Guimarães Rosa, de volta às veredas

Por Ana Weiss | Fotos de Hélio Campos Mello Dos grandes artistas brasileiros que dedicaram sua cria


Edição 13 - 15.03.19

Por Ana Weiss | Fotos de Hélio Campos Mello

Dos grandes artistas brasileiros que dedicaram sua criação ao universo rural, nenhum foi tão longe e tão fundo quanto João Guimarães Rosa. Mineiro de Cordisburgo, a pequena e hoje turística “cidade-coração”, ele capturou e transformou a fala e a cultura rural mineiras em alta literatura, ampliando os limites da língua com neologismos e frases criados com o sertão brasileiro e oriundos dele. Deu à fala e à ética sertanejas contornos épicos e alcance universal, tornando-as conhecidas e valorizadas no País e internacionalmente.

“(…)Lua de com ela se cunhar dinheiro. Quando o senhor sonhar sonhe com aquilo. Cheiro de campos com flores, forte(…)”

Em Grande Sertão: Veredas

O mundo agrário forneceu a Guimarães Rosa cenário, personagens e espírito, quando não o próprio título da produção que o coloca entre os maiores autores do planeta (o único brasileiro entre os 100 melhores do mundo, segundo a Academia Norueguesa de Letras). Grande Sertão: Veredas, de 1956, história narrada pelo jagunço Riobaldo, é hoje, quando se relembram os 110 anos de nascimento de seu criador, leitura obrigatória para o ingresso nas principais universidades do Brasil. Dezenas de centenas de teses e dissertações de mestrado tratam do embate no semiárido entre homens da terra e suas contradições. A obra acaba de ganhar novas traduções para o inglês e o alemão – e não se esgotam versões para o teatro, o cinema e a televisão.

Maior crítico literário que o Brasil já teve, Antonio Candido sentiu necessidade de criar um novo gênero para tratar da literatura roseana. “Eu me senti obrigado a criar uma nova categoria”, escreveu o catedrático ao ler o romance que levou seu criador à Academia Brasileira de Letras com pouco mais de 40 anos, seis depois do lançamento do título. Transregionalismo ou surregionalismo, definiu Candido. O livro era tido então como “experimental”.


Poucos romances em ambiente rural foram recontados tantas vezes por aqui como a epopeia de Riobaldo, vivido por Tony Ramos na série homônima realizada em 1985 pela Rede Globo, com Bruna Lombardi na pele de Diadorim, uma das mais marcantes atuações na vida da atriz. Em 2019, a diretora Bia Lessa leva para o cinema um novo filme sobre o romance, a história do amor impossível às margens do Rio São Francisco, que está atualmente rodando os teatros do País, tendo os protagonistas vividos pelos atores globais Caio Blat e Luíza Lemmertz. As apresentações chegam a reunir 2.600 espectadores por sessão, de todas as idades.


A travessia pessoal do autor até a publicação de sua obra-prima conta muito da coleta de matéria humana e filosófica que o fez localizar longe das metrópoles o lugar de sua literatura. Aos 10 anos de idade, Guimarães Rosa foi levado para a escola, pelas mãos do avô materno. Já inventando palavras, chamava a cidade natal de Lundisburgo, por conta da proximidade de Cordisburgo da impressionante gruta de Maquiné, tornada internacionalmente conhecida pelo naturalista dinamarquês Peter Lund, citado por Charles Darwin em A Origem das Espécies. Aos 16 anos, trocava o ginásio pela Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, para, em seguida, se mudar para o oeste mineiro a fim de iniciar a clínica.


Jornalista e amigo dos tempos em que o escritor já atuava como diplomata no Rio de Janeiro, Franklin de Oliveira conta que Guimarães Rosa dizia abertamente ter deixado a Medicina por não suportar a ideia de alguém morrer em suas mãos. E assim, um dos primeiros lugares de seu ano de aplicação no Itamaraty, foi enviado como diplomata à Alemanha, em 1938, em plena ascensão nazista. Em solo alemão e, depois no Brasil, deu abrigo e cuidou de salvar muitos perseguidos pelo regime hitlerista.

“…que gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como o sofrimento dos homens”

Guimarães Rosa, sobre o São Francisco

Um ano antes da missão diplomática, porém, tinha dado início (conta-se que deitado, a lápis, em um caderno de 100 folhas) a Sagarana, volume de nove novelas passadas dentro do raio geográfico-afetivo que circunda a cidade de sua infância no interior de Minas Gerais.
Em Sagarana, o autor volta sua mira definitivamente para o alvo que atingiria com precisão na década seguinte em Grande Sertão: os impulsos universais humanos brotados em situações constritamente regionalistas. Na época em que trabalhava nas novelas, empossado de suas funções diplomáticas, o autor decidiu acompanhar boiadeiros da nascente do Rio São Francisco até Alagoas, onde deságua o mais longo rio nacional. A experiência, basta emprestar o livro da estante do filho vestibulando, transparece nesses nove textos.

“O senhor estude: o buriti é das margens, ele cai seus cocos na vereda – as águas levam – em beiras. O coquinho as águas mesmas replantam: daí o buritizal. De um lado e de outro se alinhando, acompanhando. Que nem por um cálculo”

Também no Grande Sertão: Veredas

Em uma carta, o escritor explicou a opção ao jornalista João Condé: “Eu tinha de escolher o terreno onde localizar as minhas histórias. Podia ser Barbacena, Belo Horizonte, o Rio, a China, o arquipélago de Neo-Baratária, o espaço astral, ou, mesmo, o pedaço de Minas Gerais que era mais meu. E foi o que preferi. Porque tinha muitas saudades de lá.” E mais adiante: “O povo do interior, sem convenções, ‘poses’, dá melhores personagens de parábolas: lá se veem bem as reações humanas e a ação do destino: lá se vê bem um rio cair na cachoeira ou contornar a montanha, e as grandes árvores estalarem sob o raio, e cada talo do capim humano rebrotar com a chuva ou se estorricar com a seca”.


Quando há dois anos o romance completou seu sexagésimo aniversário, o fotógrafo Hélio Campos Mello pegou emprestada uma velha edição do livro e traçou no mapa os lugares onde aconteceram os grandes momentos das histórias narradas por Riobaldo. As imagens reproduzidas nestas páginas, todas inéditas, são o resultado da saga do fotógrafo. “O caminho aos cenários de Guimarães Rosa começa em Brasília, de carro com tração nas quatro rodas. Rumo leste, destino Chapada Gaúcha, nas Minas Gerais. Para chegar lá há três bons roteiros, o mais curto com pouco menos de 400 quilômetros e, quando a gente erra a estrada, tem pouco mais de 500. Foi o que usei”, conta ele.


A Chapada Gaúcha é a maior produtora de sementes de capim do Brasil (aquele que “rebrota na chuva e estorrica na seca”), especialmente a Brachiaria, amada por boa parte do gado nacional. Lá fica o parque nacional batizado hoje de Grande Sertão Veredas. Além do cultivo de capim e dos buritis (veja foto na pág. anterior), Campos Mello esperou, para seguir viagem, a aparição dos seres que, segundo o escritor, eram os únicos que conheciam o lugar.

“Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássaros: eles estão sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas.”

“Só um letreiro achei. Este papel, que eu trouxe – batistério. Da matriz de Itacambira, onse tem tantos mortos enterrados. Lá ela foi levada à pia. Lá registrada, assim. Em um 11 de setembro da éra de 1800 e tantos… O senhor lê. De Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins – que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor… Reze o senhor por ess minha alma. O senhor acha que a vida é tristonha?”

No final do Grande Sertões: Veredas, Riobaldo fala sobre o que encontrou de Diadorim

De lá, o fotógrafo seguiu para São Francisco, a cidade por onde passa um trecho do rio-personagem, que atravessa o País e conduz a travessia de Riobaldo, o Fausto brasileiro. “E o senhor surja: é de repentemente, aquela terrível água de largura e, de São Francisco para última parada, Itacambira.” Os últimos metros dos 3 mil quilômetros do mapa literário levaram o fotógrafo a Itacambira, para a igreja que ainda guarda inteira um dos símbolos-fonte da dor dos heróis sertanejos: a pia batismal (nesta página), na Igreja Matriz de Santo Antônio, onde foi batizada Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins. De escolha, jagunço Diadorim. Nossa Joana D’Arc das Gerais.

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