O safári da paz entre a pecuária e a vida selvagem

Por Flávia Tonin | Fotos Acervo Pessoal Mateus Paranhos Ele não sossega diante de um dilema que en


Edição 14 - 02.05.19

Por Flávia Tonin | Fotos Acervo Pessoal Mateus Paranhos

Ele não sossega diante de um dilema que envolva a sensível relação entre a produção e a vida animal. Nem dormir em uma tenda em meio à Savana africana o intimida. Ali, ele acampou em um local de vida livre, que tem mais de 60 espécies de predadores carnívoros como leões, chitas, leopardos, hienas, cães selvagens e chacais, além de mamíferos gigantes como elefantes, rinocerontes e girafas, que compõem o cenário. Estar próximo desses animais foi parte da realidade do zootecnista e pesquisador Mateus José Rodrigues Paranhos da Costa, de 62 anos, fundador do Grupo Etco, da Unesp de Jaboticabal (SP). A experiência foi recente, em fevereiro e início de março passados, em uma imersão pelo Quênia, na costa leste da África. Paranhos desembarcou disposto a aprender. Como um diário de bordo, enviou de lá áudios diários por WhatsApp para a reportagem da PLANT, descrevendo o que via e os paralelos com suas pesquisas no Brasil. Diferentemente dos demais estrangeiros que buscam o turismo naquele país, já que a atividade é o que mais alavanca o PIB local, Paranhos passou a maior parte do tempo em uma região pouco visitada, na companhia de pesquisadores suecos que tinham curiosidade semelhante: queriam entender como elefantes e rebanhos bovinos convivem no mesmo espaço – e até mesmo posam juntos para fotos. E, se essa harmonia é possível por lá, por que não seria também no Brasil, em regiões em que a pecuária ocupa áreas vizinhas aos habitats de animais selvagens?

Parece “coisa de louco”, mas é a partir de questões como essa que Paranhos quebra paradigmas e difunde o bem-estar na produção animal há decadas, transformando a realidade brasileira de forma “radicalmente moderada”, como diz, porém, persistente. No início dos anos 2000, veio com a ideia da vacinação de animais contidos em brete, substituindo as agulhadas descontroladas durante a passagem pelo tronco coletivo. A prática foi adotada em grandes projetos pecuários – com milhares de cabeças – e avança no Brasil. No gado de leite, seu grupo sugeriu que o tratador escovasse os bezerros, por dois minutos, durante a mamada – e o fez, diariamente, em centenas de bezerros. Parecia bobagem, mas reduziu a mortalidade pela metade e o manejo foi incorporado à rotina. Em outra linha mais recente, encoraja os peões a fazer massagem em bezerros de corte no nascimento e percebe, ainda preliminarmente, a menor reatividade na vida adulta. A última, agora, é essa história de buscar alternativas para reduzir o conflito entre animais selvagens e de produção. “Em regiões específicas, pensando na unidade de produção, as perdas são significativas”, afirma. Essa busca por respostas foi o que o levou para o outro lado do mundo.

Durante os 33 dias de aventura e observação, o professor fez algumas conexões com a realidade brasileira. “São vários os paralelos, mas o mais impressionante é a certeza de que a proximidade entre homem e animal facilita todo o trabalho”, relata, com base principalmente no sistema de pastoreio praticado no Quênia. Desde sua chegada em Nairóbi, capital com mais de 3 milhões de habitantes, ele pôde ver alguns bovinos nas estradas sendo conduzidos por pessoas a pé. “Eles usam os bovinos como uma estratégia de poupança”, conta o pesquisador, sobre o status dos fazendeiros locais. “Quanto mais bovinos você tem, mais rico você é.” Portanto, os animais são sempre vigiados para a proteção do patrimônio.

A CERCA DE ABELHAS

O gado é criado em sistema de pastoreio, sendo que os trabalhadores saem com animais para buscar áreas de forragem, mas voltam com a intenção de protegê-los em um local fechado, o “boma”, evitando o ataque de predadores. Essa é a essência da criação, seja em pequena ou em larga escala, e Paranhos conheceu essas duas realidades. Começou com rebanhos menores ao Sul e terminou a viagem em uma fazenda de 6 mil bovinos pastoreados no Norte.

“Uma história interessante está no controle de elefantes. São usadas abelhas para evitar que eles invadam plantações e que, por conta disso, sejam abatidos pelos agricultores”, explica o professor. Assim como Davi derrubou o gigante Golias, o segredo das abelhas está em agir no ponto certo. Já que não conseguem ferroar a pele grossa do corpo do animal, elas entram em suas orelhas provocando um zumbido insuportável. Assim, fazem com que os grandões recuem, salvando a lavoura e os elefantes da morte. Em nova fase, iniciam testes com gravações de zumbido de abelhas para verificar se essa poderá ser uma barreira tecnológica de proteção e preservação.


“É uma forma de valer-se do conhecimento de comportamento animal para afastar os predadores, ao invés de exterminá-los”, explica o professor, que remete a um experimento que está sendo feito no Brasil, no Pantanal (MS) e também no vale do Araguaia (MT). Nas duas regiões, o objetivo é monitorar e reunir dados sobre qual é o animal selvagem que ronda as fazendas. “Ao sabermos as espécies mais frequentes na região, podemos criar estratégias preventivas de acordo com os hábitos dos predadores”, explica. E enumera, por exemplo, características diferentes entre a onça-pintada e a parda. “A onça-pintada dificilmente se aproxima do ser humano, já a parda não tem o mesmo receio.” Em unidades com maior ocorrência de onças-pintadas podem ser aplicadas estratégias que demonstrem a presença humana como luzes, barulhos, bezerros próximos às casas etc. “Se a maior ocorrência for de onças-pardas, essas estratégias podem não funcionar”, diz.

JORNADA EM BUSCA DE ÁGUA

Após sair de Nairóbi, seguiu rumo Sul, para a região do róseo Lago Magadi, no Grande Vale do Rift, com povos masai. Era uma comunidade de pequenos proprietários, com rebanhos de 50 unidades. Eles têm um tipo animal bem variado, com porte mediano, várias cores e ocorrência de chifres. “Mas estão se tornando bem parecidos com o Zebu brasileiro, porém menores”, descreve Paranhos, que percebeu o uso da raça bovina Boran como alternativa de cruzamento para agregar valor às crias.


Para se alimentar, os animais precisam caminhar e buscar comida, pois a seca do período deixa o solo completamente descoberto. Parece uma estrada de terra de chão batido, exceto nas regiões que compõem o horizonte, mais próximas das montanhas, onde há cursos de água. De acordo com a disponibilidade de alimento, os animais e acampamentos vão avançando pelas áreas de pastoreio e, somente na fase árida, podem entrar em locais de reserva, convivendo ainda mais com a vida selvagem. “Apesar da seca, os animais apresentavam boa condição corporal, alguns até gordos”, diz sobre bovinos, zebras, girafas e o que mais cruzou seu caminho. Diferentemente dos adultos, os bezerros não saem para a Savana, mas ficam no acampamento em cercados improvisados com galhos de acácia, cheios de espinhos. “Os galhos são colocados principalmente por causa das hienas”, diz sobre os ágeis predadores. Para identificação, os animais são marcados a fogo, de forma aleatória, o que assustou Paranhos, que é um defensor de formas de identificação menos invasivas como brincos, colares ou qualquer outra tecnologia que não cause ferimentos.


Nessa região, por questões culturais e alguns rituais específicos, as famílias podem acompanhar a caminhada. “Participamos de um ritual de despedida, todos discursaram, principalmente os mais velhos. Foi incrível”, lembra. Apenas em datas especiais e festas é consumida a carne bovina. Nos demais dias, a proteína é proveniente de cabras e ovelhas ou do leite das vacas. Na região, a renda mensal de um trabalhador não ultrapassa US$ 150, equivalente a R$ 600. “O preço do boi eu não consegui descobrir, é um segredo que depende de cada negociação”, confidencia Paranhos.

O PASTO MILAGROSO

Rumo ao Norte do país, a realidade vai se transformando, alavancada pelo turismo. As barracas, deixadas de lado, deram lugar a pequenos bangalôs e hotéis, alguns de cinco estrelas. A agricultura é desenvolvida, com grandes equipamentos, principalmente na produção de frutas, como manga e abacaxi para a exportação. O gado também é outro. Há bovinos com chifres imensos da raça Ankole-Watusi, para preservação, como também animais para a produção de carne. “Esses, com predominância da raça Boran, são mais parecidos com o nosso Nelore”, descreve o professor.


O que não muda são os hábitos de pastoreio e de temperamento dos animais. “São extremamente mansos”, relata – e se recorda de pesquisa em andamento no Brasil para entender se uma vaca menos reativa tem risco de ser uma presa mais vulnerável. “Ainda estamos avaliando dados, mas se essa correlação não se confirmar, podemos seguir selecionando animais menos reativos, como fazem naturalmente no Quênia”, afirma. Isso facilita o manejo e a produtividade dos animais, pois gado mais calmo dá menos trabalho e come mais.

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Ansioso para conhecer sistemas mais profissionais, Paranhos esteve em uma das maiores propriedades do país, uma área de conservação com 40 mil hectares, que tem um rebanho total de 6 mil bovinos, em meio a uma população de 15 mil herbívoros e outros tantos carnívoros. Se a diversidade fosse menor, com certeza, haveria mais bois. O manejo segue a lógica do pastoreio, mas com algumas adaptações. O grande lote é subdividido em grupos de no máximo 200 cabeças, que ficam sob a responsabilidade de dois pastores durante a caminhada pela Savana. A reprodução é por monta natural, com sincronização de cio, em algumas épocas, para concentrar os nascimentos. O local também conta com frigorífico para abate de 60 cabeças por semana para distribuição em açougues locais.


Apesar de o gado viver em meio aos selvagens, a mortalidade por predação é de 6% na fazenda. “A taxa é reduzida, pela proximidade com pessoas”, reconhece Paranhos, lembrando que não há nenhuma estrutura para separá-los de seus predadores naturais durante o dia, apenas os olhos humanos. Tanto que elefantes e bovinos consomem água no mesmo local. “Essa foi a cena mais surreal que já vi”, confidencia. “E eles estavam em harmonia”, diz em tom de muita surpesa.

Antes do início da noite, os animais são trazidos para um cercado de metal, onde ficam confinados até raiar o sol. “Eles se acostumam com a rotina e há espaço adequado para a movimentação.” Com tantos bois presos, esse seria um banquete para leões das redondezas, se não houvesse vigilância noturna. “Quando percebem alguma movimentação de predador, eles acendem luzes, movimentam-se ou fazem barulho”, diz Paranhos. A estrutura do cercado é móvel e “arrastada” conforme a necessidade de avanço do pastoreio. A viagem termina em uma reserva natural de Masai Mara, na divisa com a Tanzânia, com uma pastagem de dar inveja a qualquer especialista em adubação. “É impressionante como isso pode formar-se após o capim ir a zero com uma alta taxa de lotação, que ocorre durante a migração de zebras e mais de 1 milhão de gnus, vindos do Serengueti, na Tanzânia.”

Na volta para casa, ficava nítido que sua cabeça fervilhava de ideias, que serão adaptadas e testadas nas fazendas brasileiras para a maior sustentabilidade. Pode-se esperar também um maior incentivo à interação homem-animal, mesmo que por alguns minutos, pois isso é muito salutar para os manejos e resultados produtivos. Resta agora esperar como ele vai sistematizar tudo isso, pois riqueza de experiência, lá e cá, Paranhos tem.

Pit stop na Suécia

Em cooperação com o pesquisador Jens Jung, da Universidade de Ciências de Agricultura Sueca, de Uppsala, na Suécia, Mateus Paranhos desenvolve pesquisas para a conservação de espécies. A Europa enfrenta os mesmos problemas de predação, porém com menor estatura, já que a disputa está entre lobos e ovelhas. O diferencial da Suécia está em uma compensação financeira recebida pelos produtores que têm os rebanhos atacados. A medida é um paleativo, já que não há desenvolvimento de práticas mais sustentáveis ou redução de conflitos. Por esse motivo, o interesse em ampliar estudos que harmonizem a vida de animais de produção e selvagens, já que ambos caminham, literalmente, lado a lado nos campos.

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