Sustentabilidade também é negócio

Por Romualdo Venâncio Sustentabilidade é um conceito amplo e, de tão usado, de certa forma gasto.


Edição 16 - 06.09.19

Por Romualdo Venâncio

Sustentabilidade é um conceito amplo e, de tão usado, de certa forma gasto. De modo geral, para um negócio, ser sustentável significa ser viável social, ambiental e economicamente. Não é tarefa fácil, mesmo para grandes grupos com discurso moderno. No agronegócio, o conceito virou, nos últimos anos, uma tênue linha entre vender ou não vender. Empresas e países vivem nessa corda bamba frequentemente balançada por consumidores cada vez mais exigentes e margens sempre mais apertadas. Ser sustentável deixou de ser uma opção para se tornar condição no acesso a mercados – ou, olhando pela ótica reversa, deixou de ser um diferencial de quem é para se transformar em uma barreira para quem não consegue chegar lá.

O Brasil e sua agropecuária ora pendem para um lado, ora para o outro, nessa tentativa de se mostrar ao mundo como o grande fornecedor de alimentos. É um jogo em que as aparências muitas vezes parecem enganar, mas em que é cada vez mais difícil fingir diante de tantos olhos a nos observar. Quando se trata de vender produtos agrícolas, estamos na maior vitrine – e, portanto, sujeitos ao escrutínio global. O problema é que, nos últimos meses, o que se vê nessa vitrine é um embate que pouco contribui para que nosso agronegócio possa exibir o rótulo de sustentável. A turbulência acirrou-se desde que, em julho passado, o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), órgão governamental vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), divulgou que o desmatamento na Amazônia Legal em junho deste ano chegou a 920,4 km2, aumento de 88% sobre o registrado no mesmo mês de 2018 (488,4 km2). A maneira como esses dados foram publicados irritou o presidente da República, Jair Bolsonaro, tanto que chegou a sugerir que o trabalho do Inpe pudesse sofrer influência de ONGs (organizações não governamentais) estrangeiras. Para ele, diante do risco de prejudicar as negociações do Brasil com mercados internacionais, essas estatísticas deveriam passar pelo crivo dos ministros Marcos Pontes, do MCTIC, e Ricardo Salles, do Meio Ambiente, antes de se tornarem públicas.

Com os dados do Inpe colocados sob suspeição e a falta de confiança global de que os próximos números a serem divulgados serão fidedignos, criou-se uma aura de desconfiança capaz de esconder o grande esforço que vários setores do agronegócio têm feito para demonstrar que utilizam, em suas lavouras e rebanhos, práticas que aproveitam ao máximo os benefícios do equilíbrio entre produção e preservação, retorno econômico e desenvolvimento social. Tudo isso de forma coletiva, pois ninguém é sustentável sozinho.

Muitos representantes das cadeias produtivas agropecuárias também cobram do Inpe uma apresentação mais clara, para toda a sociedade, dos detalhes sobre o monitoramento de áreas desmatadas. A derrubada de uma árvore não é necessariamente devastação (veja a seção Plant Positivo desta edição sobre manejo florestal sustentável), como pode acreditar erroneamente quem não conhece o agronegócio. Por outro lado, o próprio setor tem à disposição informações, também resultado da combinação de ciência e tecnologia, comprovando que o Brasil é a nação que mais conserva a vegetação nativa. Conforme divulgamos na PLANT número 10, dentro de propriedades agrícolas e pecuárias espalhadas por todo o País há 218 milhões de hectares destinados a essa preservação, uma área, vale ressaltar, equivalente a 25% do território nacional e cotada em R$ 3,1 trilhões. Essa dimensão foi revelada por um minucioso trabalho da Embrapa Territorial (Campinas, SP) a partir de dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR), com averiguação por imagens captadas por satélite e cientificamente analisadas.

Nelson Ananias Filho, da CNA

“Existe uma mobilização de recursos humanos e financeiros para a manutenção dos recursos naturais que deveria ao menos resultar em algum diferencial de mercado para o Brasil, em alguma conquista de novos mercados”

Para o chefe-geral da Embrapa Meio Ambiente (Jaguariúna, SP), Marcelo Augusto Boechat Morandi, esse resultado só é possível pelos ganhos de toda a agropecuária em eficiência produtiva, o que também é uma resposta a boa parte dos questionamentos sobre sustentabilidade. “O Brasil sempre esteve no meio da polêmica entre produzir mais e crescer e preservar seus recursos naturais, mas nas últimas cinco décadas passou de importador de alimentos para um dos mais importantes produtores e exportadores globais, alimentando 1,5 bilhão de pessoas no mundo”, comenta o pesquisador, acrescentando que a disponibilidade de recursos naturais, associada a políticas públicas, competências técnico-científicas e empreendedorismo dos produtores brasileiros, foi fundamental para esse desenvolvimento.

A opinião de Morandi tem o reforço de Nelson Ananias Filho, coordenador de Sustentabilidade da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). “O setor vem batendo recordes de produtividade, e com a verticalização tem reduzido a pressão sobre a abertura de novas áreas”, diz. Ananias filho é tão enfático para comentar esses resultados quanto para cobrar recompensa aos produtores pela prestação de serviços ambientais, e pode até não ser remuneração em espécie. “Existe uma mobilização de recursos humanos e financeiros para a manutenção dos recursos naturais que deveria ao menos resultar em algum diferencial de mercado para o Brasil, em alguma conquista de novos mercados”, justifica.

ALIANÇAS ESTRATÉGICAS

De algum tempo para cá, os mais diferentes agentes envolvidos com a cadeia produtiva agropecuária despertaram para o interesse de investidores estrangeiros em rachar a conta da zeladoria ambiental. Principalmente de países mais familiarizados com a cultura preservacionista. Em dezembro de 2015, durante a Convenção do Clima (COP21), em Paris, na França, o governo de Mato Grosso apresentou um plano de captação de recursos, chamado Estratégia Produzir, Conservar e Incluir (PCI), para custear o aumento da eficiência da produção agropecuária e florestal, a conservação dos remanescentes de vegetação nativa, a recomposição dos passivos ambientais e a inclusão socioeconômica da agricultura familiar. O projeto vislumbra ainda a redução de emissões e o sequestro de 6 GTonCO2 (6 milhões de toneladas de dióxido de carbono). E comprova que os setores público e privado e o terceiro setor podem trabalhar em sintonia, pois além do governo estadual na linha de frente, representado por diferentes secretarias, há a participação do Ministério Público, de entidades do agro, de várias ONGs – nacionais e internacionais – e de grandes grupos privados.

Segundo o diretor executivo do Comitê Estadual da Estratégia PCI, Fernando de Mesquita Sampaio, o projeto surgiu com visão e preocupação de longo prazo. Frente ao desafio de ganhar agilidade, seja na prospecção de investidores, seja no acesso aos recursos, foi criado o Instituto PCI. O que também exigiu certa dose de paciência, pois, como conta Sampaio, a concepção do instituto, que começou em 2015, só foi consolidada este ano. “Fazer o que pretendemos, apenas com dinheiro do governo, é muito difícil, por conta da burocracia. E embora a sustentabilidade seja tratada como um tema emergencial, acessar os recursos disponíveis lá fora ainda é um processo demorado”, explica Sampaio.

Essa lentidão começou a ser superada com a apresentação de um bom plano de metas, seguido de comprovação prática, dando mais transparência às negociações. Por meio do Programa Global REDD for Early Movers (REM), o estado já conseguiu recursos da Alemanha (17 milhões de Euros) e do Reino Unido (24 milhões de Libras), que serão aplicados durante um período de cinco anos, com gestão do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio).

Daniela Teston, do WWF-Brasil

“Quem entrar nesse barco agora não paga passagem. Muita gente terá que ir nadando depois, e vai dar mais trabalho”

A Estratégia PCI é parte de uma dinâmica de transformação que conduz o agronegócio ao avanço de diálogos até bem pouco tempo improváveis. A WWF-Brasil, que já foi vista como obstáculo no caminho das cadeias agropecuárias, hoje bate à porta de empresas diretamente envolvidas com a produção de alimentos levando propostas como o programa Colaboração para Florestas e Agricultura (CFA), desenvolvido em parceria com a The Nature Conservancy (TNC) e a National Wildlife Federation (NWF). Entre as companhias que atenderam à porta estão Walmart, Carrefour, BRF, Danone e Subway. Preservar o Cerrado é uma das prioridades do CFA. “É um bioma muito ameaçado e com risco de desmatamento forte e rápido”, alerta Daniela Teston, coordenadora do programa na WWF-Brasil.

O conhecimento de causa tem sido um grande aliado para afinar a sintonia com quem ainda franze a testa para essa aproximação. “Saímos de uma relação conflituosa para outra mais harmoniosa”, diz Daniela, que traz experiências anteriores tanto no terceiro setor quanto na indústria da carne. No caso do CFA, contar com o financiamento da Gordon and Betty Moore Foundation certamente facilita a conversa. Ainda assim, há empresas resistentes ao convite da WWF-Brasil. “Quem entrar nesse barco agora não paga passagem. Muita gente terá que ir nadando depois, e vai dar mais trabalho”, acrescenta a executiva.

E O DESMATAMENTO?

Algo que parece estar bem resolvido para a cadeia agropecuária é o combate ao desmatamento ilegal. Já a questão sobre não desmatar ou continuar a fazê-lo se houver amparo da lei ainda gera divergências. Fernando Sampaio é enfático quanto à posição da Estratégia PCI: “Nossa meta é acabar com o desmatamento ilegal, não temos meta de desmatamento zero”. Esta é também a opinião de diversos núcleos da classe produtora, que busca o máximo aproveitamento de suas terras. Marcelo Morandi, da Embrapa Meio Ambiente, acredita que o Brasil pode e deve zerar o desmatamento. E também deve acabar com a ocupação ilegal de terras públicas, defender as áreas protegidas e aprofundar os ganhos de produtividade.

Ananias Filho, da CNA, chama a atenção para a forte relação entre sustentabilidade e a saúde financeira dos empreendimentos rurais. Para ele, se o agronegócio como atividade comercial não tiver força suficiente para bancar os empregos gerados direta e indiretamente no setor, não sustentar a obrigação de manter uma reserva legal de 80%, 35% ou 20% que seja, não há como garantir o meio ambiente. “Enquanto a mata deitada render mais do que em pé, como se fala, ainda haverá avanço sobre essas áreas”, lamenta. Pelo lado da pesquisa, Morandi destaca a aplicação de tecnologias para evitar essa situação, sejam as mais tradicionais e que continuam a dar resultado, sejam as inovações mais disruptivas. “Há conhecimentos e tecnologias disponíveis para todos os tipos e tamanhos de propriedade”, comenta.

Pode parecer repetitivo dizer que a sustentabilidade no agronegócio depende de uma série de fatores, mas é inevitável. O avanço tecnológico, por exemplo, é determinante para elevar a eficiência produtiva, que por sua vez é uma condição imprescindível para conter a abertura de novas áreas agrícolas ou pecuárias. “Diante do monte de terras já abertas que produzem muito pouco, não é muito lógico se falar em abrir novas áreas, que até podem ir para o mesmo caminho da baixa produtividade”, avalia Daniela Teston, da WWF-Brasil.

Para se ter ideia, até mesmo uma gigante como a Cargill, com atuação nos segmentos alimentício, agrícola, financeiro e industrial, passa por ajuste de rotas de vez em quando. A multinacional, que tem um histórico considerável de ações sustentáveis, anunciou em junho deste ano o adiamento da meta que assumiu em novembro de 2014 ao assinar a Declaração de Nova York sobre Florestas (NYDF, sigla em inglês para New York Declaration on Forest), plataforma global proposta pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento com o objetivo inicial de reduzir pela metade, até 2020, qualquer relação das empresas participantes com desmatamento e, em 2030, de chegar ao nível zero.

Quem deu a notícia à imprensa de que 2020 virara 2030 foi a diretora global de Sustentabilidade da Cargill, Ruth Kimmelshue, que ainda disse não acreditar que outras empresas consigam cumprir o desafio. O motivo: a complexidade do tema. O balanço dos três primeiros anos da NYDF, por exemplo, deixou a desejar, sobretudo nos países tropicais, que em 2017 apresentaram perda de 14,2 milhões de hectares de cobertura florestal com emissão de 4,6 gigatoneladas de CO2. Nesse triênio, as emissões anuais médias de dióxido de carbono por desmatamento foram 68% superiores à média histórica entre 2001 e 2013.

Com esse passo atrás, a multinacional acabou marcando um ponto em transparência, pois ao identificar a situação, de certo a partir de análises técnicas e realistas, tratou de informar seus stakeholders e a sociedade. Omitir ou disfarçar esse cenário poderia ser pior, e com grandes chances de não dar certo, pois o mundo todo observa bem de perto o agronegócio e a produção de alimentos, ainda mais no Brasil.
A empresa também fez outro esclarecimento público ligado ao tema desmatamento. Após comunicar a criação de um fundo de 30 milhões de dólares destinado ao fomento de soluções inovadoras para eliminar o desmatamento no Cerrado, a companhia enviou uma carta aos produtores de soja, assinada por Helio Tamburri, gerente de Originação, explicando que essa iniciativa não mudaria sua posição contrária à Moratória da Soja neste bioma. Em 2006, a Cargill participou, com outras agroindústrias, governos, entidades do setor e ONGs, da implementação da Moratória da Soja, assumindo o compromisso de não comprar ou financiar soja cultivada em áreas do bioma Amazônia.

CRÉDITO SUSTENTÁVEL

Qualquer avanço nos indicadores de sustentabilidade pode se reverter em vantagens competitivas para a cadeia produtiva. Inclusive na hora de discutir as opções de financiamento com o gerente do banco. A exemplo do Rabobank Brasil, que tem uma estreita relação com o agro e trata a sustentabilidade como fator decisório, e até excludente, na concessão de crédito. “Entendemos que as questões socioambientais estão intrinsecamente ligadas à questão financeira, por isso os critérios de nossa política global são acompanhados de variáveis como o cumprimento da legislação brasileira – ambiental e trabalhista – e também mensuramos as boas práticas de sustentabilidade”, explica Daniela Sampaio, gerente do Departamento de Consultoria do banco, acrescentando ser fundamental conhecer a realidade dos produtores para oferecer uma opção de crédito apropriada. Do lado dos clientes, quem não corresponder às exigências do banco recebe, em um primeiro momento, orientações para se adequar. Se a avaliação seguinte não apontar evolução, há o risco de suspensão da prestação de serviço.

Daniela Sampaio, do Rabobank

“Entendemos que as questões socioambientais estão intrinsecamente ligadas à questão financeira, (…) por isso também mensuramos as boas práticas de sustentabilidade”

O Rabobank também fez parte de uma grande operação da Cofco International, que em julho deu uma arrancada para expandir sua atuação internacional e mostrar alinhamento com a demanda mundial por alimentos. A empresa chinesa, que em 2018 registrou movimentação superior a 100 milhões de toneladas de commodities e receita de 31 bilhões de dólares, assinou acordo com um consórcio de 20 bancos para um empréstimo de 2,1 bilhões de dólares vinculado à sustentabilidade. Segundo a própria companhia, é o maior empréstimo para um trader de commodities com essas condições. Entre as prioridades dessa ação estão a melhoria, todo ano, do desempenho ambiental, social e de governança corporativa, e a rastreabilidade de produtos agrícolas, principalmente a soja produzida no Brasil.

A redefinição do sucesso da iniciativa privada para além da lucratividade deu origem às B Corps, abreviação das empresas certificadas como Benefit Corporations. O movimento começou nos Estados Unidos, em 2007, com a fundação do B-Lab, organização sem fins lucrativos que leva em consideração 180 fatores para definir o quanto a companhia avaliada está comprometida com o bem-estar coletivo e não apenas de sua saúde financeira, criando valor para a sociedade como um todo. Na América Latina desde 2012, o Sistema B já conta com mais de 350 empresas, que juntas faturam mais de 5 bilhões de dólares por ano. O Brasil tem 123 instituições certificadas como B Corp, sendo 15 do agronegócio.

Julio Nogueira, da Klabin

“Nosso projeto de certificação florestal gera valor para toda a cadeia, pois ajuda esses agricultores a trabalharem com madeira certificada, o que poderia ser um processo burocrático e moroso para eles”

No final do ano passado, a B3, bolsa de valores oficial do Brasil, intensificou a relação investimentos/sustentabilidade com os green bonds, “títulos de dívidas usados para captar recursos com o objetivo de implantar ou refinanciar projetos e compra de ativos capazes de trazer benefícios ao meio ambiente ou ainda contribuir para amenizar efeitos das mudanças climáticas”, segundo definição da própria B3. Fabio Zenaro, diretor de Produtos Balcão, Commodities e Novos Negócios da bolsa, afirma ser uma oportunidade para ganhar mais visibilidade e ampliar a base de investidores. “Essa modalidade está começando por aqui, mas já vem crescendo lá fora, com mais força na Europa e nos Estados Unidos”, diz.

Desde 2005 a B3 trabalha com o Índice de Sustentabilidade Empresarial, o ISE, que identifica as empresas alinhadas com a nova realidade da demanda por desenvolvimento sustentável, eficiência econômica e responsabilidade ética. A Klabin está nessa lista há seis anos. Entre as iniciativas da companhia nessa questão está a Certificação Florestal Klabin, um programa que atende pequenos produtores e já cobriu mais de 76 mil hectares no Paraná e 21 mil hectares em Santa Catarina. “O projeto gera valor para toda a cadeia, pois ajuda esses agricultores a trabalharem com madeira certificada, o que poderia ser um processo burocrático e moroso para eles, e aumenta o fornecimento de matéria-prima de qualidade”, comenta Julio Nogueira, gerente de Sustentabilidade e Meio Ambiente da empresa.

CADEIA DA CARNE

A emissão de títulos vinculados a projetos ambientais, sociais e de governança corporativa também se tornou uma realidade na cadeia produtiva da carne bovina. É o caso dos Sustainable Transition Bonds lançados pela Marfrig Global Foods. O valor desses papéis soma 500 milhões de dólares, com prazo de dez anos e taxa de 6,625%, e a coordenação dessa captação é compartilhada entre os bancos Santander, ING, BNP, Banco do Brasil, Bradesco, BTG, Nomura, HSBC, XP e Rabobank. De acordo com a empresa, os recursos captados no exterior devem ser aplicados na compra de gado na região do bioma Amazônia (Mato Grosso, Pará e Rondônia), utilizando sistemas de controle que impeçam qualquer aquisição vinda de áreas de desmatamento. Para entrar na lista de fornecedores, os produtores terão de comprovar que não utilizam mão de obra escrava ou análoga à escravidão nem trabalho infantil; e que o gado não é criado em reservas indígenas, nem em unidades de conservação ou terras embargadas.

Na origem da matéria-prima também nascem empreitadas integradas a processos sustentáveis. A Associação Brasileira de Angus (ABA), entidade que reúne criadores da raça bovina de origem britânica reconhecida mundialmente pelo alto padrão de qualidade de carne, apresentou ao mercado, em junho, o projeto Angus Sustentável, baseado em seis pilares – sustentabilidade, responsabilidade social, rastreabilidade, sanidade, bem-estar animal e biossegurança. O projeto-piloto dessa iniciativa já tem um ano e foi desenvolvido com a Fazenda Santa Mônica, do Grupo ARG, localizada em São João da Ponte (MG). A meta inicial é uma oferta mensal de 500 toneladas de carne, volume que virá de um rebanho com 60 mil cabeças, distribuídas em duas fazendas. Para o início de 2020, a pretensão é alcançar 750 toneladas/mês.

A iniciativa é uma evolução natural do Programa de Qualidade de Carne Angus, parceria bem-sucedida entre a ABA e a indústria frigorífica, que incluiu cortes da raça desde o menu da alta gastronomia até o cardápio de hamburguerias gourmet e redes de fast-food. Prova de que esse movimento vai de ponta a ponta na cadeia produtiva de alimentos é que qualquer loja do McDonald’s no Brasil pode ser uma potencial vitrine do quanto as boas práticas agropecuárias nas fazendas beneficiam o consumidor final, e até ajudar a reduzir preconceitos que tanto impactam o setor.

A holding Arcos Dorados, maior franquia independente do McDonald’s no mundo e controladora da rede em toda a América Latina, contribuiu, por exemplo, com a popularização do hambúrguer Angus e foi pioneira na compra de carne produzida de forma sustentável, processo desenvolvido em parceria com o GTPS (Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável). A empresa já anunciou que vai avançar nesse campo.

CADA UM COM SEU PAPEL

Muito perto de completar um século de existência e já celebrando 10 anos no Brasil, a multinacional chilena CMPC trabalha com um conceito expandido de sustentabilidade, mesmo os segmentos em que a companhia atua – madeira, celulose e papel – já sendo insumo mais que suficiente para essa conversa. Com todas as suas unidades no País instaladas no Rio Grande do Sul, e a principal delas na cidade de Guaíba, à beira do lago de mesmo nome, a empresa mergulhou na hidrovia como modal logístico inteligente e ambientalmente responsável para o transporte de madeira e celulose. “Uma série de fatores nos levou a essa decisão. Além de vermos as barcaças trafegando carregadas só em um sentido, havíamos comprado uma nova propriedade a cerca de 330 quilômetros da unidade Guaíba 2 e o custo do transporte rodoviário prejudicava a eficiência”, comenta Mauricio Harger, diretor-geral da CMPC no Brasil. “O Rio Grande do Sul tem apenas 3% de sua matriz modal concentrada nas hidrovias e a CMPC decidiu investir neste modal pouco explorado, por meio da Lagoa dos Patos”, acrescenta. As barcaças da CMPC transportam cerca de 1,2 milhão de metros cúbicos de madeira por ano, volume que pode chegar a 1,4 milhão.

Mauricio Harger, da CMPC

“Com o uso de hidrovias, evitamos 74 mil viagens de caminhões por ano e todos os seus impactos”

Como resultado dessa alteração logística, 280 caminhões deixaram de circular diariamente pelas rodovias gaúchas: uma barcaça carregada com madeira equivale a 80 caminhões, enquanto com celulose corresponde a 200. “Evitamos 74 mil viagens de caminhões por ano e todos os impactos relacionados ao trânsito e às emissões associadas a combustíveis fósseis”, diz Harger. O benefício ambiental reverberou em outras áreas. Para que as barcaças aportassem na cidade de Pelotas, ponto logístico estratégico para a empresa, a CMPC investiu R$ 30 milhões em um projeto de revitalização do porto local e reurbanização que durou dois anos e envolveu até asfaltamento das vias de paralelepípedo para o tráfego dos caminhões, iluminação e uma nova sede para a Polícia Ambiental, em um local que estava deteriorado.

Outro exemplo sustentável da CMPC, somando os oito países em que atua, é a reciclagem de 800 mil toneladas de papel e papelão por ano, material vindo de vias públicas, praças, praias, universidades e depósitos de lixo. A empresa divulga em seu site global que, no Chile, são geradas 17 milhões de toneladas de resíduos sólidos por ano e apenas 10% desse volume é reciclado. No caso de papel e papelão, 80% são reutilizados, resultado que só é possível pela ação dos catadores de base, muitas vezes tratados com certo desdém por parte da sociedade, e das cooperativas que lhes dão apoio.

Valeria Michel, da Tetra Pak

“Não adianta eu ter tecnologia e a cadeia ser informada se o consumidor, na casa dele, não faz coleta seletiva.”

Por se tratar de uma responsabilidade compartilhada, o comprometimento com a sustentabilidade deve ser tão grande no meio rural quanto no urbano. Bom exemplo de produto que faz essa conexão ambiental do campo à mesa é a caixinha longa vida, embalagem que transporta e preserva diversos produtos originados no agronegócio. “Quando começamos a trabalhar com isso, há mais de 20 anos, nossa prioridade número um foi garantir tecnologia para reciclagem de nossas embalagens. Não podemos colocar no mercado um produto que não possa ser reciclado”, diz Valeria Michel, diretora da Economia Circular da Tetra Pak para as Américas. Também foi essencial informar a cadeia recicladora que as embalagens são recicláveis e que há um mercado para esse material. “Não adianta eu ter tecnologia e a cadeia ser informada se o consumidor, na casa dele, não faz coleta seletiva. Essa caixinha acaba indo parar em um lixão, nos oceanos ou em qualquer outro lugar que não seja o destino correto”, comenta a executiva.

Para desenvolver uma cultura de preservação, coleta seletiva e reciclagem, a Tetra Pak tem investido em educação ambiental, desde o público infantil. E um grande apelo é mostrar que a

Embalagem Tetra Prisma com o selo FSC

simples separação adequada das caixinhas pode gerar renda e melhorar a qualidade de vida de muita gente. “Se a comunidade separa mais o material reciclável, entra mais matéria-prima nas cooperativas, que são invisíveis para a população. Ao conseguirmos mostrar esse lado social da reciclagem, a participação torna-se mais efetiva, bem mais do que quando se fala do ambiental”, diz.

UM EDIFÍCIO QUE VIROU VITRINE

A impressão de estar em um corredor infinito é uma das sensações de quem visita o Edifício Corporativo Los Ángeles da CMPC, multinacional chilena de madeira e celulose. Afinal, são 203 metros de comprimento, o que faz parecer um prédio deitado, para 16 metros de largura. O nome do edifício é uma referência à cidade onde está localizado. Inaugurada em março deste ano, a construção é quase toda de madeira (paredes e colunas de pinus e piso de eucalipto), a maior da América Latina com essa característica. Com capacidade para abrigar mais de 450 pessoas, o Los Ángeles otimizou a estrutura organizacional antes distribuída em quatro escritórios. Projetado pelo arquiteto Luis Izquierdo (Izquierdo y Lehmann), virou referência de inovação na engenharia civil e se tornou o primeiro edifício do Chile e o quarto da América Latina a receber certificação da cadeia de custódia FSC (Forest Stewardship Council) e também certificação LEED (Leadership in Energy and Environmental Design) como energicamente sustentável. O investimento de 32 milhões de dólares da CMPC nesse projeto pode significar mais do que todos esses benefícios, pois joga luz sobre um negócio que pode vir a crescer. “Só 18% das casas familiares do Chile são de madeira. O setor de arquitetura não está acostumado a trabalhar com essa matéria-prima, mas essa situação já está mudando com estudos sobre a aplicação em moradias”, afirma Eduardo Hernandéz, COO de Produtos Florestais e de Madeira da empresa.

CAPACITAÇÃO PARA SER SUSTENTÁVEL

É preciso ser muito convincente para tirar um produtor de sua labuta diária na fazenda e levá-lo a uma sala de aula para falar sobre boas práticas agrícolas. Se o argumento for bom e houver a possibilidade de levar a sala de aula até o agricultor, ou o mais próximo possível, a situação muda de figura. É o que acontece na Expedição da Agricultura para a Vida, iniciativa da Corteva Agriscience para levar aos produtores conhecimento sobre manejo de plantas daninhas, manejo integrado de pragas, tecnologia de aplicação e segurança do trabalho. Esse projeto tem por objetivo auxiliar os participantes a serem mais eficientes no aproveitamento de seus recursos naturais, humanos, financeiros e tecnológicos, uma condição básica para serem também sustentáveis. O caminhão baú que se transforma em sala de aula tecnológica tem 7 metros de comprimento por 3,5 metros de largura, tela touch de 25 polegadas e rede Wi-Fi, tem capacidade para até 20 alunos, em geral produtores, agrônomos e técnicos. O rendimento costuma ser muito positivo, pois os participantes chegam aos encontros já bem informados e trazem à tona questionamentos de alto nível técnico. A etapa de tecnologia de aplicação acontece do lado de fora do caminhão, pois conta com simuladores dos jatos dos bicos de aplicação de produtos químicos. Para apresentar os detalhes do funcionamento desses dispositivos, são utilizadas maquetes, cortadas ao meio, que permitem ver sua parte interna e até avaliar quanto dinheiro passa por cada ponta de aplicação (foto). A programação deste ano da Expedição envolve Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Bahia, Tocantins, Maranhão, Pernambuco, Minas Gerais e Distrito Federal.

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