instituto de Advocacia Racial (Iara) e o técnico em gestão educacional Antonio da Costa Neto foram mais longe. Considerando a decisão insuficiente, entraram com um mandado de segurança para preparar professores da rede pública para discutir o racismo em sala de aula. O pedido só foi julgado quatro anos depois, e rejeitado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux, que alegou limitação da competência do STF no assunto.


A polêmica é semelhante àquela que envolveu o romance As Aventuras de Huckleberry Finn, um dos principais do americano Mark Twain (1835-1910). Ao longo da narrativa, os negros são referidos pelo termo pejorativo “nigger” mais de 200 vezes. O livro foi boicotado por escolas e professores até que uma nova edição, revisada e sem as expressões racistas, foi adotada. A mudança, no entanto, desagrada os especialistas em literatura. “Autores podem atualizar seus livros, inserindo dados novos. Mas a obra fica descaracterizada se essa revisão for feita por outros”, diz Marcia Camargos.

Nos últimos anos, fatos da própria biografia de Lobato vieram à tona para reforçar o discurso de que o autor era racista. Ele teria sido um entusiasta da eugenia, crença de que a raça humana poderia ser melhorada ao excluir certos grupos genéticos tidos como inferiores, usada por Hitler para justificar o extermínio dos judeus. O Brasil foi o primeiro país da América do Sul a ter um movimento organizado, e Lobato foi amigo de Renato Ferraz Kehl (1889-1974), farmacêutico e um dos principais defensores da eugenia. “Ele flertou com a eugenia, assim como flertou com o capitalismo, o comunismo, o fordismo e o espiritismo. Era um sujeito disposto a apostar nas novidades, chegando a ser ingênuo em alguns casos”, diz Marcia. Ela afirma ainda que um texto como o do livro Negrinha, lançado em 1920, é um libelo antiescravagista que critica os abusos sofridos pela população negra com a complascência da Igreja Católica.

O escritor e pesquisador de mitologias e narrativas africanas Ale Santos discorda dessa visão. “Muitos questionam se Lobato era mesmo racista”, escreve ele em seu Twitter. “A maioria desses questionamentos vêm de pessoas que nunca sentiram na pele o impacto de sua obra no cotidiano negro.” Outro documento divulgado mostra a admiração do escritor pela Ku Klux Klan. “Um dia se fará justiça à Ku Klux Klan; tivéssemos uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos livres da peste da imprensa carioca – mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva”, escreveu ele em 1938. Seu romance O Presidente Negro, originalmente planejado para fazer sucesso nos Estados Unidos, foi rejeitado pelos editores daquele país. No romance, classificado como uma ficção científica, um homem negro é eleito presidente, mas os brancos se revoltam e planejam uma “solução final”.

Independentemente da polêmica e do debate, uma série de lançamentos já está programada para 2019. A editora Globo, que detinha os direitos sobre suas obras, lançará versões especiais de títulos como O Picapau Amarelo e A Chave do Tamanho. Reinações de Narizinho, um dos livros mais conhecidos de Lobato, será reeditado pela Companhia das Letras. E a L&PM está lançando diversos títulos em versões de bolso, com ilustrações. Há ainda adaptações para crianças feitas por Pedro Bandeira, autor bastante querido pelo público infantojuvenil. As prateleiras das livrarias, sejam elas físicas ou digitais, serão inundadas por versões dessas histórias.

Em vez de editar o texto original, uma opção que poderia fomentar a discussão seria a publicação de edições comentadas, com análises críticas e históricas. “Ele dialoga com seu tempo. Sua obra é uma radiografia de uma época. É algo muito atual e muito útil para o debate”, diz Marcia. Para ela, esconder ou revisar o texto é errado, já que apenas conhecendo a história é possível evitar que ela se repita. “Senão teremos uma geração sem espinha dorsal que acredita em fake news”, afirma ela. “O problema é que o racismo não aconteceu apenas na época do Monteiro Lobato, ele acontece ainda nos tempos de hoje, e a forma como ele acontece hoje é alimentada por quem escreveu como Monteiro Lobato”, escreve Ale Santos. Agora que sua obra entrou em domínio público, evitar que estereótipos sejam repetidos é uma questão de análise e diálogo.

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