Edição 4 - 13.10.17
Por Rachel Costa, de Londres (Inglaterra)
A margem esquerda do rio Tâmisa, na outrora região portuária de Londres conhecida como Docklands, destacam-se os tonéis prateados da companhia açucareira Tate & Lyle. Erguida no ano de 1878, a empresa é um resquício dos tempos em que o açúcar de cana era uma das principais riquezas do pungente império britânico. Séculos atrás, nessa mesma região, o dia raiava em meio ao intenso movimento de trabalhadores entrando e saindo dos navios, descarregando sacas e mais sacas de açúcar, um bem tão valioso que era conhecido como “white gold” (ouro branco). O próprio nome da companhia, Tate & Lyle, revela a importância do açúcar nos tempos imperiais: o Tate estampado em branco no letreiro azul da marca faz referência ao mesmo Tate de uma das galerias de arte mais famosas do mundo, a Tate Modern. Henry Tate, o homem que empresta seu sobrenome a ambas, foi um importante magnata do açúcar e filantropo inglês. Dentre os seus feitos, está a criação da companhia açucareira, a popularização do açúcar em cubos e a doação ao governo inglês de sua coleção de arte, 65 quadros que deram origem à Tate Gallery – iniciativa que cresceu e hoje engloba quatro museus, entre eles o especializado em arte moderna.
Da opulência do período colonial, porém, quase nada resistiu. Embora ainda seja uma das marcas mais tradicionais da Europa, que se orgulha por ter o produto que há mais tempo usa o mesmo design na embalagem (o Golden Syrup, desde 1885), os tempos têm sido amargos para a Tate & Lyle. Desde julho de 2010, o braço açucareiro da multinacional Tate & Lyle PLC foi vendido à americana American Sugar Refining, junto com uma concessão para o uso da marca. Sob nova direção, a refinaria teve uma redução significativa no número de trabalhadores. Seus hoje 850 funcionários representam 50% do quadro pré-venda. Gerald Mason, vice-presidente do grupo Tate & Lyle, atribui os cortes ao tratamento desigual oferecido pela União Europeia (UE) ao açúcar de cana e ao açúcar de beterraba. “Antes do bloco europeu, nós tínhamos seis refinarias e atendíamos a cerca de dois terços do mercado de açúcar europeu”, diz Mason. Hoje apenas a refinaria de Londres segue ativa.
Por isso, Mason, que participou ativamente da campanha pelo “Leave” (saída da UE), sentiu-se esperançoso quando, no dia 29 de março, a primeira-ministra britânica Theresa May ativou o artigo 50, a cláusula que permite aos países membros da União Europeia deixarem o grupo. “Nós tentamos com todas as forças negociar com a Comissão Europeia antes, mas não conseguimos garantir a reforma que queríamos”, conta. Apesar de muitos especialistas acreditarem que a saída do bloco pode ser um processo desastroso para o Reino Unido, que corre o risco de se isolar de seus parceiros comerciais europeus e perder os benefícios de ser parte da segunda maior economia do mundo, Mason é otimista. “Esperamos que, após o Brexit, o governo britânico possa finalmente determinar sua própria política em relação ao açúcar, tratando de maneira igualitária o açúcar de cana e o de beterraba”, diz.
O fantasma que assombra os negócios de Mason tem nome: Política Comum de Agricultura (CAP, na sigla em inglês). Criada em 1968, com o surgimento da Comunidade Econômica Europeia, ela tem os subsídios aos produtores de açúcar de beterraba locais e a taxação às importações do açúcar de cana como uma de suas bases (ver quadro).
O Brexit, a saída do Reino Unido do bloco europeu, acontece em um momento emblemático. Em setembro de 2017, pela primeira vez desde a criação da política, a União Europeia vai abolir o limite anual de venda de açúcar de beterraba pelos países membros, enquanto mantém a sobretaxação do açúcar de cana. Com isso, prevê-se açúcar de beterraba em maior quantidade e mais barato no mercado, tornando ainda mais difícil a vida de quem vive da venda de açúcar de cana. As previsões são de que as importações de açúcar de cana caiam para entre 25% e 28% da capacidade das refinarias. Um futuro azedo para quem tem o lucro dependente da cana.
A BATALHA DOS AÇÚCARES
A batalha entre os dois açúcares é antiga no continente europeu. Se atualmente 80% do açúcar consumido no globo vem da cana, essa não é a realidade quando se fala em Europa. Por lá, 97% da produção vem da beterraba, presente em 19 países membros. No continente, mais que açúcar, a beterraba é uma questão de soberania. Foi durante as guerras napoleônicas, quando houve o bloqueio aos portos ingleses e o consequente desabastecimento de açúcar no mercado Europeu, que Napoleão percebeu uma oportunidade de desenvolvimento regional. Não fazia muito tempo que o químico alemão Andreas Marggraf havia descoberto que raízes de beterraba eram capazes de oferecer cristais com as mesmas propriedades daqueles produzidos a partir da cana-de-açúcar. Durante o período de guerra, aperfeiçoar a técnica tornou-se prioridade, com a construção de refinarias dedicadas a esse fim e com o incentivo aos produtores para se aventurarem no plantio da beterraba.
Com a Batalha de Waterloo e a decadência do império napoleônico, o embargo foi retirado e o açúcar de cana voltou à mesa dos europeus, mas a possibilidade de usar um produto local, a beterraba, para produzir açúcar estava comprovada. Um novo ciclo de investimento na beterraba veio em meados do século 19, quando a abolição da escravatura produziu uma quebra no modelo de produção da cana, até então completamente dependente da exploração do trabalho escravo. Desde então, a batalha entre cana e beterraba pelo mercado europeu nunca arrefeceu. Pelo contrário, ganhou novo fôlego em 1968, com a CAP.
A crítica à CAP não é exclusividade de Mason, tampouco dos apoiadores do Brexit. Em 2006, por exemplo, uma ação na Organização Mundial do Comércio, movida por Austrália, Brasil e Tailândia, forçou a União Europeia a fazer a primeira revisão da medida desde o seu lançamento. “A Europa não precisa de uma política de agricultura, ela precisa de uma política para alimentos. Em vez de se limitar a definir que subsídios vão para qual produtores, o bloco precisa pensar grande”, escreveu em fevereiro deste ano Olivier De Schutter, relator das Nações Unidas para o Direito à Comida e especialista em direito europeu.
UM MUNDO DE PESSIBILIDADES PÓS-BREXIT
De volta às margens do Tâmisa, cabe perguntar: quão realistas são os sonhos de Mason com a saída do país do bloco Europeu? Nos bastidores, muito se tem falado sobre como David Davis, ministro nomeado para comandar as negociações para o Brexit e ex-executivo da Tate & Lyle, pode pender o pêndulo da balança a favor do açúcar de cana. Davis trabalhou na companhia de 1973 até o início dos anos 1990 e é reconhecido como o responsável por conseguir fazer a empresa navegar as políticas do bloco sem afundar no vermelho.
Também conta a favor o fato de que o açúcar de cana é muito mais popular entre os britânicos que entre os outros países europeus. Quase metade do açúcar consumido no Reino Unido é de cana e não há produção de açúcar de beterraba em quantidade suficiente para atender ao mercado interno. Além disso, a maior efetividade do lobby da Tate & Lyle no congresso britânico que no Parlamento Europeu também pode ajudar, avalia Peter Collecott, ex-embaixador do Reino Unido para o Brasil e presidente da consultoria Ambassador Partnership. Collecott avalia que essa pode ser uma oportunidade para os produtores latino-americanos, em especial os brasileiros, ganharem espaço no mercado europeu. Todavia, o ex-embaixador lembra que ainda é cedo para se saber o que exatamente irá acontecer. “Pode ser que o Reino Unido tenha de manter o acesso preferencial de açúcar da União Europeia para poder continuar comprando outros produtos agrícolas europeus”, diz Collecot. Ao que tudo indica, ainda serão muitas as batalhas entre os açúcares até se descobrir o vencedor.
O SISTEMA POR DENTRO
O que é o sistema de cotas?
Implementado em 1968 e revisto em 2006, o sistema de cotas garante o pagamento de um valor acima do preço de mercado aos produtores de açúcar de beterraba.
Como ele impacta o mercado europeu de açúcar?
O sistema baseia-se em três pilares:
1. A produção de açúcar de beterraba deve obedecer à cota máxima anual de 13,5 milhões de toneladas dividida entre os 19 Estados membros produtores de açúcar de beterraba;
2. Caso o país produza acima da cota, o produto não pode ser vendido para a indústria alimentícia dos países membros (mas pode ser usado para a produção de etanol e outros produtos não alimentícios ou ser transferido para a cota do ano seguinte);
3. A produção de isoglicose também está sujeita a cotas.
Além disso, devido ao subsídio aos produtores, a Organização Mundial do Comércio estabelece uma cota máxima de 1,4 milhão de toneladas por ano para a exportação de açúcar de beterraba produzido por países da União Europeia para o resto do mundo.
E onde entra a importação de açúcar de cana nessa história?
O acordo impõe uma quantidade máxima de açúcar que pode ser importado usando-se a taxação especial. Quando esse limite é atingido, outra tarifa é cobrada. O problema é a diferença gritante entre as duas tarifas: passa-se de € 98 por tonelada para € 339 por tonelada do açúcar bruto (não refinado).
Quando o sistema de cotas deixa de valer?
A previsão era de que o sistema chegasse ao fim em 30 de setembro de 2017.
O fim desse sistema não beneficiará a importação de açúcar de cana para a União Europeia?
Não. Com o fim das cotas, espera-se uma maior oferta de açúcar de beterraba no mercado europeu, tendo como consequência a queda do preço. Como não são esperadas mudanças em relação às taxações para a importação de açúcar de cana, calcula-se que as importações caiam cerca de 44% até 2024.
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