Edição 3 - 29.01.18
Reportagem publicada na edição #03 (março/abril 2017) de Plant Project
Por Alexandre Teixeira
Imagine uma frota de três navios. À frente, segue uma nau de madeira, do tempo das caravelas, que, apesar do peso dos anos e da tripulação reduzida, navega veloz empurrada por ventos vindos da Ásia. O barco é antigo, sua liderança causa certo embaraço aos demais, mas, visto de perto, tem a bordo tecnologias surpreendentemente sofisticadas e navegadores altamente conectados com o que há de mais moderno. Atrás dele, com os motores superaquecidos, segue um navio novo, lotado de marinheiros pouco qualificados, que não parecem saber lidar com a calmaria. Fechando o cortejo, vai uma outrora vistosa embarcação de aço, precocemente envelhecida, soltando fumaça e praticamente à deriva. O que você faz diante desse quadro? Libera a caravela para abrir distância e lhe oferece apoio na chegada a portos estrangeiros? Ou trata de segurá-la até que os dois navios mais novos, porém mais lentos, consigam resolver seus problemas e deem um jeito de, talvez, alcançá-la?
Batize esses barcos, respectivamente, de Agro, Serviços e Indústria e teremos uma descrição razoavelmente fiel do momento vivido pela economia brasileira, bem como do (falso) dilema estratégico apresentado ao País. Não é de hoje que o setor agropecuário lidera o crescimento econômico nacional. Porém, com a recessão prolongada do último triênio e a colheita ruim em 2016, o mar ficou tão revolto que a diferença de velocidade deixou de ser notada. Agora, com uma supersafra de mais de meio trilhão de reais a caminho, e a expectativa de que o PIB do agronegócio cresça até 4%, contra 0,7% da economia como um todo, o Brasil se reencontra com uma de suas características definidoras: a agrodependência. E precisa decidir o que fazer dela.
Segundo levantamento feito pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) e divulgado em fevereiro, a produção de grãos baterá novo recorde no Brasil, devendo chegar a 219,1 milhões de toneladas na safra 2016/17 – 17,4% a mais que os 186,6 milhões de toneladas da safra anterior. Com base nesse número, encorpado pelas demais lavouras e pela pecuária, o Ministério da Agricultura prevê que o setor vai injetar R$ 546 bilhões na economia neste ano – R$ 15 bilhões a mais do que em 2016, quando o clima não ajudou. Uma colheita dessas proporções certamente ajudará tanto na recuperação da economia quanto na queda da inflação. Com a oferta de alimento barato, crescem as chances de ter o IPCA abaixo da meta de 4,5% e o espaço para ampliar o processo de corte de taxas de juros.
Há quem argumente que a produção rural (da porteira para dentro) representa apenas 5% do PIB brasileiro e, portanto, não é lá tão relevante para as contas nacionais. Contudo, da prancheta do cientista que desenvolve uma nova variedade de semente até a gôndola do supermercado, o setor representa cerca de um quarto da economia nacional e um terço dos empregos no Brasil. Não bastasse isso, o agronegócio é decisivo para o comércio exterior. No ano passado, garantiu o maior superávit já registrado na balança comercial brasileira: US$ 47,7 bilhões. Sete dos dez itens mais exportados saíram de fazendas e agroindústrias nacionais.
Historicamente, quando a economia entra em fase de recuperação, o agronegócio é o primeiro setor a despontar – com potencial para trazer outros setores para cima também. “O agricultor colhe e troca a picape”, exemplifica José Roberto Mendonça de Barros, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. As correias de transmissão da economia fazem com que o desempenho do campo aqueça desde a indústria química (o segmento de fertilizantes cresceu 15% em volume no ano passado) até o varejo, que conta com um aumento de renda relevante no Centro-Oeste e no Sul agrícolas para se estabilizar ou crescer neste ano (leia outros exemplos nos quadros ao longo da reportagem). Os consultores da MB Associados avaliam que, ao longo dos próximos anos, o papel da agricultura tende a crescer ainda mais, uma vez que melhorias tecnológicas estão permitindo que novos produtos sejam criados a partir de biomassa. Compostos plásticos que podem ser usados na produção automotiva são apenas um entre vários exemplos de “biomateriais”.
Dado esse cenário, a primeira pergunta que se faz é: por que o agronegócio é tão mais dinâmico que o restante da economia? O economista Samuel Pessôa, da FGV, atribui o desempenho superior da agropecuária a três fatores: a demanda crescente por commodities agrícolas no Leste Asiático, o forte processo de liberalização pelo qual passou o agronegócio brasileiro e uma certa injustiça tributária contra os demais setores da economia. Uma explicação complementar, que Mendonça de Barros construiu ao longo dos anos para interpretar o descolamento do agronegócio em relação ao restante do PIB, é a seguinte: a cadeia agropecuária é o único segmento relevante da economia brasileira que tem duas características ao mesmo tempo. A primeira é que ela compete no exterior. A segunda é seu foco no aumento da produtividade através da aplicação de tecnologia.
Considere o ranking dos três principais exportadores de produtos agrícolas da atualidade e você encontrará o Brasil entre os líderes em mais de uma dezena de commodities. É fácil entender por quê. De 1990 para cá, a área para plantio de grãos no País cresceu 57%. No mesmo período, a produção teve um aumento de 280%. “Graças à pesquisa da Embrapa, responsável pela evolução da tecnologia no Cerrado, estamos hoje quase nos mesmos níveis dos Estados Unidos em termos de produtividade”, afirma Maurício Sampaio, da GO Associados.
É verdade que parte expressiva do aumento da produtividade veio da mecanização das lavouras, o que significa que o setor já não emprega mão de obra como no passado. “Mas em qualquer economia é assim. Não é só no Brasil”, diz Marcos Jank, especialista em agronegócios globais sediado em Cingapura. “Mesmo os países que mais subsidiam [a produção agrícola] não conseguiram interromper o processo de intensificação da produção via mecanização.”
Dada a condição privilegiada que o agronegócio tem no Brasil em relação a outros setores do ponto de vista de produtividade, é preciso entender qual a estratégia que o País deveria adotar a partir dessa realidade: abraçar a “agrodependência” ou tentar se livrar dela? Ambas as alternativas podem conviver, desde que colocadas dentro de uma mesma política de crescimento e desenvolvimento. É importante que a economia brasileira seja mais diversificada e menos apoiada no setor agroindustrial. Isso deve acontecer, no entanto, com o avanço dos demais de forma mais acelerada, em simultâneo ao incentivo e apoio ao segmento para o qual o Brasil é claramente mais vocacionado. Com retribuição, na forma de um plano estratégico, ao que o agronegócio já fez – e pode fazer ainda com mais intensidade. Apesar de sua relevância e dos seus resultados, o setor é muitas vezes visto de forma marginal e pejorativa dentro das esferas de poder.
Marcos Jank entende que o Brasil é, sim, dependente do campo para crescer sem inflação, mas afirma ter medo da expressão “agrodependência”, que lhe traz sentimentos negativos. “Já entrei em brigas, no passado, com pessoas que dizem que o Brasil tem a ‘doença holandesa’”, conta. Em economia, doença holandesa refere-se à relação entre a exportação de commodities abundantes e baratas e a desindustrialização do país que as possui devido à sobrevalorização permanente da moeda local. O antídoto muitas vezes sugerido nesses casos é a taxação, pelo próprio país exportador, da exportação de suas commodities. “Tem gente que vem com essa ideia boba e ainda diz que esse é um setor atrasado, o que é absolutamente falso”, afirma Jank.
Olhe para a agricultura moderna. O produtor compra cada vez mais produtos industriais, como os já mencionados fertilizantes. Compra máquinas e softwares para agricultura de precisão. E começa a usar drones para monitorar suas plantações. Ainda assim, há quem olhe para essa discrepância entre a pujança do setor agrícola e a performance anêmica da indústria e dos serviços e avalie que temos um problema enquanto país: estarmos, por uma armadilha histórica, dependentes da produção e exportação de commodities. É claro, porém, que a falta de competitividade dos outros três quartos da economia não é problema do agronegócio. Os setores não agrícolas, que nunca enfrentaram competição global, acostumaram-se à proteção por tarifas altas e políticas de conteúdo nacional. Logo, não conseguem competir internacionalmente.
Nesse sentido, deixar o agronegócio andar com as próprias pernas e se virar como pode contra a concorrência internacional é positivo. Contudo, até como complemento a esse laissez–faire, a política comercial brasileira precisaria fazer mais pelo agronegócio em negociações internacionais e abertura de mercados. É o que se pode chamar de abraçar a agrodependência. Convencer-se de que não é um demérito para o Brasil ter um agronegócio competitivo e pujante.
Vista sob esse prisma, a questão da diplomacia talvez mereça uma atenção especial. O mundo vê outros países apostando muito na chamada “food diplomacy”, enquanto o Brasil demonstra pouco apetite para uma “diplomacia da comida”. Produtores rurais acham nossos governos tímidos na defesa do produto brasileiro fora do Brasil, quando se trata de derrubar barreiras tarifárias e sanitárias e, de outro lado, de fechar acordos de comércio que lhes abram novos mercados. “Enquanto isso, a Austrália e a Nova Zelândia, para dar só dois exemplos, protegeram toda a sua exportação com acordos comerciais”, nota Jank.
É possível, contudo, que o momento atual seja um ponto de inflexão. Jerry O’Callaghan, diretor de relações com investidores da JBS, afirma notar uma atitude mais proativa em termos de política comercial nos primeiros nove meses do governo Temer. “Há uma busca incessante por oportunidades. O problema é que nós entramos anteriormente em acordos, como o Mercosul, que limitam a nossa possibilidade de atuar individualmente como país”, pondera ele.
Infraestrutura é outra área que merece atenção. Para ficar no descalabro mais recente, basta lembrar que, com cerca de 3 mil caminhões parados nos 100 quilômetros não asfaltados da BR-163 por algo entre dez a 15 dias, é certo que houve um desarranjo das operações logísticas para escoamento de parte da safra de soja do Mato Grosso pelos portos do Norte.
A cobrança da parte de produtores rurais por melhores estradas e portos é maior, porque eles perdem muito dinheiro e muita competitividade devido a problemas de transporte e logística. A grande questão é como financiar as obras urgentemente necessárias. Samuel Pessôa sugere o resgate do modelo com o qual o Brasil construiu as ferrovias que escoavam o café no século XIX. Mogiana, Sorocabana e Paulista eram empresas privadas, que davam lucro e remuneravam seus acionistas. A renda delas vinha do frete cobrado para o transporte de café. A principal condição para esse tipo de arranjo é melhorar a segurança jurídica e construir marcos regulatórios que deem segurança para o operador privado assumir esse investimento.
Essa é uma agenda que ficou para trás nos últimos anos. “Olhou-se demais para a indústria, para campeões nacionais e de menos para a infraestrutura como um todo”, critica Pessôa. Felizmente, parte dos projetos de infraestrutura incluídos pelo governo Temer no Programa de Parcerias de Investimento (PPI) é dedicada a algumas obras de infraestrutura para o agronegócio – cerca de 20% dos R$ 67 bilhões do total de recursos a serem levantados para o PPI, segundo um estudo da GO Associados. Velas novas, quem sabe, para a resiliente nau capitânia da frota econômica brasileira.
UM SOPRO DE OTIMISMO
A Mercedes-Benz fez as contas e constatou: o novo recorde de produção de 219 milhões de toneladas de grãos significa 32,5 milhões de toneladas a mais a serem transportadas – principalmente por caminhões. A oportunidade existe e, no mercado de soja, o número de consultas à montadora cresceu em relação a 2016. Negócios foram fechados, como a venda de 15 caminhões Actros para a frota própria do Grupo Cereal, um dos grandes produtores da cidade de Rio Verde, principal polo agrícola de Goiás. Não há, porém, um movimento mais expressivo até o momento, na comparação com as vendas de dois ou três anos atrás.
Com a safra de soja ainda sendo colhida no Mato Grosso, o clima entre produtores é de otimismo cauteloso. “Todos esses números [indicativos de supersafra] precisam virar realidade”, nota Roberto Leoncini, vice–presidente de Caminhões e Ônibus da Mercedes-Benz do Brasil. “Quando viram realidade, eles começam a ter impactos.”
Com a quebra da safra de 2016, algumas transportadoras pararam de 70% a 80% de suas frotas. Os dois primeiros meses de 2017 mostraram alguma recuperação em relação ao mesmo período do ano passado no que diz respeito a consultas. A expectativa da Mercedes, porém, é capturar os impactos da supersafra a partir do segundo trimestre de 2017. “Por enquanto, quem tinha 70% da frota parada está colocando os carros para andar”, afirma Leoncini.
No entorno das fazendas, ao mesmo tempo, todo o dinheiro que a safra vai despejar nos polos agrícolas espalhados pelo País deve gerar negócios para a Mercedes na distribuição urbana e entre centros de abastecimento. “Como a economia desses polos agrícolas cresce”, afirma Leoncini, “cresce também a necessidade de transporte”.
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