Edição 6 - 12.10.17
Por Ana Weiss
Manoel de Barros (1916-2014) cantou a paisagem do Centro-Oeste brasileiro como nenhum outro poeta. Na sua busca quase religiosa pela beleza das coisas simples, chegou a países distantes, comovendo leitores para quem ainda não existia a tradução da palavra Pantanal. Nada mais esperado e natural, portanto, que uma homenagem da terra tão lembrada a seu filho mais lido. Por encomenda do Governo do Estado do Mato Grosso do Sul, uma escultura de 400 quilos de bronze reproduzindo a figura do poeta, com o sorriso largo e inconfundível, foi fundida para ocupar uma via pública de Campo Grande. Um tributo, com quase um ano de atraso, ao centenário do autor mato-grossense que levou os animais, as plantas e os pores do sol pantaneiros a leitores de todas as idades.
A ideia original era inaugurar a estátua em outubro, quando Mato Grosso do Sul completa quatro décadas de existência. Um imbróglio burocrático, porém, travou a iniciativa. Para o Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul (IHGMS), o canteiro central da Avenida Afonso Pena, local que receberia o monumento, é um sítio histórico-militar, reservado a outro tipo de homenagem — que não ao poeta mato-grossense considerado, quando ainda vivo, por autoridades como Antônio Houaiss e Carlos Drummond de Andrade, o maior poeta brasileiro em atividade. A via hoje ostenta um monumento em homenagem à Força Expedicionária Brasileira. Assim, o Manoel de Barros bronzeado, que custou ao governo R$ 232 mil, permanece sem destino.
Existe, na dificuldade da realização desse reconhecimento público e na falta de endereço para a estátua do poeta – que aguarda literalmente sentada, em uma cadeira empoeirada de uma repartição pública de Campo Grande – um curioso paralelismo em relação à biografia do escritor. Manoel de Barros levou uma vida relativamente errática até decidir pela vida de fazendeiro, no final da década de 1950. Nascido em Cuiabá, foi criado em Corumbá, onde uma tia cuidou de sua alfabetização. Aos 12 anos, a família o enviou para o Rio de Janeiro, para terminar os estudos em um internato de padre maristas. Lá teve os primeiros contatos com os “Sermões” de Padre Antonio Vieira, uma influência definitiva na carreira literária que teria início quase dez anos mais tarde. Ainda no Rio, cursou a faculdade de Direito, período em que se dedicou ao estudo de Camões (exercitava a escrita fazendo sonetos) e tomou gosto pela literatura modernista, devorando as obras de Raul Bopp, Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade — de quem, anos depois, se tornou amigo.
Assim como a estátua que reproduz suas feições, teve o início da carreira adiada por força maior: filiado ao Partido Comunista, teve os manuscritos de seu primeiro livro, Nossa Senhora da Escuridão , apreendidos pela polícia do governo Getúlio Vargas. Retomou as atividades literárias dois anos depois, com o lançamento de Poemas Concebidos Sem Pecado, em 1937. Poemas, fruto da mocidade, já continha todos os elementos que colocariam o poeta em uma linhagem própria, sem nenhum par, da literatura pós-modernista brasileira, só comparável da feitura a Guimarães Rosa, de quem o mato-grossense também se tornou próximo. Recusando um emprego oferecido pelo pai em Mato Grosso, o poeta seguiu sem local de pouso durante quase toda as décadas de 1940 e 1950. Depois de publicar seu segundo livro, Face Imóvel, de 1942, mudou-se para Nova York, onde estudou cinema e pintura. Levando na mala exemplares de Ezra Pound, T. S. Eliot e García Lorca, empreendeu longas viagens à América espanhola e à Europa.
Seu desterro foi encerrado pelo encontro com Stella dos Santos Cruz, com quem se casou e retomou, enfim, a vida no campo que nunca deixou seus versos. Na fazenda que pertenceu a seu pai, Manoel de Barros criou os três filhos, muitas cabeças de gado e, como a escultura sorridente esperando uma praça, não parecia se importar de viver escondido dos holofotes culturais. “Era um imprestável para entrevistas”, lembra Valter Hugo Mãe, primeiro editor da obra do brasileiro em Portugal. “Eu queria um volume imponente com todos os versos. Ele insistiu: ‘Poesia tem de ser pouca’”, conta o romancista português no prefácio de O Livro Das Ignorãças, relançado pela Alfaguara no ano passado. O resultado foi um livrinho chamado O Encantador De Palavras, muito visto e procurado desde aquele final dos anos 1990.
O escritor, de fato, não fazia questão nenhuma de falar com o público. Diferentemente dos artistas reclusos de seu calibre, recusava as entrevistas com tanta simpatia e delicadezas que os jornalistas desligavam o telefone como se tivessem conseguido o que queriam. Manoel de Barros era uma criatura afável, amada por seus funcionários de fazenda da mesma maneira que seus pares na literatura.
“Meu imenso Manoel de Barros, vejo, com felicidade fraterníssima, que você é, como poucos criadores de pensamentos e emoções, entre nós e entre quem quer que seja”, escreveu o poeta Antônio Houaiss, a respeito do lançamento de O Livro Das Ignorãnças, em 1993. Valter Hugo Mãe diz que uma vez o escritor lhe perguntou por que, afinal, gostava tanto dele. “Respondi que ele punha passarinhos nos meus assuntos.”
Eram passarinhos, sapos, moscas, que das memórias de infância de um pantaneiro, passaram a ocupar a imaginação de adultos e crianças de muitos outros lugares. Manoel de Barros não acreditava que havia um lugar para os poetas, que seu trabalho era o de “tentar encostar com o Verbo na Natureza”. Publicando ou não, acordava todos os dias muito cedo, bebia religiosamente um Guaraná (vício, dizia, herdado do pai) e escrevia à lápis até a hora do almoço, quando assistia ao seriado mexicano Chaves (El Chavo del Ocho) tomando uísque. Brincava, no fim da vida, que os pássaros já o estavam confundindo com as árvores. Talvez a estátua sorridente dentro do escritório burocrático o divertisse mais que uma inauguração protocolar que, até o fechamento desta edição, permanecia sem previsão de acontecer.
SOBRE O POETA DAS MIUDEZAS
O que outros escritores dizem de Manoel de Barros
“O que Manoel de Barros cata no Pantanal só poderia haver sido catado no Pantanal”
Valter Hugo Mãe
“Num momento em que somos catequizados como seres insuflados de divino mas ao mesmo tempo praticamos as maiores torpezas com nossos semelhantes, é um esplendor ver luzir de forma tão convincente e harmoniosa a certeza de que entre o caramujo e o homem há um nexo necessário que nos deveria fazer mais solidários com a vida.”
Antônio Houaiss
“Ele busca a gramática que fica antes da gramática, é o que chamo de ‘aquém da linguagem.’ Deve ser valorizado, em primeiro lugar, justamente por sua singularidade radical, por ser único, parecido apenas com Guimarães Rosa.”
Italo Moriconi
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