Edição 11 - 25.10.18
Por Amauri Segalla
No final de 2018, 4,3 bilhões de toneladas de alimentos serão produzidos no mundo. Desse total, 1,3 bilhão irá para o lixo, segundo estimativas da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Embora a própria FAO reconheça que o número possa conter alguma imprecisão (há tantas variáveis envolvidas, do tamanho do PIB às tecnologias de produção, entre inúmeras outras, que é impossível cravar um indicador exato), os especialistas concordam que cerca de 30% dos alimentos, de qualquer parte do planeta, são desperdiçados ou se perdem de alguma forma.
Algumas simples comparações dimensionam o problema. A cada ano, o mundo joga fora 20% de toda a carne produzida, o equivalente a 75 milhões de bovinos abatidos, 30% dos peixes, algo como 3 bilhões de salmões, e 45% das frutas, mais ou menos 3,7 trilhões de maçãs. Estudos da FAO mostram que 24% de todas as calorias prontas para consumo jamais cumprem o seu destino. Ainda mais chocante: a quantidade seria suficiente para alimentar todos os 800 milhões de famintos do mundo – e não uma, mas quatro vezes. Do ponto de vista financeiro, o desperdício é uma tragédia. Os alimentos eliminados valem aproximadamente US$ 1 trilhão. Para ficar bem claro o que isso significa: todos os anos, um montante semelhante à metade do PIB do Brasil acaba na pilha de compostagem – ou em destino ainda menos adequado. Apenas para produzir a quantidade colossal de comida desperdiçada, gasta-se US$ 172 bilhões em água e ocupa-se uma área equivalente a todo o México. Sob qualquer ângulo que se analise a questão, o resultado parece óbvio: a redução do desperdício é vital para o futuro do planeta e a sobrevivência dos humanos.
O tema começou a ser debatido com seriedade em meados dos anos 1990, quando preocupações ambientais ganharam força. Mas só agora, com a chegada de novas tecnologias, é que o desperdício passou a ser combatido de forma mais efetiva. De acordo com estimativas da AgFunder, referência global em investimentos em tecnologia para a agricultura, desde 2015 investidores despejam cerca de US$ 100 milhões por ano em startups que desenvolvem alternativas capazes de reduzir os detritos alimentares. A boa notícia é que o dinheiro está sendo bem usado. Poucas fronteiras empresariais têm apresentado um espectro tão grande de inovações, e com resultados concretos para justificar o volume de recursos aplicados.
Na Europa e nos Estados Unidos, há uma corrida no ambiente acadêmico e empresarial para criar tecnologias deataque ao desperdício. No Reino Unido, a startup Entomics, criada há três anos por quatro alunos de biologia e engenharia da Universidade de Cambridge, irá lançar no mercado um projeto inusitado. Para os jovens mentores da empresa, a melhor maneira de eliminar a comida que sobra nos supermercados e restaurantes é oferecê-las a uma pequena criatura: moscas. Parece asqueroso, mas o sistema tem se revelado eficiente. É fácil entender como a coisa funciona. As larvas de moscas são comedoras vorazes e podem ingerir quantidades enormes de alimentos prestes a estragar, ou mesmo podres. Ao fazer isso, elas eliminam 95% do volume da comida e a metabolizam em proteínas e gorduras. Bem nutridas, e carregadas de proteína absorvida do lixo, essas larvas se transformam em ração para alimentar aves, peixes e animais de estimação. Segundo Matt McLaren, um dos empreendedores por trás da ideia, a iniciativa tem potencial para provocar uma pequena revolução no planeta. “Asseguro que é um dos métodos mais eficientes e seguros para eliminar detritos alimentares”, disse ele a uma TV britânica.
Também inglesa, a Spare Fruit lida com os resíduos de maneira mais saborosa. Restos de frutas como peras e maçãs são transformados em chips crocantes. A empresa compra de fazendeiros locais alimentos que seriam descartados porque não atendem aos critérios rigorosos, mas muitas vezes injustificáveis, de consumo das pessoas. Em geral, as frutas são rejeitadas por motivos fúteis: manchas causadas por fenômenos climáticos (granizo, geada), descoloração (resultado de chuvas irregulares), formato ou tamanho errados (que se devem aos desígnios da natureza). Para os fazendeiros, trata-se de ótimo negócio vender o que seria jogado no lixo. Para a Spare Fruit, é também uma oportunidade de fazer dinheiro. As frutas descartadas passam por um processo de secagem, são cortadas em fatias finas e desidratadas até virarem chips. Desde 2016, quando foi criada, a Spare Fruit transformou centenas de toneladas de lixo em alimentos saudáveis que já ocupam as prateleiras de grandes redes de supermercados da Inglaterra.
Equipe da Entomics: restos de alimentos viram insumos em uma inusitada indústria de rações
De acordo com estudos recentes realizados pela FAO, mais da metade das perdas (54%) em âmbito mundial ocorre nas fases de produção, armazenamento e transporte. O desperdício posterior, que corresponde a 46% do total, está relacionado a hábitos dos consumidores ou a questões ligadas às vendas. Segundo Murilo Freire, pesquisador da Embrapa, maior centro de pesquisas sobre o agronegócio brasileiro, para entender a fundo a questão é preciso antes de tudo distinguir perda e desperdício. “Perda é o alimento que não chega ao consumo humano”, diz o especialista. “Ela se dá por diversas razões. Um exemplo: se o produtor precisa fazer a correção do solo e não faz, pode acabar perdendo o que plantou.” O pesquisador da Embrapa continua: “O desperdício ocorre no final da cadeia. Na maioria das vezes, o produto não tem padrão comercial para as vendas e acaba sendo descartado de propósito”.
No Brasil, entre as principais causas das perdas de frutas e hortaliças estão o manuseio inadequado, embalagem fora de padrão e falhas no transporte das mercadorias. “Assim que o alimento é colhido, ele não pode ser tratado de qualquer maneira”, diz o pesquisador. “O produto precisa ser colocado em embalagem adequada e armazenado de forma que não prejudique a qualidade. Temos um índice elevado de perdas porque os produtores não sabem nada disso. Utilizam caixas de madeira que são abrigo de micro-organismos.” O profissional da Embrapa também culpa o consumidor pelos índices elevados de desperdício. “Nem sempre alimento bom é aquele com aparência impecável, e as pessoas foram educadas para acreditar nisso”, diz. “É preciso explicar que frutas, verduras e legumes fora de padrão também são produtos de qualidade.”
No campo, o desperdício é um problema em busca de solução. Inúmeras AgTechs (como são chamadas as startups de tecnologia voltadas para a agricultura) trabalham lado a lado com produtores para encontrar alternativas tecnológicas para o problema. Em Santa Bárbara, nos Estados Unidos, a empresa de biotecnologia Apeel Sciences arrecadou no ano passado US$ 33 milhões para desenvolver uma notável inovação. A empresa usa extratos de plantas que, aplicados em lavouras de frutas, prolongam a vida útil dos produtos após a colheita. Pesquisas empíricas mostraram que a iniciativa tem potencial para reduzir o desperdício em até 50%. A também americana Wiserg está transformando cascas de banana em fertilizantes e combustível, o que de certa forma torna realidade o “Capacitor de Fluxo” do inesquecível De Volta para o Futuro, no 22 qual um cientista maluco usa lixo doméstico para gerar energia capaz de mover o seu carro.
Empreendedores do mundo inteiro investem em tecnologias e métodos capazes de reduzir o número de resíduos alimentares descartados – e, claro, trazer algum retorno financeiro. Na Dinamarca, surgiu o aplicativo Too Good To Go, que os donos definem como um lugar que “resgata” refeições que seriam desperdiçadas. O termo resgate é apropriado. O app vende, em toda a Europa, sobras de restaurantes, mas apenas aquelas que não passaram pelos pratos dos clientes. Basta consultar o cardápio disponível na plataforma e se dirigir ao estabelecimento para pegar a comida, vendida a preços quase sempre módicos. O Too Good To Go fica com uma parte do valor da transação. Desde 2016, 5,2 milhões de refeições foram resgatadas pela plataforma e a meta é chegar a 10 milhões no final de 2019. Segundo a Associação de Restaurantes da Dinamarca, a iniciativa diminuiu em 70% a quantidade de comida que ia para o lixo. Na Inglaterra, o percentual é de 50%. Não é difícil imaginar o impacto planetário se todos os restaurantes do mundo fizessem algo parecido. Os dinamarqueses da To Good To Go: tecnologia para resgatar produtos perecíveis e transformar em novos negócios
No Brasil, a Ndays, do empresário Paulo Teixeira, é uma espécie de e-commerce de produtos perecíveis. Quem vende pode anunciar, no site, os produtos que estão próximos da data de vencimento. Quem compra, visualiza as ofertas on-line e recebe em casa, ou onde quiser, os itens por preços mais em conta do que nos supermercados. Em meados de agosto, a plataforma anunciava itens como arroz, feijão,farinhas, cereais, azeite, massas, molhos e outros artigos que venceriam em sete dias e com descontos que podiam chegar a 50% do valor original. Teixeira diz que criou o negócio porque sempre quis ter uma empresa que gerasse impactos sociais. Atualmente, a startup conta com 20 mil produtos cadastrados e 100 parceiros comerciais ativos. Entre eles, grandes redes varejistas como o Extra.
Para o varejo, o desperdício de alimentos é sinônimo de desperdício de recursos. Segundo a Associação Brasileira de Supermercados (Abras), o setor perde por ano R$ 7,1 bilhões com alimentos aptos ao consumo, mas que são jogados fora por danos, aparência inadequada ou validade vencida. O montante corresponde a 2,10% do faturamento bruto dos supermercados do País. “Cada item que não cruza o natural e esperado caminho do checkout resulta em prejuízo”, diz Marcio Milan, superintendente da entidade. “Só conseguimos buscar soluções para aquilo que é identificado. O empresário precisa saber o que está perdendo para buscar tecnologias que possam auxiliar na prevenção.” Segundo a Abras, a seção chamada de FLV (frutas, legumes e verduras) puxa a fila do ranking de perdas, com índice de 6,09% do total comercializado. Na sequência, estão padaria e confeitaria (4,70%), rotisseria (3,99%), peixaria (3,26%) e carnes (3,07%).
Algumas redes varejistas enxergam no problema a possibilidade de contribuir com projetos sociais. O Grupo Carrefour Brasil doa anualmente mais de 2,5 mil toneladas de alimentos para programas de combate a fome nos 26 estados do País e Distrito Federal. Os itens são encaminhados aos bancos de alimentos cadastrados pelo Ministério do Desenvolvimento Social ou ao Programa Mesa Brasil, do Sesc (Serviço Social do Comércio), que os encaminha para instituições e famílias de baixa renda cadastradas. Paulo Pianez, diretor de Sustentabilidade do Carrefour no Brasil, lembra que a empresa também lançou, em outubro do ano passado, o Programa Únicos, voltado à comercialização de alimentos fora do padrão estético tradicional. “Colocamos frutas e legumes com descontos a partir de 30%”, diz Pianez. “O projeto estimula o consumo dos alimentos considerados feios pelo senso comum, mas ainda com sua qualidade preservada.”
A iniciativa não tem valor apenas comercial para a empresa, que, afinal, faz algum dinheiro e cobre custos com itens que seriam descartados na lixeira mais próxima. Ao colocar à venda alimentos que desafiam o padrão estabelecido, o Carrefour de certa forma colabora para a reeducação dos consumidores. “Se as pessoas não comprarem a ideia de que o desperdício é um problema sério, e que é possível comer, digamos, uma pera que não tem a aparência perfeita que ela quer, não vamos a lugar algum”, diz Pianez. “O que está por trás de tudo o que fazemos é combater a cultura do desperdício, que começa antes mesmo de o produto chegar à gôndola, com alimentos defeituosos eliminados na própria lavoura.”
Outra ação da empresa, lembra o diretor, é realizar o repacking de produtos soltos. Os alimentos que costumam ser deixados nas gôndolas, como dentes de alho e bananas que caem do cacho – mas em perfeitas condições para o consumo – ganham uma nova “roupagem” e são novamente colocados à venda. Além disso, a rede conseguiu reduzir pela metade o desperdício de bananas com uma medida simples: trocar os móveis onde as frutas ficam expostas. Eles foram configurados para evitar o atrito entre produtos frágeis, e a ideia funcionou. Não é só. Todas as padarias da rede transformam o pão não vendido em torradas e farinha de rosca, o que praticamente eliminou o descarte. “Não há um dia sequer em que deixamos de imaginar soluções para reduzir o desperdício”, diz o diretor de sustentabilidade.
Coordenadora do programa Mesa Brasil, criado pelo Sesc em 1994 e que, apenas entre janeiro e abril de 2018, atendeu 2 milhões de pessoas com a distribuição de 12 mil toneladas de alimentos, Luciana Curvello Gonçalves reforça a importância de reeducar as pessoas. “A mentalidade do consumidor colabora fortemente para o desperdício, já que a estética, e principalmente ela, continua sendo valorizada”, diz. “Nem sempre o mais bonito é o mais saboroso.” A profissional revela que quase todo dia recebe doações de pães que seriam destinados para uma grande rede de fast-food, mas que não puderam ser aproveitados porque os produtos saíram da fornada com pequenos defeitos visuais que não atendem aos critérios de qualidade definidos pela empresa – e que só existem porque foram estabelecidos pelos próprios consumidores.
Às vezes, o mercado consegue transformar o gosto dos consumidores. Um caso clássico de rearranjo comercial é o das maçãs da Turma da Mônica, que criaram um novo hábito de consumo. Como acreditava-se que as pessoas só estariam dispostas a comprar as frutas grandes e de cor vermelha intensa, as maçãs pequenas acabam sendo encaminhadas para a produção de sucos ou para alimentar porcos. Ou iam mesmo parar no lixo. Ao visitar uma fazenda, o cartunista Mauricio de Sousa observou como era feito o descarte das maçãs menores, que ele havia experimentado e percebido que eram também saborosas. Foi nessa ocasião que teve a ideia de lançar as maçãs com o selo Turma da Mônica. A estratégia deu certo e atualmente as maçãs pequenas representam entre 10% e 20% da fruta consumida no País.
O exemplo de Mauricio de Sousa é, no entanto, raro. Uma pesquisa recente realizada pela Unilever, dona de marcas como Hellmann’s,Knorr, Arisco, Kibon e Maizena, comprovou que a preocupação com o desperdício não está no radar da maioria das pessoas. De acordo com o estudo, 61% dos brasileiros assumem jogar fora um ou dois alimentos semanalmente – 49% fazem isso todos os dias. “O mais alarmante é que eles assumem descartar alimentos em perfeito estado para serem consumidos”, diz Marina Fernie, vice-presidente da área de alimentos da Unilever no Brasil. Como era de se esperar, os perecíveis são os mais desperdiçados. “Saladas, vegetais e frutas formam o top 3 dos itens que mais vão parar na lixeira”, diz a executiva.
Reconhecida por desenvolver iniciativas pró-sustentabilidade, a Unilever adota uma série de medidas para lidar melhor com os resíduos. Exemplo disso foi a mudança do formato dos sachês de ketchup, mostarda e maionese da marca Hellmann’s, que ganharam o sistema de abertura “abre-fácil”. Segundo a empresa, o modelo evita o desperdício na abertura da embalagem e durante o consumo. Além disso, por sugestão dos próprios consumidores, criou embalagens squeeze. “Elas são mais fáceis de apertar e, por isso, reduziram a sobra que ia para o lixo de 13% para 3%”, afirma Marina. No Reino Unido, a Unilever foi ainda mais ousada. Como os tomates verdes são sempre descartados pelos consumidores, a empresa resolveu fazer uma discreta provocação. “Desenvolvemos um ketchup com tomate verde”, diz a executiva. “Ao investir em um produto assim, queremos estimular a reflexão das pessoas, mostrar que é possível aproveitar os alimentos.” O ketchup verde deverá ser lançado no mercado brasileiro, mas ainda não há previsão de data.
Maçãs da Turma da Mônica: frutos pequenos, que eram descartados, viraram um produto que ocupa 10% do mercado nacional
As principais empresas de alimentos que atuam no Brasil estão de alguma forma atacando o problema do desperdício. Uma das líderes do setor de restaurantes corporativos, a Sapore serve mais de 1 milhão de refeições por dia e administra uma rede formada por 1,1 mil estabelecimentos. Para evitar o acúmulo de resíduos, a empresa aposta na padronização. “Os alimentos já chegam cortados, higienizados e preparados para a operação”, diz Vanessa Veloso, diretora de operações da empresa. “Até as proteínas vêm padronizadas, com a gramatura ideal. Com isso, geramos 25% menos lixo.” O que não é aproveitado acaba sendo encaminhado para fabricantes de adubos ou para a suinocultura. Iniciativas como essas parecem confirmar uma previsão feita recentemente por Bill Gates, o criador da Microsoft, que hoje dedica boa parte do tempo a causas humanitárias. “Vai chegar o dia em que desperdiçar alimentos será considerado um atentado ao planeta”, disse Gates. A julgar pelo esforço das empresas e pela revolução desencadeada por tecnologias inovadoras, esse dia está cada vez mais próximo.
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