Edição 19 - 13.04.20
Por André Sollitto
O ecossistema de inovação brasileiro é conhecido pelo grau de maturidade de alguns setores. As fintechs, por exemplo, já são conhecidas no mundo inteiro. Basta ver a quantidade de unicórnios nessa área para entender o tamanho da revolução causada por essas startups no mercado financeiro: PagSeguro e Stone oferecem meios de pagamento, a Ebanx processa pagamentos e o Nubank, que hoje é um decacórnio avaliado em US$ 10 bilhões, oferece uma gama de serviços financeiros, de cartões de crédito a contas para pessoas físicas. Outro setor forte é a logística, que também tem diversos representantes avaliados em mais de US$ 1 bilhão, como o iFood, o app de delivery de comida mais popular do País, e a Loggi, que oferece diversas opções de frete. O agronegócio ainda não tem um unicórnio, mas isso é uma questão de tempo, já que as agtechs têm despertado a atenção de fundos de investimento, que passaram a atuar por aqui. E o que pode acontecer quando a inovação une dois desses setores em um movimento em um dos pontos mais sensíveis do agronegócio brasileiro? Prepare-se para a convergência tecnológica entre o agro e o mercado financeiro. Vem aí uma revolução e o alvo do momento é o crédito agrícola.
Agtechs (as empresas com base tecnológica com foco no agro) e fintechs se apressam e encaram até grandes conglomerados financeiros para encontrar novas soluções que as permitam liderar o futuro do financiamento e do seguro rural. Para entender o tamanho do desafio, é preciso conhecer um pouco do burocrático e engessado sistema de crédito rural. O produtor que precisa de recursos para investir em sua propriedade não tem tantas opções. O principal mecanismo de custeio da produção é o Plano Safra, criado em 2003 e lançado anualmente com vigência entre julho daquele ano e junho do ano seguinte, datas escolhidas por conta do calendário da safra brasileira. O plano reúne um conjunto de políticas públicas que garantem a produção. A edição de 2019/2020 do Plano prevê um montante de R$ 225,59 bilhões, sendo R$ 169,33 bilhões para crédito rural (custeio, comercialização e industrialização) e R$ 53,41 bilhões para investimentos, segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. As taxas de juros também são determinadas: 3% ao ano no caso de custeio, comercialização e industrialização; 4,6% ao ano para os beneficiários do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf); 6% ao ano para o Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor Rural (Pronamp); e 8% ao ano para demais produtores.
Esses recursos vêm do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e de fundos constitucionais, entre outros, e são oferecidos por instituições financeiras autorizadas a operar em Crédito Rural. Durante muito tempo, o Banco do Brasil foi o principal fornecedor dos recursos. Sua capilaridade e a forte associação com o setor consolidou essa posição. Mas, recentemente, os outros grandes bancos, como Bradesco, Santander e Itaú também passaram a atender os produtores, além de instituições especializadas, como o grupo holandês Rabobank. Como o crédito oficial é insuficiente, o produtor encontra alternativas de financiamento em revendas, tradings e cooperativas, fontes tradicionais do custeio da produção agrícola, e recursos dos próprios bancos e instituições financeiras. As condições, claro, são diferentes.
Revolução digital
É nesse ambiente que as agfintechs (as empresas de tecnologia focadas nas questões financeiras do agronegócio) estão ganhando notoriedade, oferecendo soluções para resolver alguns dos principais problemas do setor. Os gargalos são muitos. O processo todo é muito burocrático e exige farta documentação. A obtenção dos documentos ainda é pouco digitalizada, o que dificulta ainda mais o trabalho dos produtores. A obtenção do crédito rural subsidiado é travada e exige uma série de comprovações. “Brincamos que o produtor passa seis meses na lavoura e seis meses no banco”, diz Bernardo Moscardini, CTO e cofundador da startup TerraMagna, uma agfintech especializada justamente na digitalização de processos nessa área. “O ambiente é muito regulado no Crédito Rural”, afirma Roberto França, diretor de Agronegócio do Bradesco. “Isso dificulta muito a automatização dos processos. O mercado precisa evoluir independentemente das regulações.”
Quem busca recursos de fontes alternativas esbarra em outra dificuldade: encontrar investidores dispostos a atuar como financiadores, já que o agronegócio ficou com a fama de ser “arriscado”, principalmente por conta da falta de garantias e sistemas de monitoramento eficazes. “A percepção de que é preciso saber o que acontece no campo já existe, mas as ferramentas usadas são erradas”, afirma Moscardini. O método mais utilizado para saber se o produtor estava cumprindo sua parte, plantando o que disse que plantaria, por exemplo, é baseado em visitas de campo à propriedade – algo absolutamente sujeito a falhas. É preciso saber o que acontece a todo momento.
É nesse limite entre o agro e os serviços financeiros que atuam empresas como a TerraMagna. Com sede em São José dos Campos, em São Paulo, a startup é responsável pela plataforma de monitoramento agrícola FIDES, que acompanha cada etapa da produção. Antes da operação, garante compliance socioambiental e oferece dados sobre a produção histórica da terra. Mostra a confirmação do plantio, o percentual plantado e o tipo de cultura. Dá alertas para veranicos e potenciais quebras de safras e acompanha a colheita. As informações são captadas via satélite e garantem um alto nível de segurança. “Garantimos que a operação financeira tenha tudo para nascer e continuar saudável”, afirma Bernardo Moscardini.
O monitoramento feito de maneira confiável é uma ferramenta muito importante não apenas para fornecer dados aos investidores, mas também para ajudar na obtenção de seguros, ainda muito caros. Em 2017, por exemplo, apenas 15% da área plantada era coberta por algum tipo de apólice rural. Quem trabalha no campo reclama dos preços e da falta de opções oferecidas pelas seguradoras. Estas, por sua vez, afirmam que não existem dados históricos e acompanhamento em tempo real para garantir melhores condições – e muitas vezes admitem que deixam de oferecer seus produtos no mercado por não terem como fazer uma análise de risco confiável da produção no campo. O Ministério da Agricultura tem trabalhado em um banco de dados, mas as informações ainda são insuficientes. O Plano Safra de 2019/2020 destinou R$ 1 bilhão para o Seguro Rural, mas a ministra Tereza Cristina afirmou que pretende dobrar essa quantia no próximo ano.
De maneira semelhante, a Agrotools desenvolve projetos que ajudam instituições financeiras a fornecer crédito, aumentando a eficiência e reduzindo fatores de risco. Uma das principais agtechs da América Latina, ela oferece soluções que contemplam desde o cadastramento de novos clientes de forma geográfica e digital, garantindo que a propriedade não tenha passivos ambientais, por exemplo, até a identificação de riscos e monitoramento de garantias. Santander, Rabobank e Itaú BBa, por exemplo, já utilizam tecnologia da Agrotools para automatizar processos e obter mais informações sobre os clientes, tornando as operações mais seguras.
Após a etapa do monitoramento, a obtenção de documentos e certificados representa outra dor de cabeça. É aí que entram startups como a Bart Digital. Fundada em 2016, em um evento de hackathon realizado pela sociedade rural do Paraná, em Londrina, a agtech surgiu como uma plataforma de gestão integrada de títulos e contratos do agronegócio que usa blockchain para oferecer maior transparência nos acordos. O foco inicial era a automatização e simplificação das operações de barter, em que o produtor usa como garantia a entrega dos grãos que ainda serão produzidos para custear o pagamento de insumos ou a aquisição de maquinário agrícola. O barter, hoje, representa uma espécie de troca triangulada entre o produtor agrícola, o fornecedor de insumos e a trading, e oferece vantagens para todos os players envolvidos. Mas o processo complexo, o custo variável dos custos para registrar a Cédula de Produto Rural (CPR), veículo que viabiliza grande parte das operações de barter, e a própria natureza do mecanismo de financiamento impedem que ele seja ainda mais usado. Na edição deste ano do Show Rural Coopavel, tradicional feira agrícola realizada em Cascavel, no Paraná, a Bart Digital anunciou o lançamento da Ativus, plataforma desenvolvida para emissão, assinatura, acompanhamento e registro de títulos agrícolas eletrônicos. Inicialmente, será possível emitir apenas e-CPRs, as cédulas eletrônicas, mas novos títulos e funcionalidades deverão ser anunciados nos próximos meses.
Um de seus fundadores, o empreendedor Renato Girotto, se afastou há algum tempo da Bart Digital para se dedicar a uma nova startup: Brain Agriculture. “A proposta é bem diferente, de core tecnológico, big data e machine learning. A partir do CPF do produtor, nossa solução faz uma busca em todas as fontes públicas e retorna com as informações necessárias para o credor em dois a três minutos”, afirma ele. A partir daí, ele vai decidir se concede ou não o crédito. Lançada em agosto, a solução já conta com 5 milhões de hectares monitorados. Em julho, a startup lançará uma versão de seu Farm Check destinada aos produtores. “Para que eles possam tomar crédito mais empoderados. A base é a mesma, mas é mais amigável para o produtor”, diz Girotto. A empresa também prepara uma outra ferramenta de inteligência de mercado, ainda sem data de lançamento anunciada.
De olho no investidor
É possível perceber como várias dessas soluções têm foco nos credores e investidores. Afinal, ainda é preciso atrair o crédito privado, muito mais do que existe hoje, com uma segurança maior. Especialmente o capital estrangeiro. “Para um fundo argentino, por exemplo, é até difícil explicar o tamanho da burocracia”, afirma Girotto. A situação está mudando, felizmente. “Há um mito de que o agro é inseguro, fruto de um desconhecimento muito grande”, diz Bernardo Moscardini. Essas tecnologias estão ajudando a desmistificar os investimentos no setor e a fazer com que o mercado financeiro chegue ao campo após passar muito tempo longe.
Algumas ferramentas têm ajudado nesse processo – e podem ganhar impulso com o apoio de novas soluções tecnológicas. Uma das principais é o Certificado de Recebíveis do Agronegócio, conhecido como CRA. Eles permitem que os financiadores transformem recebíveis de sua carteira, ativos individuais ilíquidos, em títulos mobiliários acessíveis ao mercado de capitais tradicional. Essa operação é feita no Brasil por securitizadoras e oferece diversas vantagens. A principal delas é a isenção de impostos para pessoas físicas. Não à toa, 60% das operações com CRAs são feitas por pessoas físicas. Mas essa não é a única. Para os investidores, permite uma diversificação de carteira com segurança e retornos atrativos em renda fixa. Para aqueles que originam os recebíveis, permite uma transferência de risco e aumento de liquidez. Os CRAs representam uma ferramenta recente – têm base legal em uma lei de 2004 e foram emitidos publicamente pela primeira vez em 2012.
Outro dispositivo que tende a impulsionar os investimentos no setor é a Medida Provisória nº 897/19, apelidada de Nova MP do Agro. Publicada no Diário Oficial da União no início de outubro de 2019, ela complementa as medidas do Plano Safra 2019/2020. Uma das principais novidades é o Fundo de Aval Fraterno (FAF), mecanismo que permite que produtores se reúnam em grupos e façam um fundo comum. Ele funcionará como garantia às instituições financeiras para a quitação de dívidas. As CPRs e os títulos do agronegócio também poderão ser referenciados em dólar, o que dá maior segurança na contratação de empréstimos. E o produtor poderá fracionar sua propriedade em partes menores e oferecer apenas algumas dessas partes como garantia no momento de solicitar um empréstimo. Essas frações da propriedade serão usadas como lastro para a emissão de Cédulas Imobiliárias Rurais (CIR).
Os gigantes se movem
A busca por inovação não fica restrita apenas às startups. As grandes instituições financeiras têm se mobilizado para digitalizar processos e atender às demandas dos produtores de maneira mais eficaz. O Banco do Brasil conta com uma equipe formada por 35 pessoas dedicada à busca de inovação no agro. Eles desenvolvem tecnologias internas, como o AgroBot, um sistema de inteligência artificial que oferece informações para que o produtor tome as melhores decisões. Também mantém uma parceria com a Basf na plataforma AgroStart, que busca as melhores startups do setor. “Temos uma relação histórica com o produtor e estamos atentos para atender suas necessidades”, diz Marco Túlio Moraes da Costa, diretor de Agronegócio do Banco do Brasil. O Bradesco está na fase final de implementação da plataforma Open Bra, que vai espalhar colaboradores nas revendas agrícolas. O objetivo é dar resposta a crédito aos produtores rurais em no máximo 48 horas. “Descentralizamos muito o processo”, diz Roberto França, diretor de Agronegócio do banco. “Nosso desafio para 2020 é aumentar nosso portfólio.” O Santander também está apostando na digitalização de processos. O banco está desenvolvendo um portal que funcionará como uma pasta digital em que os documentos dos produtores serão arquivados. O processo ficará menos burocrático e mais seguro. “É algo que já acontece no banco para pessoas físicas”, diz Carlos Aguiar, diretor de Agronegócio do Santander Brasil. “Agora, vai funcionar para a fazenda. O cliente vai colocar os documentos lá e vamos retornar com as pendências”, afirma.
Mudança a longo prazo
Essa disrupção, no entanto, ainda pode demorar um pouco para acontecer com a força que precisa. No agro, as coisas acontecem em outra velocidade. “O contato humano ainda vale muito no campo. Além disso, se na cidade estamos vivendo a indústria 4.0, no agro ainda estamos na 3.0”, afirma Bernardo Moscardini.
A chegada das tecnologias ainda esbarra em problemas conhecidos pelos produtores há muito tempo, como a falta de conectividade nas propriedades rurais. E a grande regulamentação que existe no setor impede que aconteça uma revolução nos moldes daquela causada pelas fintechs no sistema financeiro brasileiro tradicional. O que tem acontecido é a união das instituições bancárias e das agtechs em parcerias que tendem a facilitar a vida de quem trabalha no campo. “Estamos atentos às tecnologias para aprender com as melhores práticas. É bom para o mercado. Todos crescem. O grande diferencial das agfintechs é a oferta simplificada. Elas têm uma estrutura mais simples. Mas não têm o balanço para fazer ofertas mais parrudas”, diz Roberto França, do Bradesco. “Nós conversamos com todos os players para melhorar processos e firmar parcerias.” Vinícius Queiroz, gerente sênior de Transformação Digital do Rabobank Brasil, concorda. “O que vemos é o crescimento nas parcerias entre grandes bancos e startups para explorar novos modelos de atuação como, por exemplo, marketplaces de crédito, onde os clientes podem comparar ofertas entre diversas instituições para escolher a que for mais conveniente para ele”, diz Queiroz.
Mais cedo ou mais tarde, o que é certo é que as mudanças vão acontecer. Revendas, tradings e outros intermediários vão continuar existindo, mas sua atuação tende a mudar. Tradings ainda possuem uma infraestrutura logística enorme que não vai se tornar obsoleta de uma hora para outra, mas vão depender cada mais de investimentos em tecnologia. É o caso da Cargill, a maior empresa do mundo com capital fechado. Com 153 anos de idade, a companhia adotou uma mudança de estratégia que leva em conta as demandas da sociedade por alimentos específicos, obtidos de maneira sustentável, e não apenas commodities. A Cargill vendeu setores inteiros, como a divisão de suínos, comprada pela JBS em 2015, e investiu em aquacultura, uma fonte de proteína que tem crescido muito nos últimos anos. Recentemente, passou a integrar a iniciativa Covantis, que vai usar tecnologias como blockchain para modernizar processos e tornar o comércio mais seguro e eficiente.
Uma das perspectivas mais animadoras para os produtores é o surgimento de linhas de crédito individualizadas. À medida que as instituições tiverem em mãos informações mais precisas sobre como cada um trabalha, incluindo o histórico de cada propriedade, os empréstimos não serão mais feitos com base em critérios generalistas. “A tecnologia vai permitir a criação de modelos para cada perfil de produtor. Hoje, a régua é a mesma e o bom produtor paga pelo mau. Eventualmente, será possível para uma seguradora oferecer um seguro personalizado. O crédito tende a seguir pelo mesmo caminho”, diz Renato Girotto. Essa revolução, no entanto, é algo que deve acontecer a longo prazo.
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