10.05.19
Em sua obra-prima, A Fisiologia do Gosto, o francês Brillat-Savarin meditou, de modo insuperável, sobre as sensações que uma boa refeição pode nos proporcionar. Não por acaso, o livro, de 1825 mas ainda hoje delicioso de se ler, é considerado a “certidão de nascimento” da gastronomia. Sem a pretensão de emular o mestre, adentro esse território fascinante com uma certeza: o gosto não tem marcha a ré.
Uma vez que experimentamos um alimento ou uma bebida de qualidade superior, nosso paladar não volta atrás. Estabelece um patamar que só pode ser superado por algo ainda melhor. O gosto evolui. Até pode sofrer uma ou outra recaída – mas jamais regride em definitivo.
Gosto se educa. Quem experimentou Brie, Camembert ou Roquefort, dificilmente volta para o queijo-commodity – tipo lanche. O mesmo ocorre com o azeite extra-virgem em relação aos óleos vegetais comuns. Com o aceto balsâmico em relação ao vinagre-de-qualquer-coisa. Ou com o café.
Com o vinho, não é diferente. Muitos de nós começamos bebendo vinhos feitos com uvas americanas ou híbridas. Vinhos de garrafão. Mas, depois que provamos um Cabernet Sauvignon, um Merlot ou um Chardonnay, quem diz que voltamos para os caldos de Isabel ou Niágara sem torcer o nariz?
Ilustro a minha tese com um exemplo caseiro. Cresci vendo meu pai bebericar um copo de vinho às refeições. Vinho comum, de mesa. Quando comecei a conhecer um pouco mais sobre o assunto, sugeria ao velho que experimentasse um Cabernet Sauvignon ou um Merlot. Ele provava, fazia uma careta e colocava a taça de lado: não, obrigado. Mas,
por que não? Eram vinhos muito alcóolicos e amargos, desculpava-se.
O tempo passou, mas não desisti da minha “evangelização”. Sempre que o visitava, levava-lhe uma garrafa de um vinho fino diferente. Aos poucos, ele foi cedendo. Primeiro, abriu a guarda para alguns Merlot mais ralinhos. Depois, deixou-se seduzir pelos sedosos Malbec. Um dia, admitiu que não gostava mais de vinho comum. Quando eu lhe perguntava, por brincadeira, se não lhe apeteceria provar um vinho colonial com “gostinho de uva”, ele, polidamente, recusava. Até o final de seus dias, já havia se convertido em um bebedor razoavelmente refinado.
Não quero dizer com isso que o vinho comum, que representa 80% do consumo da bebida no Brasil, e sustenta milhares de agricultores familiares, não tem importância cultural, social ou econômica. Tem. E precisa ser respeitado. Afinal, cada um bebe o que gosta – ou o que o bolso permite. Alguns vinhos comuns até são tecnicamente mais bem feitos do que muito vinho fino metido à besta…
Mas vinho, de verdade, universalmente reconhecido como tal, é o vinho elaborado com uvas vitisviníferas, e não o fermentado de uvas americanas.Se quisermos construir uma reputação internacional como produtores de vinho, não há outro jeito: teremos de converter nossos parreirais para viníferas europeias. E, com as uvas americanas, seguiremos fazendo o melhor suco do mundo.
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