Edição 4 - 16.10.17
Por Ana Weiss
Com pouco mais de dez anos de vida, a SP-Arte passou a ser uma antena de tendências contemporâneas compartilhadas por galerias e amantes de arte. Na edição 2017 da feira, realizada no começo de abril, a expectativa do público crescente do evento comercial não era outra. Caminhar pelo Pavilhão da Bienal de São Paulo, no Parque do Ibirapuera, era uma experiência estética, um passeio por conceitos como imaterialidade, alta tecnologia, economia nas formas e leveza aplicados à arte e ao design. No meio dessa atmosfera quase futurista, porém, peças de madeira pesadas, irregulares na forma e na apresentação, se tornaram menina dos olhos dos visitantes. Grandes bancos, cadeiras e mesas – objetos que dificilmente vão bem nos layouts mínimos das moradas contemporâneas – roubaram a atenção do público e venderam como água. Pelo menos metade das peças expostas, no cálculo de seu autor, o designer gaúcho Hugo França, um dos únicos artistas do mundo a trabalhar com o pequi-vinagreiro, espécie baiana em extinção que ele aprendeu a lidar nos anos 1980 com os índios Pataxó nas redondezas de Trancoso (BA). “São as árvores mais longevas da floresta tropical”, explica o artista sobre a sua matéria-prima favorita. “Trabalho com árvores que morreram há pelo menos 50 anos. O pequi-vinagreiro vive até 1.200 anos, contra 800, que é a idade máxima de outras espécies tropicais. Então, quando estou esculpindo um exemplar desse, uma planta que deixou de existir, depois de estar por mais de mil anos sobre a floresta, me sinto fazendo uma verdadeira obra de arqueologia”, diz.
A operação arqueológica do designer – que tem hoje peças suas nas em grandes coleções do mundo inteiro – é uma das garantias da exclusividade de tudo o que sai do seu ateliê em Trancoso, no sul da Bahia (onde viveu por 15 anos), e de outras bases que foi criando ao longo do tempo — como a oficina em Louveira, a 70 quilômetros da capital paulista, onde concentra boa parte de seu trabalho, hoje inclusive em locais públicos. A proposta de Hugo França, cujo trabalho é reconhecido e valorizado em todos os grandes centros de design e arte, é preservar até onde é possível o desenho natural, os veios, e as marcas do tempo do vegetal, uma iniciativa que por si só já torna cada peça, que pode custar de R$ 500 a R$ 130 mil, inimitável.
França apareceu no mercado de design na década de 1980 e o circuito contemporâneo levou um tempo para assimilar sua proposta. A operação de seu ateliê nunca foi simples nem barata e, naquele tempo, os compradores de design procuravam o humor urbano. Valorizava-se a manipulação dos sintéticos e tudo que dialogava com as possibilidades industriais, em detrimento das peças ecológicas ou com citações à natureza, que havia dominado a cultura nas décadas anteriores. Nesse contexto, emergiram os irmãos Campana, até hoje símbolo do design brasileiro de ponta, e a produção cosmopolita fazia iniciativas de valorização da brasilidade parecerem artesanato.
Foi a partir de um texto da crítica de design Ethel Leon, no final daquela década, que o Brasil reconheceu o valor criativo do designer. Foi Ethel quem chamou a primeira vez o trabalho de Hugo França de escultura mobiliária, mudando o olhar do mercado e do público para a sua criação: da pesquisa ao acabamento, passando pelo processo, tudo no trabalho de Hugo França era inovador e único. E isso passou a ser reconhecido.
“Nada que faço tem um pedaço de madeira que foi tirada de madeira encontrada viva.”
Uma das singularidades dos móveis e esculturas de Hugo França é que o processo criativo começa antes do projeto. As obras têm início em uma preleção investigativa, a busca pelo resto material lenhoso sem vida, pela morte natural ou acidental de uma espécie praticamente extinta, muitas vezes no meio da floresta, mas também na cidade — em São Paulo, por exemplo, 10mil árvores morrem por ano, conta o caçador de corpos vegetais. Só depois de descoberta a matéria é que começa a etapa verdadeiramente escultórica: o desenho in loco e o corte da madeira, que o artista faz com uma serra-elétrica, o símbolo-máximo do desmatamento que ele se dedica a denunciar. “Desde que não tenha sofrido algum dano irreversível, quase todas as partes das árvores condenadas que encontramos podem ser reaproveitadas”, garante.Não é incomum encontrar Hugo França dedicando horas sob o calor baiano a desenterrar uma raiz escondida de uma árvore monumental caída. A alguns metros da SP Arte, no mesmo parque, uma obra sua – a mais nova – deixa bem explícita essa ideia de ambiguidade entre a restauração de viés ambientalista e a criação de algo novo que se possa chamar de arte contemporânea. “Um tronco para Exu”, nome da grande escultura exposta na capital paulista, é uma raiz de 5 toneladas de uma árvore que viveu durante 1.200 anos. Sustentada por três pés metálicos sobre o terreno do Museu de Arte Contemporânea (MAC-USP), a grande peça faz uma referência ao orixá da cultura afro-brasileira responsável por fazer a ponte entre o mundo espiritual e o da matéria. “Também me sinto atuando no limite entre dois mundos: entre o design e a arte contemporânea; entre o trabalho na floresta e as grandes coleções internacionais”, compara ele.
O processo de restauração de árvores mortas abriu um campo de atuação que tem levado a obra de Hugo França para além da flora nativa do sul da Bahia. Hoje é muito comum que ele e sua equipe sejam chamados em propriedades de quem teve uma árvore perdida, por causa natural ou não. “Vamos até o local, eu e uma média de quatro operadores, conhecer o lugar e a espécie morta. Já no local, começo a pensar nas possibilidades dos vestígios, desenhando sobre a superfície do tronco, com giz, antes mesmo de tirá-lo do lugar. Depois mando a proposta para os proprietários. Muitas vezes, algo que seria um entulho, que o dono do lugar enterraria, já que não se pode mais queimar, se transforma em duas, três peças de mobília. Se pensarmos que metade do material lenhoso é CO2, além de únicos, os novos móveis são baús de crédito de carbono”, relata. Quem tiver uma árvore morta em casa e quiser transformá-la em um banco de 3 a 4 metros criado in loco por Hugo França, vai desembolsar uma média de R$ 30 mil.
Todo esse processo foi repetido várias vezes no Instituto Inhotim, um dos maiores centros expositores de arte contemporânea nacional, em Brumadinho, Minas Gerais, que em suas exposições permanentes possui salas dedicadas a artistas únicos como Tunga, Ligia Pape, Hélio Oiticica. Com dezenas de aquisições ao longo da última década, o Inhotim mudou o eixo da fruição de arte no País. Antes da instituição estar pronta, Hugo França, em pessoa, embrenhou-se na propriedade, detectou as árvores condenadas e começou um trabalho silencioso. Hoje, entre as salas dos maiores nomes da arte e da fotografia moderna e contemporânea do País, o público passa por – e se senta em – 170 criações do designer, em sua grande sala a céu aberto, as primeiras a ocuparem a instituição.
José Zanine Caldas, considerado o maior mestre do design em madeira no País, sacava uma resposta poética para quando acusavam a sua produção de antiecológica. Ele dizia que o bom móvel dava uma segunda e longa vida para a árvore, que depois da vida na floresta, ganhava uma segunda existência “sendo berço, sendo mesa e sendo caixão.” Hugo França e muitos dos que trabalham com madeira (ainda que de reaproveitamento) costumam ser duramente criticados, pois existe uma linha de ambientalistas que acredita que qualquer uso de madeira estimula, ainda que indiretamente, o desmatamento. Ele não se intimida. “Nada que faço tem um pedaço de madeira que foi tirada de madeira encontrada viva.” Para a próxima exposição que vai montar em Paris, o designer quer levar peças construídas a partir de barcos pataxós inutilizados, confeccionados há muito tempo da madeira do pequizeiro. O que os franceses verão em setembro seria então, pela lógica de Zanine, a terceira encarnação da longeva árvore brasileira.
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