Você fala o que come

Por Amauri Segalla A Revolução Agrícola é um dos acontecimentos mais espetaculares da história.


Edição 14 - 24.05.19

Por Amauri Segalla

A Revolução Agrícola é um dos acontecimentos mais espetaculares da história. Durante 2,5 milhões de anos, os humanos se alimentaram coletando plantas e caçando animais, sem se preocupar em fincar sementes na terra ou pastar rebanhos de ovelhas. Por volta de 12 mil anos atrás, em algum lugar no sudeste da Turquia e no oeste do Irã, um grupo engenhoso de pessoas aprendeu a espalhar as sementes, regá-las e arrancar do solo ervas daninhas que pudessem atrapalhar o seu crescimento. Ao mesmo tempo, descobriu que era possível domesticar animais, que poderiam viver em áreas restritas e sob permanente controle humano. Quando isso aconteceu, a era dos caçadores-coletores estava encerrada para dar lugar à Revolução Agrícola que mudaria para sempre a face da Terra. A agricultura permitiu a explosão populacional, na medida em que mais alimentos poderiam matar a fome de mais pessoas, estimulou o surgimento da propriedade privada, porque os fazendeiros se tornaram donos dos campos, e levou a um grande salto da capacidade intelectual humana ao despertar novas áreas de conhecimento. Agora, um novo estudo publicado pela revista americana Science adicionou mais um elemento no rol de feitos extraordinários da Revolução Agrícola. Segundo a publicação, a agricultura pode ter mudado a forma como os humanos falam.

O trabalho liderado pelos linguistas Damián Blasi e Steven Moran, da Universidade de Zurique, na Suíça, demonstrou que alterações na dieta estimuladas pelo advento da agricultura levaram a mudanças na mordida humana. Estas, por sua vez, acabaram por favorecer o surgimento de novos sons. Mais especificamente, as consoantes “f” e “v” começaram a ser pronunciadas por nossos antepassados – e, nem é preciso dizer, seu uso se consagrou ao longo dos anos. Parece pouca coisa, mas trata-se de algo realmente fantástico. A pesquisa mostra que a linguagem não é resultado apenas de acontecimentos aleatórios da história e da incorporação de características culturais, mas está conectada às mudanças biológicas do homem. “Espero que nosso estudo gere um debate sobre o fato de que ao menos alguns aspectos da linguagem e da fala devam ser tratados como outros comportamentos humanos complexos que se situam entre a biologia e a cultura”, disse Blasi à revista National Geographic. Segundo ele, é estranho que a linguagem não seja tradicionalmente estudada como um fenômeno biológico. “Deveria ser, porque ela é parte de nossa natureza”, reforçou o linguista.


Antes da Revolução Agrícola, a mandíbula e os dentes humanos estavam posicionados de tal forma que permitiam ao Homo Sapiens triturar, provavelmente com alguma dificuldade, os produtos de sua caça. A agricultura – e a consequente domesticação de plantas e animais – reduziu esse esforço ao introduzir na dieta humana uma variedade de alimentos mais macios. De acordo com a pesquisa, os novos hábitos alimentares alteraram a anatomia da mandíbula. Entre os caçadores-coletores do período Paleolítico, os dentes superiores e inferiores dos indivíduos adultos se alinhavam para formar uma linha reta. Ou seja, os superiores descansavam diretamente sobre o conjunto inferior. Nos últimos anos, inúmeros fósseis provaram que essa configuração era resultado do desgaste dentário causado pela mastigação de alimentos duros. Na Revolução Agrícola, especialmente no período chamado de Pós-neolítico, os dentes superiores projetaram-se para além dos dentes inferiores. Segundo os pesquisadores, a nova anatomia surgiu como resposta à incorporação de hábitos alimentares criados pela agricultura. Para simplificar: a carne dura de um antílope pôde ser substituída, digamos, por um prato de sopa, queijos e iogurtes.

Os linguistas Damián Blasi e Steven Moran argumentam que esse processo levou a profundas transformações na maneira como falamos. Além de tornar a dieta mais saborosa e variada, ele introduziu sons de fala conhecidos como labiodentais – é o caso das consoantes “f” e “v”. O estudo dos dois cientistas fornece evidências de que os novos alimentos característicos da sociedade sedentária (aquela que não precisa mais caçar) levantaram o lábio inferior humano, colocando-o em contato com os dentes superiores. Para pronunciar as consoantes labiodentais, é preciso justamente uma ação combinada do lábio inferior e dos dentes superiores, algo que as pessoas começaram a fazer com a recém-conquistada fartura de alimentos macios. Foi assim, segundo o artigo publicado na Science, que o “f” e o “v” se tornaram íntimos da fala humana e usados indiscriminadamente por pessoas de todas as regiões do planeta.

Para chegar a essa conclusão, os linguistas da Universidade de Zurique realizaram simulações biomecânicas usando duas mandíbulas virtuais diferentes para calcular o esforço muscular envolvido. Os resultados mostraram que as chamadas mordidas planas (aquelas usadas pelos caçadores-coletores) exigiram substancialmente mais esforço para produzir um som labiodental do que as mordidas salientes (as que surgiram com a Revolução Agrícola). Estava aí um indício irrefutável de que a agricultura ajudou a moldar a fala humana. “Nós apresentamos evidências de paleoantropologia, biomecânica da fala, etnografia e linguística histórica que mostram que os sons labiodentais como “f” e “v” foram introduzidos após o período Neolítico”, escrevem os pesquisadores no artigo para a Science.

Não foi a primeira vez que a ciência associou hábitos alimentares à evolução da linguagem humana. Em 1985, o linguista americano Charles Hockett publicou um famoso artigo que traz conclusões muito parecidas com as de Damián Blasi e Steven Moran. No estudo, Hockett afirma que “as línguas que promovem sons como ‘f’ e ‘v’ são frequentemente encontradas em sociedades com acesso a alimentos macios”. Ele, porém, faz apenas conjecturas, enquanto Blasi e Moran sustentam seu trabalho com simulações e análises biomecânicas. Anos depois de publicar o artigo, Hockett acabaria negando a sua própria teoria. Ele revelou que havia sido influenciado pelo antropólogo Loring Brace, da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. O problema é que Brace acabaria mudando de ideia a respeito das origens das consoantes “f” e “v”, o que levou Hockett a fazer o mesmo.


Intrigados com o assunto, Blasi e Moran resolveram investigá-lo a fundo. Foram cinco anos de pesquisas de fósseis, trocas de informações com pesquisadores de diversas partes do mundo e análise de bancos de dados de idiomas e de sua distribuição pelo planeta. Os cientistas também fizeram simulações em mandíbulas mecânicas e utilizaram um modelo computadorizado dos ossos e músculos do rosto. Todo esse esforço revelou que é preciso 29% menos energia para fazer sons labiodentais como o “f” e o “v” – e só foi possível aos humanos usar menos energia para comer quando tinham à mão alimentos mais macios. Ao comparar os registros de idiomas com dados sobre a alimentação de diferentes sociedades, a equipe de Blasi concluiu que os caçadores-coletores usavam cerca de um quarto dos sons adotados pelas comunidades agrícolas. Isso, disseram os pesquisadores, não foi mera coincidência. Segundo eles, o tempo de surgimento dos labiodentais é mais ou menos equivalente ao cultivo de grãos e uso de laticínios pelo homem. “A diversidade dos sons que temos é fundamentalmente afetada pela biologia do nosso aparelho da fala”, disse à National Geographic o linguista Balthasar Bickel, que também participou do estudo. “Não se trata apenas de uma evolução natural.”

O trabalho dos pesquisadores teve grande repercussão na comunidade científica internacional. “Este é o estudo mais convincente sobre características biológicas e linguagem”, disse Tecumseh Fitch, professor da Universidade de Viena e um dos biólogos mais importantes do mundo. “Quem poderia imaginar que a agricultura teria implicações na diversidade da linguagem humana?”, perguntou a antropóloga Marcia Ponce de León, colega de Damián Blasi na Universidade de Zurique. O desenvolvimento da fala é um dos feitos mais notáveis da humanidade. Com o passar do tempo, a linguagem foi influenciada pelas diversas regiões do planeta, pela enorme variedade de culturas e estruturas sociais complexas. Agora, o trabalho publicado pela Science indica que a agricultura teve papel vital nesse processo. Ela não só alimentou o Homo Sapiens nos últimos 12 mil anos como mudou para a empresa a maneira como ele fala.

TAGS: Antropologia, Revolução Agrícola