Edição 5 - 13.10.17
Por Nicolas Vital
Nas rodas de conversa, nos grupos de WhatsApp, nos eventos do setor, em qualquer momento em que se encontrem dois ou mais pecuaristas, primeiro se ouve um lamento. Talvez surja um palavrão, em seguida substituído por especulações e interrogações. Ganha uma carreta carregada de boi gordo quem conseguir bancar como será, nos próximos meses, o desenho da indústria brasileira da carne – que há não muito tempo era um orgulho nacional, depois transformada em um lamentável criatório de escândalos. Um processo de reorganização de forças, com o surgimento de novos atores e a revitalização de grupos que vinham enfraquecendo nos últimos anos, começa a despontar nos principais centros produtores. Dificilmente, porém, em escala e tempo suficiente para compensar os danos provocados pela sucessão de incidentes que, em várias regiões, paralisaram parcialmente as negociações entre criadores e frigoríficos, estremecendo ainda mais relações que normalmente já são vistas como delicadas.
Primeiro, o abalo sofrido por duas megaoperações da Polícia Federal — Carne Fraca, que revelou dezenas de casos de corrupção de fiscais agropecuários que atuavam em frigoríficos, e Carne Fria, que denunciou a comercialização de gado proveniente de áreas de irregulares no Pará. Em seguida, a delação premiada de Joesley Batista, controlador da JBS, até então a maior companhia privada do país, estremeceu de vez o mercado de carnes no Brasil. Apesar de não terem qualquer envolvimento com as denúncias, os pecuaristas têm sido os maiores prejudicados com a crise enfrentada pela empresa, que ganhou musculatura graças aos aportes bilionários do BNDES, sobrepôs-se à concorrência, tornando-se responsável por mais da metade dos abates em regiões tradicionais como o Mato Grosso, Estado que abriga aproximadamente 30 milhões de cabeças de gado e é líder nacional em abates.
A situação do setor, que já era preocupante após a forte queda no consumo interno e a suspensão das exportações provocada pela Operação Carne Fraca, ficou ainda mais delicada com a crise da JBS, que passou a comprar toda a sua matéria-prima exclusivamente a prazo e desagradou a imensa maioria dos seus fornecedores. Poucos dias depois da divulgação dos vídeos das delações dos executivos da JBS, um seminário promovido pelo banco Santander em Cuiabá refletia o clima de incerteza vivido no setor. Convidado – e presença tida como confirmada até a véspera – o presidente da República, Michel Temer, não compareceu. O ministro da Agricultura, Blairo Maggi, fez a defesa pública do setor e, nos bastidores, tentava acalmar os ânimos. Outro nome relevante que participava do evento, o presidente do grupo Marfrig, Marcos Molina, era assediado a todo instante e sumia a todo instante para participar de uma série de encontros privados com representantes das principais entidades de pecuaristas. Nos dias seguintes, a falta de perspectivas mais imediatas colocou os produtores diante de uma encruzilhada.
Receosos, muitos deles deixaram de vender para a JBS e firmaram parcerias com frigoríficos menores. Outros, no entanto, não tiveram a mesma sorte. Sem alternativas devido à forte concentração do mercado, se viram diante de um dilema: ou aceitavam a venda a prazo ou retinham o gado nas fazendas. “Hoje existe uma insatisfação pela pouca opção para abater os animais”, afirma Luciano Vacari, diretor executivo da Associação dos Criadores de Mato Grosso (Acrimat), lembrando que atualmente apenas cinco grupos frigoríficos — JBS, Marfrig, Minerva, Frialto e Redentor — detém 82% do abate no Mato Grosso. Em 2008, 10 frigoríficos respondiam por 75% do abate.
O próximo passo foi tentar tomar as rédeas da situação. Lideranças de todo o estado têm se reunido para discutir a criação de uma cooperativa para viabilizar o desmonte dos animais e a venda da carne diretamente ao consumidor. Um grupo de criadores esteve recentemente em Rondônia, onde já existe um projeto do gênero, que deve servir de modelo para os pecuaristas mato-grossenses. “A ideia é que a cooperativa seja mais um player no mercado, mais uma alternativa ao produtor”, diz Vacari. “A Acrimat sempre viu isso com bons olhos. Mas é uma coisa que precisa partir dos criadores. A associação em momento nenhum vai fazer parte dessa cooperativa, até porque o nosso estatuto não permite. Mas nós temos a obrigação de ajudar o nosso associado no que for melhor para ele.”
Os primeiros passos para a criação da cooperativa no Mato Grosso já foram dados. Os pecuaristas conversaram com poteciais parceiros e já até encomendaram a estruturação de um plano de negócios para instituições como Fundação Dom Cabral, Fundação Getúlio Vargas e Rabobank. As propostas devem chegar até o final de julho, quando os pecuaristas devem voltar a se reunir para decidir se seguem em frente ou não. “É preciso tratar esse assunto de forma profissional. O plano de negócio é que vai dizer se a melhor forma de colocar o projeto de pé é através do arrendamento de plantas desativadas, do aluguel, da compra ou da construção de uma nova unidade”, afirma Luciano Vacari. “É preciso ter critérios técnicos. Não é porque a cooperativa é do produtor que ele vai vender a carne e nem receber mais por isso. O pecuarista é um cooperado, um sócio da empresa. Será um modelo de governança totalmente profissional.”
Existe, porém, quem veja o negócio com certa restrição. De acordo com um executivo do setor a par do negócio, que aceitou falar sob condição de anonimato, vender carne é um negócio completamente diferente da criação de gado. Segundo ele, trata-se de uma operação complexa, que exige grandes investimentos, muito capital de giro, mas com margens de lucro menores do que na pecuária. “Apenas com a compra de gado, o gasto pode chegar a R$ 2 milhões por dia. Isso sem contar outros custos, como aluguel, funcionários, logística, impostos. Nesse mercado, qualquer deslize pode ser fatal. Não sei se isso está tão claro para eles”, diz.
De acordo com o diretor da Acrimat, os detalhes financeiros serão discutidos somente após a aprovação do plano de negócio pelos cooperados. Vacari, no entanto, se mostra otimista. “O plano é que vai dizer quanto dinheiro precisa e como isso vai ser dividido entre os pecuaristas, mas acho que não será um problema, pois quando o frigorífico compra o boi com prazo de pagamento de 30 dias, ele está usando o dinheiro do próprio produtor como giro. Se o plano mostrar que é um negócio interessante, nós podemos ter mais de uma planta.”
Enquanto a ideia da cooperativa não sai do papel, quem está aproveitando o momento de turbulência da JBS — e a ira dos pecuaristas — para sair do sufoco são os demais frigoríficos da região, que vinham operando com uma ociosidade média de 35% ao menos desde abril. Segundo consultores da região ouvidos pela reportagem, a redução dos abates da JBS, que chegou a 40% no início de julho, tem sido absorvida por outras empresas, como Marfrig e Frialto, dois dos maiores beneficiados com a crise do concorrente. O Marfrig anunciou recentemente a reabertura de duas plantas há tempos desativadas, em Nova Xavantina (MT) e Pirenópolis (GO), além do aumento da capacidade em outras quatro unidades nos estados de Mato Grosso, Goiás, Pará e Rondônia.
Já o Frialto, que possui atualmente duas plantas em operação na região de Sinop, vinha trabalhando com 40% de ociosidade nos últimos meses. Depois da delação bombástica de Joesley Batista, este número caiu para pouco mais de 5%. “Hoje a ociosidade recaiu toda sobre apenas uma empresa, que é a JBS, e as outras empresas puderam aumentar a ocupação”, afirma Paulo Belincanta, controlador do Frialto, que passou a estudar, “com cautela”, a possibilidade de retomar as operações em outra planta da empresa na região, fechada desde 2015. “Ninguém deixa uma indústria de R$ 70 milhões parada porque quer. Eu tenho três plantas no estado e não tinha mercadoria nem para as duas que estavam rodando, seria uma incoerência, uma insanidade, colocar a outra para rodar. Neste momento, estamos com 90% a 95% da capacidade, ou seja, estão cheias, então você começa a pensar na possibilidade.”
A decisão da reabertura ou não da terceira fábrica, no entanto, só será tomada no final de julho, quando o mercado já estiver mais calmo e o cenário para o futuro mais definido. “É um passo que precisa ser muito bem estudado. Você não mexe em uma estrutura industrial de uma hora para outra. O custo para operar uma empresa de 750 funcionários é muito alto. Não dá para tomar uma decisão dessa magnitude no calor do momento. É preciso muita cautela”, explica Belincanta, que estima um investimento próximo de R$ 50 milhões para retomar as operações na planta com capacidade para abater até 18 mil animais por mês.
O empresário também diz apoiar a criação da cooperativa do Mato Grosso. Segundo ele, a entrada de pecuaristas no ramo frigorífico ajudará a melhorar a relação, há décadas conturbada, entre criadores e indústrias. “Sempre achei isso uma coisa interessante. Seria didático se isso acontecesse. Existe uma briga antiga entre frigoríficos e fornecedores, que é uma briga burra, por falta de conhecimento, de convivência. Ao estar à frente de um frigorífico eles poderiam com o tempo desmistificar muita coisa. Acho muito salutar e torço por isso. Acho que seria muito benéfico para a convivência entre pecuaristas e indústrias”, garante.
Procurados pela reportagem, pelo menos três pecuaristas da região preferiram não dar detalhes sobre as tratativas para a criação da cooperativa em Mato Grosso. Todos alegaram receio de algum tipo de articulação por parte dos frigoríficos para impedir o negócio. Enquanto o plano não entra em ação, os pecuaristas vêm buscando outras formas para vender o seu gado. No final de junho, o governo de Mato Grosso reduziu o ICMS de 7% para 4% para a venda de gado em pé para fora do estado por 90 dias. O futuro da JBS segue indefinido. Certo mesmo é que o mercado brasileiro de carnes nunca mais será o mesmo.
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