Uma viagem ao universo Halal

Escrevo esta coluna do Paraná, durante uma de minhas visitas habituais a uma empresa exportadora de


07.06.18

Felipe Kleiman é consultor especializado em projetos de abate Kosher e posicionamento de mercado. www.abatekosher.com.br

Escrevo esta coluna do Paraná, durante uma de minhas visitas habituais a uma empresa exportadora de carnes, a quem presto consultoria. A greve dos caminhoneiros terminou há alguns dias, mas não se fala em outra coisa a não ser nos efeitos que a paralização teve, tem e terá sobre o mercado de proteína animal. Escutei um comentário ontem de um dos meus conselheiros: É possível que muitos frigoríficos exportadores atrasem propositalmente seus embarques de exportação, para tentar algum ganho excepcional no curtíssimo prazo no mercado interno tendo em vista que a falta de mercadorias causada pela greve inflacionou significativamente os preços. Se muitas indústrias fizerem isso ao mesmo tempo, em poucos dias o mercado reequilibra a oferta, e os preços caem por excesso de mercadoria na praça.  Ao mesmo tempo em que se dissipa a ilusão de ganho excepcional, materializa-se a perda direta de valor das mercadorias que teriam inundado o mercado.

O fato acima demonstra um espírito especulativo, muito comum no mundo dos negócios. Esse mesmo espírito especulativo está presente em eventos recentes no Universo Kosher e no Universo Halal. Como temos falado diversas vezes, no dia 01 de junho entrou em vigor a norma israelense que exige a instalação de boxes de contenção (de bem-estar animal) para o abate Kosher. Vários frigoríficos do Mercosul não cumpriram o prazo de instalação dos equipamentos e tiveram suas licenças de exportação para Israel imediatamente suspensas. A não adesão ao novo regulamento não foi acaso. Em alguns casos foi especulação, no sentido de tentar forçar um adiamento no prazo ou quem sabe até uma suspensão da exigência. Não colou, e diversas indústrias neste momento estão à espera de poder comprar e instalar as máquinas para seguir fazendo negócios com Israel. Além de especulação, o grau de compreensão dessa norma por parte da indústria é parco. Tanto da norma em si quanto do contexto do mercado consumidor em que o regulamento surgiu e como ganhou vida.

Esse preâmbulo nos dá o gancho para o assunto de hoje: o surgimento de movimentos no Mundo Muçulmano que visam a retornar o abate islâmico aos métodos tradicionais. E principalmente, o modo como o mercado lida com isso. Recentemente a Arábia Saudita – maior comprador de frango brasileiro – baixou um regulamento que modifica o procedimento de pré-abate Halal, proibindo o atordoamento das aves por eletro-narcose antes do abate ritual. Isso causou uma grande comoção no mercado brasileiro, pois esse recurso viabiliza que grandes quantidades de aves sejam abatidas por hora, já que no momento da sangria o frango está imóvel, como que anestesiado, facilitando a operação.

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A metodologia usada atualmente na maioria da produção de frango Halal no Brasil emprega esse tipo de atordoamento, que não é letal. É crescente a demanda dos fiéis muçulmanos em diversos países pela metodologia de abate Halal mais autêntica, que segundo alguns experts religiosos deve utilizar animais plenamente vivos. Há um clamor por compliance e confiabilidade. Tenho conversado frequentemente com especialistas que apontam que há um movimento que busca o “Real Halal”.

As indústrias brasileiras têm reagido a isso de maneiras diversas. Algumas estão buscando formas de atender a nova demanda – de ordem religiosa. Outras, buscam respostas tecnológicas que conciliem as demandas operacionais com o novo regulamento saudita. Muitas outras, porém, têm tratado o assunto como algo estritamente comercial, fazendo lobby e buscando todos os argumentos possíveis para remover isso que consideram uma barreira desnecessária. Alguns jornais publicaram que essas exigências seriam manobras protecionistas contra o frango brasileiro.

Uma parte importante da indústria avícola nacional aposta todas suas fichas na queda dessa norma, que, segundo os industriais, deve inviabilizar o comércio tão robusto do frango Halal brasileiro para a Arábia Saudita. Acreditam, assim, que as autoridades sauditas vão ceder à pressão.

Isso por si só já parece um tipo de ataque especulativo da indústria do frango, traçando um paralelo com a inércia dos frigoríficos bovinos em todo o Mercosul quanto à instalação do box de bem-estar animal, que teve tons de especulação. Segundo, esperar que as autoridades sauditas voltem atrás de uma decisão tão relevante é subestimar sua capacidade de análise de cenários antes de optar por implementar essa normativa.

A outra observação sobre o caso do frango não atordoado Halal, que encontra paralelo com o tema do box de contenção para o abate Kosher, sugere que a indústria avícola brasileira subestima a importância e o apelo social dessa proibição. Parece que a indústria está de costas para seus clientes, pois ignora a tendência mundial no Universo Muçulmano de retorno a um abate Halal mais tradicional e a produtos Halal mais confiáveis. A leitura da normativa da Arábia Saudita emoldurada numa visão da dinâmica desse consumidor Halal informado e inconformado do século XXI, faz muito mais sentido e nos previne de abordar o assunto de modo simplista e superficial.

Ainda que as autoridades sauditas voltem atrás, seja por uma crise de desabastecimento, seja pelo impacto econômico que essas medidas podem gerar, a indústria não pode se dar ao luxo de não compreender os fatos corretamente contextualizados, que equivale a ficar de costas para o seu consumidor.

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TAGS: Arábia Saudita, Avicultura, Halal, Kosher