“Há um aumento do sentimento antiglobalização”

Por Luiz Fernando Sá Em três anos à frente da OMC, o diplomata brasileiro Roberto Azevêdo coleci


Edição 1 - 11.11.16

Por Luiz Fernando Sá

Em três anos à frente da OMC, o diplomata brasileiro Roberto Azevêdo colecionou conquistas na costura de acordos para tornar mais justas e abertas as relações comerciais globais. O cenário das negociações internacionais, entretanto, parece mais desafiador do que nunca. Uma onda nacionalista e protecionista tem crescido mundo afora, atingindo inclusive países que tradicionalmente se alinhavam à frente do bloco de nações em favor de uma maior abertura das fronteiras para o trânsito de mercadorias e pessoas, como Estados Unidos e Reino Unido. Na entrevista a seguir, concedida a PLANT PROJECT da sede da OMC, em Genebra, Azevêdo analisa esse quadro.

O mundo assiste hoje a um avanço de políticos com discurso nacionalista, inclusive em países com tradições mais liberais. O sr. entende que as negociações mediadas pela OMC correm risco de retrocesso? Há uma nova onda protecionista em curso?
Há, de fato, um aumento do sentimento antiglobalização e da retórica anticomércio em diversos países. Na OMC, acho que o risco não é de retrocesso, mas de dificuldade em avançar nas negociações, sobretudo se as ambições forem excessivas. Diante dessa situação, acho que o desafio é construir convergência em torno de uma agenda que seja possível, de forma pragmática. Especialmente após os acordos que obtivemos nas conferências ministeriais de Bali e Nairóbi, os países estão tentando identificar as áreas em que podem ter progresso no próximo encontro de ministros, marcado para Buenos Aires em dezembro de 2017. Há interesse nos temas que já estão na agenda, incluindo agricultura.

Fala-se também em serviços e em regras para subsídios à pesca. Escuto cada vez mais falar de comércio eletrônico e de pequenas e médias empresas como temas aos quais a OMC deveria dedicar mais atenção. Vamos ver como essas
conversas vão avançar nos próximos meses. De forma geral, o aumento da retórica anticomércio – e a consequente dificuldade de avançar mesmo em acordos bilaterais ou regionais – faz com que as negociações da OMC sejam ainda mais importantes. É preciso redobrar esforços e seguir avançando. Mesmo que o progresso não seja extremamente
ambicioso nesse contexto difícil, temos de seguir caminhando na direção correta, na linha dos avanços recentes.

A decisão do Reino Unido de deixar a União Europeia é um claro exemplo da emergente influência nacionalista e xenófoba. Quais as consequências mais imediatas dessa decisão no comércio mundial? Já é possível avaliar impactos do Brexit nas negociações comerciais internacionais, tendo em vista a relevância do Reino Unido no mercado global?
Ainda há muita incerteza associada à saída do Reino Unido da União Europeia. Formalmente, o processo nem mesmo começou e, portanto, ainda não sabemos quais serão as condições dessa separação. De qualquer forma, o Reino Unido é historicamente uma economia aberta, com peso grande no comércio internacional e nos fluxos de investimentos globais. O secretário de Comércio, Liam Fox, esteve recentemente num evento público na OMC e disse que o Reino Unido será muito ativo na promoção da abertura comercial em nível global, o que faz todo o sentido.

Quanto tempo será necessário para que essas negociações, que incluíam o Reino Unido como país membro da União Europeia, sejam refeitas e as transações passem a correr de forma regular? É possível haver negociações globais em torno do tema ou cada país terá de renegociar acordos individualmente?
Esta é uma situação sem precedentes para a OMC. Tanto a União Europeia quanto o próprio Reino Unido são membros da Organização. A questão é que os compromissos comerciais do Reino Unido na OMC fazem parte das obrigações assumidas em conjunto pela União Europeia, em nome de todos os seus membros. Por exemplo, o Reino Unido não tem compromissos individuais na área de cotas agrícolas e não tem tetos individuais para a concessão de subsídios domésticos à agricultura.

Terá de haver uma lista de compromissos individuais do Reino Unido como país, fora do bloco europeu. Ajustes nessas mesmas áreas terão de ser feitos pela União Europeia. Esses ajustes de parte a parte podem desencadear negociações com os demais membros da OMC. Tudo isso levará tempo e há incertezas quanto ao processo a ser seguido. O que queremos é o menor impacto negativo possível para a economia mundial. Teremos ainda negociações fora da OMC, pois os acordos comerciais da União Europeia beneficiam diretamente 60% do comércio do Reino Unido. Sem dúvida, os britânicos procurarão preservar o acesso preferencial àqueles mercados, que respondem por uma parcela muito importante de suas exportações. Ou seja, ainda haverá muita negociação pela frente.

A crise dos refugiados – e o consequente abrigo dessas populações em outros países – é um tema que se coloca à mesa atualmente nas negociações comerciais?
A contribuição do comércio para o tema é indireta, mas é importante. O comércio internacional tem uma capacidade extraordinária de gerar oportunidades em diferentes partes do mundo. Isso é muito importante, especialmente nas regiões mais necessitadas, nas comunidades mais pobres, no campo, nos países em que a economia interna não é capaz de gerar novas possibilidades para a população.

Como instrumento antipobreza poderoso, o comércio pode atuar na causa, na raiz do problema. Se os produtos e serviços puderem cruzar fronteiras mais facilmente, haverá menos incentivo para que as pessoas atravessem as fronteiras em busca de novas oportunidades. Claro, isso vale para os refugiados econômicos, não para os que partem de zonas em conflito.

A questão dos refugiados e a assinatura de acordos regionais de comércio, como o Nafta, foram temas centrais na campanha eleitoral americana. Na busca por votos, tanto Hillary Clinton como Donald Trump apresentaram posições críticas aos acordos. O sr. teme que os Estados Unidos adotem posições mais restritivas à circulação de mercadorias e de pessoas?
O sentimento anticomércio está mais presente não apenas nos EUA, mas em diferentes partes do mundo. A realidade é que a economia americana se beneficia muito do comércio, mas a maior parte das pessoas não se dá conta disso. Precisamos ajudar a qualificar esse debate. A realidade é que a vasta maioria dos empregos que desaparecem nas economias avançadas cede espaço para as novas tecnologias e técnicas produtivas – não para o produto importado. Fechar as fronteiras é um tiro no pé. É necessário mostrar as vantagens do comércio, mas também enfrentar os problemas onde vierem a ocorrer.

Há alguma maneira de promover campanhas globais em favor do livre comércio? O sr. acredita que a OMC deve deixar de trabalhar apenas no nível governamental para levar sua mensagem diretamente aos cidadãos?
Acredito que é importante ter um debate informado. Na OMC, trabalhamos para isso. E, como esse é um esforço coletivo, atuamos em parceria com outras organizações internacionais, como o Banco Mundial, o FMI e a Unctad (a Conferência das Nações Unidos sobre Comércio e Desenvolvimento). Algumas lideranças empresariais, como a Câmara de Comércio Internacional, também estão agindo nesta frente. Na última reunião de líderes do G20, na China, esse foi o grande tema de conversa entre os presidentes. Precisamos comunicar melhor os benefícios do comércio, reconhecer e atuar nos casos em que há problemas e agir para fazer com que o comércio seja mais inclusivo e beneficie mais as pequenas empresas também. Enquanto o comércio for percebido como algo em que apenas os grandes ganham, a batalha da comunicação será sempre difícil.

O novo governo brasileiro tem adotado uma postura mais aberta a negociações individuais, em vez de manter todas as suas fichas em acordos firmados pelo Mercosul. Qual sua opinião sobre esse movimento?
O Mercosul está passando por mudanças significativas. Honestamente, não sei quais os impactos dessas mudanças para as negociações comerciais do Brasil. Ao mesmo tempo, acompanhando as notícias de longe, vejo que as negociações Mercosul-União Europeia estão entre as prioridades do Brasil. Essas são negociações de peso e que podem trazer impulso importante para a economia nacional. Acho extremamente positivo que a política comercial esteja sendo objeto de reflexão aprofundada no Brasil.

O ministro Blairo Maggi, da Agricultura, também ganhou um papel mais central nessas negociações. Recentemente, fez uma missão de mais de 20 dias à Ásia, reforçando as conversas com vários países da região e iniciando um novo ciclo de relações com essas nações. O sr. acredita que a chamada Food Diplomacy, baseada na necessidade que os países possuem de atender a uma demanda crescente de alimentos por suas populações, terá um papel cada vez mais relevante? O Brasil pode se beneficiar disso?
Faz todo sentido que o Brasil, como grande produtor e exportador agrícola, busque ampliar oportunidades comerciais e promover seu agronegócio no mundo. É o que fazem as grandes potências agrícolas, mesmo no mundo desenvolvido,como é o caso do EUA. Ao mesmo tempo, é importante lembrar que o tema da segurança alimentar é visto de maneira distinta em diferentes partes do globo. Alguns países entendem que precisam proteger seus mercados por causa disso, enquanto outros defendem que o comércio sem barreiras é a melhor maneira de promover a segurança alimentar.

A agricultura sempre foi um tema sensível e espinhoso nas negociações. Está havendo uma mudança de ânimo em relação a isso?
Em 2015, conseguimos viabilizar a maior reforma das regras sobre o comércio internacional no setor agrícola nos últimos 20 anos. Na conferência ministerial de Nairóbi, os membros da OMC decidiram eliminar os subsídios às
exportações agrícolas, o tipo de apoio que mais distorce o comércio e prejudica quem é competitivo no agronegócio. Foi um avanço enorme, especialmente para países com o Brasil. Claro, há muito mais a ser feito. Na área de subsídios à produção doméstica, por exemplo, ainda há diferenças significativas nas posturas negociadoras dos grandes atores.

Mas, ao mesmo tempo, vários países querem avanços nessa área. Muito recentemente, os EUA iniciaram uma disputa contra a China na OMC exatamente com foco no apoio doméstico à produção agrícola, questionando vários programas chineses. Temos de ver como essa disputa avança e se ela terá algum impacto na dinâmica das conversações. O Brasil é bastante ativo nessa agenda. Além de insistir no tema de apoio doméstico, os brasileiros falam muito no impacto que barreiras sanitárias têm sobre suas exportações agrícolas. E não estão sozinhos. Acredito que esse tema pode ganhar importância nos próximos meses, de olho na conferência ministerial de 2017.

 

Entrevista publicada na edição #1 (nov/dez 2016) de PLANT PROJECT

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