Edição 13 - 11.03.19
Por RAFAEL LESCHER
Vista do espaço, na definição do cosmonauta russo Yuri Gagarin, a Terra é azul. Quanto mais perto se chega e conforme o olhar que se lança, porém, o espectro de cores para representar diferentes aspectos da vida no planeta pode ser infinito. Um grupo de pesquisadores do LUGE (Land Use and Global Environment), laboratório da University of British Columbia, de Vancouver (Canadá), pintou com tons de alerta um atlas global desenhado a partir de um dos maiores desafios do nosso tempo: a produção de alimentos. Liderada pelo pesquisador de pós-doutorado Zia Mehrabi, a equipe do LUGE desenvolveu um painel gráfico que mostra de forma descomplicada, a partir de dados que vão das áreas destinadas ao cultivo à quantidade de pessoas envolvidas nas atividades agropecuárias, a relação entre causas e soluções para a fome no mundo. Chamado de The Colours of Food Security (As Cores da Segurança Alimentar, em tradução livre), o projeto combina dez mapas coloridos, que revelam, entre outras coisas, a dimensão e a localidade da produção agropecuária de alimentos, energia e fibras em cada continente.
Mehrabi conta que o projeto surgiu com o intuito de informar o máximo possível de pessoas no mundo e inspirar o desenvolvimento de soluções para alimentar a população global nos próximos anos. Já o formato veio pelas constatações de uma pesquisa prévia: há uma grande dificuldade de acesso a esse tipo de informação para quem não está familiarizado com o assunto, e até certa falta de interesse – grande parte do público consultado afirmou que não dedicaria a devida atenção caso os dados fossem apresentados em forma de texto.
O grande diferencial desse trabalho, de fato, está na riqueza de informações — coletadas em 2018 junto a órgãos internacionais e fontes classificadas como confiáveis –, aliada à simplicidade de compreensão. Em uma conversa exclusiva com a PLANT, Zia Mehrabi contou que durante o desenvolvimento do estudo surgiram dados surpreendentes, como a descoberta de que um terço do solo do planeta é dedicado à agricultura e cerca de 1 bilhão de pessoas estão ligadas a esse negócio. O pesquisador ressaltou ainda a importância desse trabalho como atualização das informações disponíveis. “A definição de Segurança Alimentar feita pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, é focada em disponibilidade e acesso a alimentos assim como a sua utilização e estabilidade”, afirma Mehrabi. “A Segurança Alimentar é um problema complexo que integra dimensões sociais e ambientais. O nosso futuro acesso a fontes estáveis de comida de qualidade depende de nós resolvermos uma série de problemas que giram em torno de subsistência dos fazendeiros, produção agropecuária, pobreza, clima, saúde humana, perda de biodiversidade, água e poluição ambiental, todos ao mesmo tempo. ”
O acesso aos mapas é gratuito, até para facilitar e estimular o compartilhamento das informações, que podem ser divulgadas por meio de apresentações técnicas ou de alguma outra forma de exibição. PLANT dá sua contribuição para disseminar esses dados e apresenta, a seguir, todos os mapas do projeto The Colours of Food Security, com os comentários de seus autores.
As cores da segurança alimentar
O mapa acima representa a soma de todos os que apresentamos a seguir. Segurança alimentar é um problema de grande complexidade que requer visão de sistemas de múltiplas dimensões e aspectos do sistema de produção de alimentos. Disponibilidade de comida, qualidade, acesso, utilização e a estabilidade de todos esses componentes, todos dependem de fatores como produção agrícola, emprego, pobreza, crescimento econômico, clima, saúde humana, perda de biodiversidade, água, poluição, consumo e normas societárias. Esses mapas mostram como se parece a segurança alimentar hoje. Com eles, você pode pintar o sistema alimentar que deseja ver amanhã.
Um planeta cultivado
Cada pixel no mapa acima representa áreas do globo destinadas a agricultura e pastagens. Cerca de 12% das terras sem gelo no mundo são utilizadas pelos humanos para culturas destinadas à produção de alimentos, de combustíveis e de fibras, e mais ou menos 22% são destinadas à criação de gado a pasto, suínos, caprinos, ovinos, frangos e outras formas de pecuária. A agricultura representa a maior área de pegada ambiental da raça humana no planeta. Segundo os pesquisadores, a crescente demanda por produtos agrícolas tem sobrecarregado os sistemas de recursos naturais no mundo.
Emprego na agricultura
Cada pixel no mapa representa o número de pessoas que trabalham na agricultura. O setor emprega quase 1 bilhão de pessoas ao redor do mundo e é uma fonte de renda importante, sobretudo nas regiões mais pobres. Enquanto parte do mundo já substituiu o trabalho manual por processos mecanizados e tecnológicos, outros ainda não fizeram tal transição. Países com PIB per capita maior tendem a apresentar menor taxa de sua população ligada à agricultura, enquanto os mais pobres têm maior proporção de empregos em agricultura e trabalhos relacionados à comida.
Fome no mundo
Cada pixel no mapa representa o número de pessoas desnutridas no planeta. Um em cada dez habitantes não consome calorias suficientes para manter minimamente uma vida com baixa demanda energética. Uma em cada quatro pessoas não tem uma dieta com a quantidade necessária dos nutrientes certos, como ferro e vitamina A. A má nutrição tem impactos dramáticos na taxa de mortalidade infantil, na saúde e no desenvolvimento intelectual. Enquanto a proporção de pessoas desnutridas no mundo vem caindo nas últimas décadas, a taxa de pessoas que consomem em excesso aumentou drasticamente e agora, em números absolutos, é quase o dobro do que as subnutridas.
Mudanças climáticas
Cada pixel no mapa representa emissões de gás de efeito estufa nas plantações, que são, segundo os pesquisadores, uma das maiores causas da mudança de clima. A agricultura é atualmente responsável por cerca de 22% de emissões de gases de efeito estufa – 9% vêm do desmatamento e 13%, do gerenciamento de terras para a atividade rural. O metano da pecuária e dos arrozais e o óxido nitroso da aplicação de fertilizantes são algumas das principais contribuições das emissões da agricultura. Em uma espécie de ciclo vicioso, esses gases de efeito estufa contribuem para um aumento de desastres climáticos extremos, que levam a menores rendimentos e a maiores perdas nas lavouras.
Perda de biodiversidade
Cada pixel no mapa representa o número de espécies de mamíferos e aves que estão ameaçadas e cujos habitats coincidem com áreas destinadas a plantações e pastagens. A agricultura utiliza aproximadamente 30% das áreas antes ocupadas por florestas no mundo, resultando em cerca de 35% de perdas da riqueza das espécies locais. O uso dominante de terras para a agricultura torna especialmente difícil para espécies com ampla distribuição a coexistência com os seres humanos. A perda de biodiversidade prejudica a contribuição da natureza com as pessoas, com o processo de polinização e o controle natural de pragas, levando à redução da produção agrícola.
Poluição
Cada pixel no mapa representa o excesso de quantidade de fósforo usado em plantações no planeta. Fertilizantes da agricultura, incluindo sintéticos, baseados em animais (como esterco) e baseados em plantas (legumes), permitiram que a produção agrícola global crescesse durante os últimos 50 anos. No entanto, às vezes o uso desses fertilizantes é excessivo. O fósforo é um ingrediente-chave em muitos fertilizantes e a sua aplicação em excesso tem impactado negativamente em nossos sistemas de água fresca através da eutrofização – crescimento descontrolado de plantas aquáticas, que reduzem a disponibilidade de oxigênio para espécies animais. Nitrogênio em excesso, muitas vezes aplicado junto com o fósforo, também tem um custo alto para a saúde humana através da poluição da água potável.
Consumo de água
Cada pixel no mapa representa a quantidade de água subterrânea extraída em diferentes baías hidrográficas ao redor do planeta. A produção agrícola é responsável por mais ou menos 92% da pegada hídrica do mundo. Como consequência, muitos aquíferos ao redor do mundo estão sendo desgastados rapidamente, alguns lagos e pequenos mares secaram e muitos rios não chegam mais aos oceanos. Isso significa, segundo os autores do projeto, que a agricultura é o maior fator na liderança para a insegurança de água à raça humana e a outras espécies no planeta.
Mudanças de dieta
Cada pixel no mapa representa a quantidade de calorias produzidas que estão sendo usadas para alimentar a pecuária (no total, isso corresponde a algo em torno de 36% de todas as calorias produzidas em plantações do globo). O mundo está enfrentando uma séria de problemas interconectados e relacionados ao sistema alimentício, incluindo má nutrição, impactos ambientais e doenças transmissíveis ou não. Uma possível solução para esses problemas seria reduzir as tendências de dietas à base de produtos com origem em animais alimentados com grãos. Isso permitiria o uso de cerca de 70% das calorias utilizadas em rações animais para atender às necessidades humanas de energia e reduziria o impacto da agricultura no ambiente e na saúde humana.
Desperdício
Cada pixel no mapa representa a porcentagem de alimentos desperdiçados em cada país. O mapeamento mostra somente locais com alta densidade populacional (>1.000 pessoas por pixel). Atualmente, quase 25% da comida produzida no mundo não chega a ser consumida. O desperdício de alimento começa no campo, depois da colheita, durante a cadeia produtiva e vai até o varejo e o consumidor. O desperdício por consumidores é muito maior em países da Europa e da América do Norte, enquanto as perdas no campo ocorrem majoritariamente em países africanos, do Sul e do Sudeste Asiático. A redução do total de comida desperdiçada é o maior ponto de alavancagem para um sistema sustentável de comida.
Direito à comida
Cada pixel no mapa representa o número de pessoas ao redor do globo que têm direito constitucional explícito à comida. Incluída no pacto econômico, social e de direitos culturais internacionais da ONU, o direito à comida é claramente reconhecido na constituição de 30 países. Atualmente, cerca de 815 milhões de pessoas no mundo não ingerem calorias suficientes para sustentar suas necessidades diárias de energia. Uma solução para esse problema, e outros relacionados com o nosso insustentável sistema alimentar, seria estabelecer esse direito nas constituições de todas as nações. No entanto, o impacto atual do direito constitucional à comida no sistema de segurança alimentar ainda é desconhecido.
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