O inverno das abelhas ameaça as lavouras

Por Débora Crivellaro A natureza tem os seus caminhos. A cada ano, quando o inverno chega ao Hemisf


Edição 8 - 03.05.18

Por Débora Crivellaro

A natureza tem os seus caminhos. A cada ano, quando o inverno chega ao Hemisfério Norte, as temperaturas baixas promovem um processo de seleção natural de várias espécies animais. As abelhas, por exemplo. Até o início da década, cerca de 5% da população desses insetos – que além de produzir mel são importantes agentes polinizadores, trazendo benefícios importantes para a agricultura – não resistiam aos rigores da estação. Mas, nos últimos anos, os apicultores estão em alerta. Em várias regiões dos Estados Unidos esse fenômeno se intensificou, levando a mortandade nas colmeias a níveis superiores aos 40%. E, desde 2014, eles começaram a reportar perdas inclusive no verão – em 2015, chegaram a perder até 25% de seus insetos. Ano a ano, espécies diferentes passam a integrar listas de animais ameaçados de extinção.

Os dados americanos refletem um alarme de alcance global e inquieta a comunidade científica do mundo todo. O desaparecimento maciço das abelhas traz efeitos graves para o equilíbrio ecológico e para a produção de alimentos – elas são as principais responsáveis pela polinização de mais de cerca de 70% das culturas agrícolas. Tanto que o mercado global de polinização está estimado pela ONU em US$ 54 bilhões. Apenas nos Estados Unidos, a conta chega a US$ 15 bilhões.

Não há um único vilão para essa matança em série, mas sim vários fatores, mais decisivos ou não, dependendo da região e da cultura local. O fato é que pesquisadores da área – e eles são muitos – estão debruçados sobre projetos, testando soluções para estancar esse extermínio. Alterações climáticas são apenas uma das variáveis sobre a mesa dos estudiosos para explicar o desastre, batizado pelos cientistas de Colony Collapse Disorder (CCD). O uso irregular dos defensivos agrícolas é uma das hipóteses mais estudadas e, por isso, tem gerado uma mobilização intensa da indústria em torno do tema.

ESPÉCIES EM PERIGO

Aqui no Brasil, apesar de o sumiço das abelhas ser uma realidade preocupante, há várias iniciativas muito promissoras, muitas em andamento. Segundo dados do geneticista brasileiro Warwick Estevam Kerr, aproximadamente um terço das espécies do gênero Meliponina, conhecidas como abelhas sem ferrão, estão em risco no País. Utilizadas como indicadores do ambiente e da biodiversidade, a densidade populacional das abelhas sem ferrão, bem como de outros polinizadores, está sendo reduzida a níveis que podem afetar os serviços de polinização nos ecossistemas naturais e agrícolas, comprometendo a capacidade reprodutiva de plantas e animais silvestres.

Pragas e doenças, uso indiscriminado de agroquímicos, mudanças climáticas, desmatamento e fragmentação de matas e florestas são as causas do problema. A seca dos últimos anos também prejudicou muito a sobrevivência das colônias. “Cada avanço do conhecimento que temos sobre biologia, locais de nidificação, nutrição e alimentação é um tijolinho que colocamos no processo de preservação das espécies de abelhas”, diz Fábia de Mello Pereira, pesquisadora da área de Apicultura e Meliponicultura da Embrapa Meio-Norte e uma das responsáveis pelo Simpósio sobre Perda de Abelhas, promovido pela entidade em outubro passado, em Teresina, Piauí. Participaram do evento vários pesquisadores brasileiros que possuem trabalhos reconhecidos na comunidade científica internacional e acadêmicos de importantes instituições do Exterior, como o pesquisador Yves Le Conte, do National Institute for Agricultural Research, na França, e David W. Roubik, do Smithsonian Tropical Research Institute, no Panamá, um escritório do americano Smithsonian Institute.

A própria Fábia está à frente de um dos projetos mais promissores. Intitulado “Conservação de Recursos Genéticos de Insetos Polinizadores”, ele mantém bancos de germoplasma em várias regiões do Brasil, conservando algumas espécies de abelhas nativas. O trabalho foi iniciado em 2006 com oito espécies de abelhas sendo conservadas nas regiões Norte e Nordeste e atualmente possui mais de 16 espécies sendo criadas. A meta, segundo Fábia, é ter 21 espécies até 2020.

ABELHAS COM CHIP

Outro trabalho revolucionário está sendo tocado pelo Instituto Tecnológico Vale (ITV), em Belém, no Pará, em colaboração com a Organização de Pesquisa da Comunidade Científica e Industrial (CSIRO, na sigla em inglês), na Austrália. Os cientistas dessas instituições criaram microssensores – quadrados com 2,5 milímetros de cada lado e peso de 5,4 miligramas –, que são colados no tórax das abelhas da espécie Apis mellifera africanizada.

O objetivo é avaliar o comportamento desses insetos sob a influência de pesticidas e de eventos climáticos. Uma parte do experimento está sendo conduzida na Austrália e a outra, no Brasil. Cada sensor tem um código gravado, que funciona como a identidade da abelha. Ele é composto por um chip com memória de 500 mil bytes – suficiente para guardar dados a cada segundo por quase uma semana –, uma antena e uma bateria. As informações sobre o movimento das abelhas captadas pelo chip são retransmitidas para antenas instaladas no entorno da colmeia e em estações de alimentação, e depois transferidas para um centro de controle. Com os dados, a equipe constrói um modelo tridimensional da movimentação dos insetos, que permite saber se eles estão agindo naturalmente ou se estão desorientados.

Estima-se que o Brasil tenha mais de 3 mil espécies de abelhas, mas menos de 5% delas são utilizadas em criação racional, o que dificulta ainda mais essa estimativa. A ONG “Sem Abelha Sem Alimento” possui o aplicativo Bee Alert, no qual apicultores e pesquisadores podem documentar voluntariamente as ocorrências de perda de abelhas. Segundo o professor Lionel Segui Gonçalves, um dos idealizadores do projeto, os registros entre março de 2014 e agosto de 2017 foram de 20 mil colônias. Acredita-se que 90% da perda desses insetos tenha relação direta com a ação dos pesticidas nas lavouras, mas essa estimativa se refere somente às espécies criadas e o problema atinge todas as abelhas. Os agentes agressores seriam os componentes químicos presentes nos neonicotinoides, classe de defensivos agrícolas mais utilizada no mundo.

O principal objeto de estudo da professora Roberta Nocelli, do Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) é justamente o efeito dos agroquímicos na extinção das abelhas, pelo menos no Brasil. “O maior de todos os problemas é a perda de mata nativa”, diz Roberta. “Muitas abelhas não se adaptam ao ecossistema urbano.” Segundo a pesquisadora, o problema não seriam os pesticidas em si, mas a forma como eles são pulverizados nas culturas. Além disso, de acordo com ela, no País há a utilização de muitos produtos falsificados, ilegais. “Todo esse processo deveria ser mais fiscalizado.” A professora da UFSCar diz que ainda não se pode falar em colapso das colmeias no Brasil. “Esse fenômeno não acontece no Hemisfério Sul, só no Norte”, diz.

ATAQUE E DEFESA

Além do frio mais intenso e da baixa imunidade das abelhas, os EUA também sofrem com o uso inadequado de pesticidas. Um estudo, publicado na revista Proceedings of the Royal Society B, analisou o papel de 24 fatores na explicação do declínio de quatro espécies de abelhas, rastreadas em 284 colônias em 40 estados dos EUA . Isso incluiu latitude, elevação, tipo de habitat e danos, população humana e uso de pesticidas. Em primeiro lugar vieram os fungicidas, segundo os autores do trabalho, da Universidade de Cornell, nos EUA. Em particular, o clorotalonil, o mais usado nos EUA. A evidência do dano grave às abelhas causado pelos neonicotinoides foi mostrada em outra pesquisa, da Universidade de Dundee, no Reino Unido. Segundo o estudo, a substância reduz em 50% a sobrevivência das abelhas.

Envolvida no cerne da questão, a indústria de defensivos se mobiliza. O estudo da UFSCar é uma das bases do Compromisso 2020, capitaneado pelo Sindiveg (Sindicato da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal) e com a participação de 14 fabricantes de químicos – entre eles grandes grupos como Syngenta, Basf, Bayer, Arysta, Dow, FMC e a brasileira Ourofino. O programa deu novo vigor ao projeto Colmeia Viva, que desde 2014 procura mapear boas práticas no manejo de agentes polinizadores e incentivar a correta aplicação dos defensivos pelos agricultores. A UFSCar, em conjunto com a Unesp, trabalha na produção do Mapeamento de Abelhas Participativo, uma ferramenta que permite receber informações sobre a situação de colmeias em todo o Brasil. As indústrias se propõem a capacitar suas equipes de vendas para difundir junto a distribuidores e agricultores a importância de preservar os insetos aplicando os químicos corretamente.

A melhor forma de tratar disso parece ser o bolso. Algumas culturas, como as amêndoas produzidas e exportadas para o mundo inteiro pelos Estados Unidos, dependem quase que exclusivamente desses insetos na polinização e produção de frutos. A maçã, o melão e a castanha-do-pará, por exemplo, também são dependentes deles. Até mesmo nas lavouras de soja – principal cultura do Brasil, ocupando cerca de 35 milhões de hectares — o impacto é mais do que relevante. Estudo do pesquisador Décio Gazzoni, da Embrapa Soja, mostra que a presença de abelhas pode elevar a produtividade de forma significativa — de 5% a 20%, conforme a qualidade do processo de produção.
“A contribuição das abelhas fica mais evidente quando o teto de produtividade é alto. Ou seja, quando foi feita adubação correta, o clima é bom e a variedade é a mais adequada, o ganho com a polinização se expressa melhor”, afirma Gazzoni.

O MELHOR INVESTIMENTO

O número cada vez menor de abelhas acabou gerando a expansão de negócios baseados no aluguel de colmeias para produtores. Nos Estados Unidos, os chamados beekeepers cobram em torno de US$ 180 pelo aluguel de uma colmeia e, assim, movimentam um mercado estimado em US$ 500 milhões ao ano. No Brasil, o serviço também tem atraído cada vez mais clientes, principalmente nas regiões produtoras de frutos como maçã, que dependem das abelhas para a sua produção. Por aqui, paga-se mais de R$ 80 por caixa.

Em outro front, universidades e startups buscam alternativas tecnológicas para substituir as abelhas. Pequenos drones programados para agir como polinizadores já são testados por pesquisadores japoneses e até mesmo por estudiosos da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. O estudo mais adiantado é o do National Institute of Advanced Industrial Science and Technology, em Tsukuba, no Japão, que desenvolveu protótipos de abelhas robôs dotadas de um gel capaz de retirar pólen de uma planta e transportá-lo até outra.

Diretora executiva da organização Pollinator Partnership, uma entidade sem fins lucrativos que se dedica a chamar a atenção para a questão, Laurie Adams propõe, porém, uma abordagem diferente para um futuro mais próximo e mais natural: “Eu investiria no sistema milagroso que já temos ao invés de buscar uma solução mecânica”.