Edição 12 - 07.01.19
Por Amauri Segalla
O empresário Guilherme Quintella gosta de fazer uma brincadeira quando perguntado sobre o desafio de investir em ferrovias no Brasil: “Trem não é fácil, a começar pelo dormente”, diz ele. “Se dormente fosse bom, teria outro nome. Talvez vivalvido ou, quem sabe, espertão.” Os funcionários do discreto escritório da Estação da Luz Participações (EDLP), na zona sul da cidade de São Paulo, estão cansados de ouvir a piada, mas Quintella não se importa de repeti-la sempre que está diante de um novo interlocutor. Criada por ele em 2003, a EDLP é especializada no desenvolvimento de negócios em infraestrutura logística. Seu projeto mais ambicioso é a Ferrogrão, a monumental ferrovia com mais de 1.000 quilômetros de extensão que ligará Lucas do Rio Verde, no Norte do Mato Grosso, ao porto fluvial de Miritituba, no rio Tapajós, no Pará. Quintella idealizou a Ferrogrão e agora trabalha para tirá-la do papel. Questionado sobre como surgiu o projeto, ele de novo recorre ao humor. “No começo, tudo eram trevas”, diz, e as palavras são seguidas por um sorriso maroto.
A ironia tem um fundo de verdade. Não fosse a tenacidade de Quintella, o projeto nem sequer existiria – e as trevas dominariam. O Brasil, nem é preciso dizer, tem gargalos na infraestrutura que emperraram o crescimento econômico em geral e o avanço do agronegócio em particular. O presidente da EDLP cita de cabeça os efeitos nefastos dos entraves nacionais. Segundo ele, o Brasil desperdiça 5% do PIB com a ineficiência logística, ou algo como US$ 100 bilhões por ano. “Com esse dinheiro, dava para construir umas oito ferrovias idênticas à Ferrogrão, só para você ver como o País joga dinheiro fora”, afirma. Orçada em R$ 12,7 bilhões, a Ferrogrão tem potencial para transportar mais de 80% da produção anual de Mato Grosso, ou cerca de 20 milhões de toneladas de grãos, sendo que o volume deverá superar 50 milhões de toneladas em 2050. Na pior das hipóteses, diz Quintella, a ferrovia será responsável por mais de 55% da exportação de grãos do Mato Grosso. Na melhor, muito mais.
Obcecado por estatísticas, Quintella é uma máquina que dispara números. A defesa que faz do sistema ferroviário é sustentada por uma avalanche de dados. Ele lembra à reportagem que Mato Grosso é maior do que França e Itália juntas. A seguir, dispara uma série de comparações. “A França tem 32 mil quilômetros de malha ferroviária e a Itália, 16 mil”, diz. “O Mato Grosso possui aproximadamente 600 quilômetros de ferrovia. Você acha que os italianos e franceses estão errados e o modelo brasileiro, certo? Claro que não.” O especialista prossegue, mas o humor dá lugar à indignação quando é instado a comparar rodovias com ferrovias. Em 1930, informa Quintella, o Brasil asfaltou sua primeira estrada (a Washington Luiz, que liga o Rio de Janeiro a Petrópolis). Naquele ano, o País operava 30 mil quilômetros de rodovias. Hoje em dia, as estradas somam 250 mil quilômetros de asfalto, enquanto são menos de 10 mil quilômetros de ferroviais operacionais.
Não é preciso muito esforço para entender a importância da Ferrogrão. Basta recorrer aos números. Segundo projeções da EDLP, a linha pode baixar o custo de transporte de soja de R$ 300 por tonelada para R$ 110 e encurtar em quatro dias a viagem dos grãos do Mato Grosso em direção aos portos fluviais e, depois, para destinos como China, Rússia e Europa. Quem poderia ser contra isso? O governo brasileiro não é contra, mas nos últimos anos não tem sido muito a favor. É aí que entra a obstinação de Quintella pelo projeto. A ideia da ferrovia começou a ser debatida em 2012 por produtores, tradings e especialistas. Como presidente da EDLP, uma das maiores estruturadoras de operações logísticas do País, Quintella abraçou a iniciativa e resolveu torná-la real. Naquele mesmo ano, o executivo encontrou-se com a então presidente Dilma Rousseff, que, segundo ele, ficou 100% convencida da importância da ferrovia para o agronegócio brasileiro.
Faltava provar que o negócio era mesmo viável. Pouco depois do encontro com Dilma, Quintella determinou que a equipe da EDLP percorresse de carro os 1.142 quilômetros da BR-163 que separam Sinop, na região produtora de grãos do Mato Grosso, e o porto de Miritituba. “Como a ideia era fazer a ferrovia paralela à estrada, mandei dois engenheiros analisarem o percurso inteiro para ter certeza de que o projeto seria possível”, diz Quintella. Depois de quase um mês de viagem e uma série de relatórios, os funcionários trouxeram informações preciosas. A primeira delas: o percurso é praticamente todo plano, saindo de uma altura de 400 metros acima do nível do mar para chegar a pouco mais de 70 metros. Isso não é nada em uma ferrovia com mais de 1.000 quilômetros de extensão. Só por essa razão, o custo da obra seria reduzido consideravelmente.
A segunda informação trazida pelos especialistas era igualmente animadora: o percurso tem longas retas, algumas delas com 90 quilômetros de extensão. Tanto em estradas quanto em ferrovias, quanto menos curvas para serem construídas, mais barata é a construção. A terceira característica do trajeto que chamou a atenção de Quintella dizia respeito aos obstáculos que cruzavam o caminho dos trilhos. Como os especialistas constataram, há no percurso poucas pontes, viadutos e túneis. A maior barreira é uma ponte de 250 metros, mas nada muito sério para uma ferrovia tão extensa. O trabalho de pesquisa dos profissionais da EDLP resultou em um relatório com exatas 3.998 páginas e 630 plantas de engenharia. “Pedi para o pessoal colocar mais fotos para arredondar para 4 mil páginas”, diz Quintella. “Falando sério: o estudo talvez seja um dos mais completos já realizados sobre infraestrutura logística no País.”
De posse de todos esses dados, que comprovavam a viabilidade técnica e operacional da Ferrogrão, Quintella partiu para a nova – e mais importante – fase do processo: encontrar parceiros interessados em participar do negócio. “Eu imaginava que não seria difícil convencer o pessoal de que a ferrovia é vital para o agronegócio”, diz. “Mas o que descobri foi que havia um interesse muito maior do que eu tinha calculado.” Assim, a EDLP se tornou sócia no projeto das tradings ADM, Amaggi, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus que, juntas, embarcam mais de 85% dos grãos exportados pelo Brasil e que devem construir e operar a ferrovia. Cada um dos participantes será dono de uma fatia de 16,6% do negócio e deverá bancar de imediato 30% de seus custos totais. No plano desenhado por Quintella, os outros 70% serão financiados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
O projeto entusiasmou alguns dos protagonistas do agronegócio brasileiro. Maior produtor de soja do mundo, o empresário Eraí Maggi disse em entrevista recente que o custo da ferrovia “é um troco perto dos benefícios que ela vai trazer”. Para Antônio Galvan, presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso (Aprosoja-MT), serão três os potenciais ganhos para os agricultores: a valorização da terra, o menor custo de transporte e os lucros com a operação da ferrovia, já que os principais players do setor são sócios do projeto. “A Ferrogrão vai provocar uma revolução no transporte de grãos do Brasil”, diz Galvan. “Ela não irá beneficiar apenas os produtores, mas trará ganhos para toda a economia brasileira.”
Se empresários e produtores estavam convictos da eficácia da Ferrogrão, havia outro desafio a resolver: a inoperância do governo. A instabilidade política (não custa lembrar, desde 2013 o Brasil passou por um processo de impeachment da presidente, denúncias sem fim de corrupção e uma polarização dramática que resultou no processo eleitoral mais violento da história da jovem democracia brasileira) não só interrompeu o andamento do projeto como fez com que investimentos permanecessem em compasso de espera até a definição das urnas. O cenário de incertezas causou estragos em diversos setores, mas em especial no de infraestrutura, que depende de grande volume de recursos para viabilizar as obras. Quintella espera iniciar as conversas com o presidente eleito, Jair Bolsonaro, a partir do ano que vem.
Trens, trilhos e dormentes sempre estiveram presentes na vida profissional de Guilherme Quintella. Aos 20 anos, ele trabalhava na trading da família, a Cutrale Quintella, e já tinha planos de focar sua atuação na área de logística. No início dos anos 1990, a empresa comprou suas primeiras locomotivas para operar na malha da estatal Fepasa, passando a transportar soja do interior de São Paulo para o Porto de Santos. A aquisição resultou em ótimos negócios, mas também em muita dor de cabeça. A viagem entre Campinas e Santos, que deveria levar dez horas, demorava às vezes um dia inteiro, ou mais. O sistema falhava com frequência e os reparos costumavam se prolongar horas a fio, causando prejuízos. Foi nessa época que ele diz ter aprendido uma grande lição do pai, o empresário Wilson Quintella. “Ele me disse que o trem só vai funcionar no Brasil quando voltar a transportar passageiros, porque a carga não vota e o passageiro, sim.”
Mais tarde, a Cutrale Quintella foi pioneira em usar o sistema de navegação hidroviária no Tietê-Paraná para o transporte de soja. Em 2003, essas operações e todos os seus ativos (locomotivas, vagões, barcaças e terminais) foram arrendados à francesa Louis Dreyfus. No mesmo ano, Guilherme Quintella fundou a EDLP, que logo se tornaria uma das principais estruturadoras de projetos de logística do Brasil. Desde então, a empresa participou, entre muitas outras ações, da reestruturação da Brasil Ferrovias e atuou como assessora da ALL na compra de ativos da Ferronorte, Ferroban (antiga Fepasa) e Novoeste. Atualmente, Quintella é o único brasileiro no board da International Union of Railways (UIC), organismo representante de 200 empresas que, juntas, operam mais de 1 milhão de quilômetros de ferrovias e transportam 30 bilhões de passageiros e 13 bilhões de toneladas de carga por ano. “O Brasil pode ter esquecido isso, mas os exemplos no mundo inteiro mostram que construir ferrovias é o melhor caminho.”
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