CRISPR, a sigla do futuro do agro

Por ROMUALDO VENÂNCIO Seis letras resumem, em uma sigla, um dos temas que mais ganharam notoriedade


Edição 13 - 27.02.19

Por ROMUALDO VENÂNCIO

Seis letras resumem, em uma sigla, um dos temas que mais ganharam notoriedade no campo do melhoramento genético nesta década, tanto em teoria quanto na prática. O CRISPR (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats) se tornou o destaque entre as novas tecnologias de edição genômica pela amplitude de sua contribuição com a ciência, em especial na produção de alimentos e na saúde humana.

Em termos de resultados, a percepção é maior no segmento de comida, pois a tecnologia já mostrou do que é capaz até para o consumidor final. O CRISPR tem permitido o desenvolvimento de vegetais com mais qualidade e sabor ou características específicas que atendam diretamente algum desejo de quem compra ou de quem vende no varejo, como maior shelf life, ou, como se dizia antigamente, maior tempo de validade. Essa técnica de edição genômica também ampliou as possibilidades na área da medicina – embora muito ainda esteja no campo da pesquisa –, pois podem vir da precisão nessas alterações do DNA novas esperanças para a prevenção, o tratamento ou a cura de doenças importantes como as hereditárias, a exemplo das cardíacas. Não por acaso, centros de pesquisa de diversos países, sobretudo da China, têm iniciado ou ampliado estudos com o CRISPR.

Na tradução literal para o português, esta sigla quer dizer “agrupados de curtas repetições palindrômicas regularmente interespaçadas”. Em outras palavras, seria algo como ocorrências específicas que se repetem de forma sistêmica em uma região do DNA de bactérias, servindo de memória contra vírus invasores. O corte para a edição genômica é feito por uma enzima chamada Cas9, e por isso a tecnologia também é chamada de CRISPR-Cas9. Apesar da complexidade natural da seleção genética, essa combinação pode ser explicada de maneira simples, clara e direta: o CRISPR é a mira de precisão, que indica microscopicamente o ponto onde deve ser feito o corte no genoma, e o Cas9 é quem executa de forma cirúrgica esse corte. Assim, é possível acrescentar, inibir ou potencializar um gene de interesse e, dessa forma, adequar uma determinada característica para obter ganhos de produtividade; aumentar a tolerância a situações estressantes, como falta ou excesso de água; evitar o impacto de pragas, doenças e plantas daninhas. Não por acaso, o melhoramento genético com base em novas técnicas de edição de genes se tornou a maior aposta da ciência para se chegar a uma nova geração de plantas e animais mais saudáveis e produtivos.


Além dessas aplicações, o líder de Assuntos Científicos da Bayer, Guilherme Cruz, destaca a precisão da utilização do CRISPR para desfazer conexões entre os genes. Ele explica que ao trabalhar com genoma, há genes mais próximos e mais distantes uns dos outros, e quando estão próximos demais podem dificultar a edição e o programa de melhoramento genético. “Às vezes estamos separando uma característica de interesse e junto vem outra que não interessa, então precisamos desfazer esse link. Isso até poderia ocorrer naturalmente, mas levaria muitas gerações e muitos cruzamentos”, explica.

Essa técnica representa um grande avanço em seleção de plantas e animais, devido a fatores como versatilidade, precisão e uma significativa redução de tempo e investimentos, principalmente se comparada à transgenia, edição genômica mais aplicada até então. Na verdade, essa distinção em relação aos transgênicos é crucial para a expansão dessa tecnologia. O ponto principal nessa questão é que as “tesouras genômicas” do CRISPR são aplicadas somente em genes de uma mesma espécie, apenas acelerando uma seleção que, de acordo com especialistas de várias partes do mundo, poderia ocorrer da mesma forma por um processo natural de melhoramento genético que já vem ocorrendo na agricultura há mais de 10 mil anos. Não há inserção de genes externos, retirados de outras espécies, a exemplo do que acontece com os transgênicos, como é o caso do desenvolvimento das plantas Bt – milho, soja e algodão –, que receberam genes da bactéria Bacillus thuringiensis. Este microrganismo, presente no solo, produz uma proteína (Cry) tóxica para certas espécies de insetos e parasitas que devoram a produtividade e a rentabilidade das lavouras: Lepidoptera (borboletas e mariposas), Diptera (moscas e mosquitos), Coleoptera (besouros) e Hymenoptera (vespas, abelhas e formigas), além de nematoides.

O CRISPR pode até mesmo ser um importante aliado da transgenia. Artigo publicado na revista científica norte-americana PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America), no ano passado, mostra como um grupo de cientistas utilizou a edição genômica para tentar reduzir a resistência de lagartas ao algodão Bt na China. Os pesquisadores examinaram todo o genoma da praga para encontrar a base genética do problema e, após a comparação entre indivíduos suscetíveis e resistentes, estreitaram a busca, passando de uma base de 17 mil genes para apenas 21 que tinham alguma relação com a resistência, número que ainda caiu para 17, em nova etapa dessa garimpagem genética.


A comparação entre as sequências desses 17 genes revelou uma posição única em que havia um par de DNA, um gene chamado HaTSPAN1, que diferenciava lagartas suscetíveis e resistentes à característica inseticida do algodão Bt. Foi aí que entrou a precisão da edição pelo CRISPR. Quando os pesquisadores inibiram o tal gene em insetos resistentes ao Bt, estes se tornaram suscetíveis. O inverso também funcionou: lagartas suscetíveis se tornaram resistentes ao receberem a alteração no DNA. Por mais benéfica que possa ser essa experiência e por mais que o CRISPR possa agilizar sua realização, é preciso considerar que tudo isso faz parte de um processo, no qual obrigatoriamente entram conhecimento técnico e científico sobre genética e agronomia, comprovações dos resultados (positivos ou não) das aplicações e uma série de outros fatores, inclusive tempo, que transformam um estudo em realidade no campo.

PORTAS ABERTAS PELA REGULAMENTAÇÃO

O CRISPR começou a ser descoberto no final dos anos 1980, e surgiu em meio a pesquisas com a bactéria Escherichia coli que levaram a sequências repetitivas incomuns no DNA de um organismo. A partir dos anos 2000, apareceram outros estudos mais dirigidos a entender e, posteriormente, a dominar o funcionamento da tecnologia. Alguns deles, já na década atual, até deram origem a uma disputa por direitos autorais sobre a técnica. Um deles, realizado entre 2011 e 2012, por equipes lideradas pelas pesquisadoras Jennifer Douda (Universidade da Califórnia, EUA) e Emmanuelle Charpentier (Universidade de Umeå, Suécia), foi o que revelou a capacidade de o CRISPR-Cas9 editar qualquer genoma no ponto exato de interesse. Em fevereiro de 2013, um artigo publicado na revista Science mostrou pesquisa semelhante com a aplicação da edição genômica em células de camundongos e humanas. O pesquisador Feng Zhang (Instituto Broad – Boston, EUA) é um dos autores desse outro estudo que levou à disputa pelos direitos autorais da tecnologia.

Foi naquele mesmo período que a agropecuária brasileira passou a se aproximar mais da pesquisa com a tecnologia CRISPR. “Entre 2011 e 2013, participei de uma missão da Embrapa na Universidade de Berkeley, na Califórnia (EUA), com o objetivo de trazer para o Brasil conhecimentos sobre essa técnica”, conta Alexandre Nepomuceno, pesquisador da Embrapa Soja (Londrina, PR). Desde então, o CRISPR vem ganhando espaço em diversas unidades da estatal, além da própria Embrapa Soja: Recursos Genéticos e Biotecnologia (Brasília, DF), Milho e Sorgo (Sete Lagoas, MG), Agronergia (Brasília, DF), Informática Agropecuária (Campinas, SP), entre outras. “Pela importância do impacto que essa tecnologia pode gerar, já há pesquisadores trabalhando em uma plataforma para modificar quatro espécies – cana, milho, soja e feijão –, melhorando fatores agronômicos. Tolerância à seca é uma das características mais importantes, pois teremos cada vez mais períodos mais longos de estiagem e também de muita água”, comenta Nepomuceno.

O pesquisador da Embrapa Soja tem uma ligação direta e intensa com o desenvolvimento do CRISPR no Brasil, pois também integra uma seleta equipe de 27 doutores que tratam especificamente desse assunto na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e responsável pela regulamentação dessa área da ciência. Durante três anos, esse grupo de especialistas trabalhou na elaboração de um documento que integrou desenvolvimento tecnológico e regulamentação e que pode ter levado o Brasil a saltar algumas décadas no processo de seleção genética de plantas e animais.

Em janeiro de 2018, entrou em vigor a Resolução Normativa nº 16 (RN16), que define as tratativas no Brasil para as Técnicas Inovadoras de Melhoramento de Precisão (Timp), ou tecnologias de edição genética, como o CRISPR. As definições da RN16 estão em sintonia com a maioria dos países que já se posicionaram publicamente sobre o tema. Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Estados Unidos e Israel assumiram a posição de que as plantas editadas geneticamente com as novas técnicas não são transgênicas. “Se o Brasil não seguisse essa tendência, teríamos um grande impacto negativo até em competitividade”, diz Nepomuceno.

Apenas a União Europeia destoou dessa linha, colocando no mesmo balaio as novas técnicas de edição genética e a transgenia. “Comprando comida barata no mundo, fica fácil tomar esse tipo de decisão. Se o bloco tivesse algum problema de abastecimento, com certeza a questão seria vista de outra forma”, protesta o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Luiz Carlos Federizzi, que concentra sua experiência profissional na área de melhoramento genético de plantas e inovações de ciência e tecnologia para o agronegócio. “Não acredito que essa posição europeia vá durar por muito tempo.”

Essa divergência de entendimento entre os blocos comerciais serviu de matéria-prima para a produção de um artigo escrito por nove pesquisadores de oito países – entre eles Nepomuceno, da Embrapa Soja – e publicado recentemente na revista científica New Phytologist. De acordo com o texto, a decisão europeia tem os processos como lastro, enquanto a maioria dos demais países definiu sua regulamentação levando em consideração o produto resultante do uso da tecnologia. O artigo mostra ainda que esse posicionamento da União Europeia pode gerar complicações até mesmo nas relações comerciais do bloco com o restante do globo.

Para Guilherme Cruz, da Bayer, a possível harmonização global do sistema regulatório sobre as novas técnicas de edição genômica seria motivo de comemoração. “A gente andou muito bem nas Américas e tenho certeza de que todo mundo ficará muito mais satisfeito quando Oriente e Europa estiverem em sintonia nessa questão”, afirma. Segundo ele, a decisão não é científica e, por isso, reversível. “O corpo científico está alinhado com o que foi definido nas Américas. Já conversei com alguns pesquisadores europeus e eles estão inconformados com essa posição. Entendo que o quadro pode ser alterado, só vai consumir um pouco mais de energia dos pesquisadores europeus para destravar esse entendimento”, avalia.

Entusiasta das técnicas de melhoramento genético, Cruz se diz ansioso para poder anunciar novidades da Bayer com a tecnologia CRISPR. No momento, a empresa não permite que se fale sobre qual será seu primeiro produto nessa área nem sobre o pipeline. “Ainda não temos um prazo definido para lançamentos, mas espero que seja breve. Hoje estamos em fase de ajustes, compreendendo as técnicas. Porque quando se fala em CRISPR, pode-se entender como uma coisa única, simples, que todo mundo está usando, mas na verdade há várias nuances, proteínas diferentes da cultura e do cultivar, então estamos trabalhando com um time grande para entender todos esses detalhes”, explica o executivo.

Oportunidades comerciais e economia de tempo e dinheiro são outros valiosos benefícios resultantes do entendimento global sobre a diferença entre tecnologias como o CRISPR e a transgenia. Afinal de contas, é exatamente essa diferenciação que poupa os produtos gerados com a edição do CRISPR da intensa bateria de avaliações técnicas a que são submetidos os transgênicos quanto à biossegurança. E da etapa seguinte: a rodada de aprovações dos países de interesse. Essa verdadeira maratona de despachante, chamada de desregulamentação, eleva o custo e o prazo para a chegada de um transgênico ao mercado, o que pode até tornar a solução desatualizada em relação ao problema quando for lançada. “O valor do processo de desregulamentação de um transgênico chega a US$ 130 milhões. Apenas quatro empresas no mundo têm condições de fazer esse investimento”, analisa Nepomuceno.

Para se ter ideia da diferença que faz o tipo de tecnologia utilizado para o melhoramento genético na produção agropecuária, o primeiro animal transgênico destinado ao consumo, uma variedade de salmão, levou mais de 25 anos entre pesquisas, avaliações técnicas e superação das questões burocráticas até que, em agosto de 2014, fosse liberado para comercialização, mas somente no Canadá. O Salmo Salar, desenvolvido pela empresa canadense AquaBounty, atinge tamanho e peso ideais de abate em 18 meses, metade do tempo necessário para os salmões convencionais. Essa vantagem produtiva foi alcançada pela inserção de um gene relacionado ao hormônio do crescimento de outro salmão, o Chinook (Oncorhynchus tshawytscha), e dos reguladores genéticos do peixe-carneiro-americano (Zoarces americanus).

RITMO ACELERADO

Dada a largada para a aplicação do CRISPR no Brasil, com a entrada em vigor da RN16, a CTNBio logo passou a receber as cartas-consulta de produtos desenvolvidos com a edição genética. As vantagens da tecnologia também ficam evidentes nessa etapa do processo. “No caso de um transgênico, a documentação a ser submetida à análise da CTNBio é um dossiê com centenas de páginas e a espera por uma resposta que dura anos”, afirma Cruz, da Bayer, acrescentando que no caso das novas técnicas, as avaliações são criteriosas do mesmo jeito, porém com foco um pouco diferente.

Uma das primeiras requisitantes foi a startup belgo-brasileira GlobalYeast, que em março do ano passado protocolou a apresentação de soluções para o setor sucroenergético. A empresa desenvolveu, com aplicação do CRISPR, duas cepas de levedura para a fermentação industrial que permitem gerar mais bioetanol com a mesma quantidade de insumos. A análise da CTNBio, neste caso, tem o objetivo de esclarecer se a inovação é ou não transgênica. Após pouco mais de três meses, foi publicado o parecer técnico sobre a novidade, e com respaldo positivo para a solicitante. “Se o processo tivesse sido feito em 2017, o produto seria classificado pela legislação como transgênico e o custo chegaria próximo de R$ 1,5 milhão”, comenta Nepomuceno. “Como submeteram à análise no ano passado, o custo foi zero em termos de regulamentação”, acrescenta.

A seleção de bovinos, que muito tem evoluído com a utilização de ferramentas como os marcadores genéticos, também aparece na relação de consultas aprovadas pela CTNBio como não transgênico. No início de novembro do ano passado, a Comissão publicou o parecer técnico referente à solicitação da empresa AgroPartners Consulting sobre a produção de animais da raça leiteira Holandesa envolvendo a edição com gene da raça de corte Angus para a obtenção de um gado sem chifre. O rebanho mocho, comprovadamente, oferece menos riscos de acidente e mais facilidade no manejo.

Outra solicitação feita à CTNBio diz respeito a uma variedade de milho ceroso desenvolvida pela Corteva Agriscience, Divisão Agrícola da DowDuPont, primeiro produto comercial da empresa com tecnologia CRISPR e que já tem aprovação no mercado norte-americano. O lançamento para comercialização, por lá, acontece logo mais, entre abril e maio, para ser plantado na safra de verão deste ano. No Brasil, só estará disponível a partir de 2021. “Esse período deve-se ao fato de que todos os nossos lançamentos passam pelo menos por dois anos de avaliação”, comenta Sandra Milach, líder de pesquisa da Corteva nos EUA, lembrando que o aval da CTNBio para este milho foi anunciado em dezembro último.

O diferencial da novidade da Corteva está na alteração da composição do amido. “Normalmente, o amido do milho tem 75% de amilopectina e 25% de amilose. O que fizemos foi inativar o gene responsável pela amilose, elevando o teor de amilopectina para mais de 97%”, explica Sandra, que complementa: “Esse milho apresenta maior produtividade em alguns processos nos segmentos de colas, tintas, comidas congeladas, entre outros”.

A Corteva, que desde 2012 desenvolve estudos com CRISPR, tem outras linhas de pesquisa com essa técnica no Brasil. Em parceria com unidades da Embrapa, a companhia está buscando soluções para problemas de grande impacto agronômico e financeiro na produção agrícola nacional, como a tolerância das plantas à seca, tema da ação conjunta com a Embrapa Soja. Com a unidade Recursos Genéticos e Biotecnologia, o foco é a resistência aos nematoides. “Trata-se de um problema seriíssimo que não se resolve apenas com aplicação de nematicidas”, analisa Sandra. A pesquisadora afirma ainda que os estudos podem avançar de forma a obter essas características em uma única planta.

Outro projeto da parceria entre Corteva e Embrapa abrange fatores relacionados à qualidade do feijão, como durabilidade, cor e facilidade de cozimento. Essa pesquisa, em particular, mostra a abrangência dos interesses da multinacional, que vai além da exploração comercial da cultura. “Neste caso, é muito mais pela importância de chegar com a tecnologia até a mesa do consumidor. E para desmitificar a ideia de que qualquer ação neste segmento é transgenia. As novas técnicas de edição genética trazem muitos benefícios e não podem ser confundidas assim”, diz Sandra, que defende a transparência como plataforma para ampliar os horizontes. “É uma tecnologia muito nova, sobre a qual temos de falar, discutir e tirar dúvidas. Ainda é um processo em desenvolvimento que precisa envolver governo, sociedade, empresas e setor produtivo. Daqui a uns cinco anos, será muito mais fácil”, avalia. Sandra não está sozinha nesse discurso.

CONVERSA DIRETA COM A SOCIEDADE

Em outubro de 2015, o pesquisador da Pennsylvania State University (EUA), Yinong Yang, solicitou ao Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) o aval para uma variedade do cogumelo Paris desenvolvida com a tecnologia CRISPR. A resposta veio seis meses depois, em abril de 2016, por carta, confirmando não se tratar de alimento transgênico. Este cogumelo foi a primeira planta derivada do CRISPR a chegar ao consumidor final. “O que se fez ali foi impedir a ação da enzima responsável pelo escurecimento do cogumelo após ser cortado. Isso aumenta o tempo de prateleira, o que é muito interessante”, comenta Adriana Brondani, diretora-executiva do CIB. “É um produto geneticamente modificado, mas que não recebeu um gene de outro organismo.” É por aí que ela começa a falar sobre esclarecimentos.

Para grande parte da população, a sigla OGM, de organismo geneticamente modificado, era sinônimo de transgenia. Essa relação deverá ser revista, e um passo decisivo para isso será a popularização das novas técnicas de edição genética. “Todo transgênico é um organismo geneticamente modificado, mas nem todo organismo geneticamente modificado é um transgênico”, compara Adriana, que ingressou no CIB exatamente para reforçar o papel da instituição de levar informações sobre biotecnologia a todos os segmentos da sociedade, desde o mercado e as empresas envolvidas com o tema, até os órgãos governamentais e a população em geral. E se surpreendeu com a dificuldade de aceitação da biologia molecular na área de agronomia.

A bióloga formada pela UFRGS, com mestrado em bioquímica e doutorado em biologia molecular, conta que até entrar no CIB sua carreira foi toda dedicada à saúde humana, área em que a simpatia pela biotecnologia costuma ser bem diferente. “Sempre houve uma percepção muito positiva, uma aceitação muito maior em relação aos tratamentos com biologia molecular”, comenta a executiva, que vai além: “Ao falarmos sobre alguém com uma doença grave, como o câncer, é comum o ouvinte fazer uma relação com um parente, uma pessoa próxima, ou seja, cria uma identificação, e com isso fica favorável a tudo o que for possível em termos de tratamento”. Já no caso da agricultura, diz ela, as pessoas acham que nada tem a ver com elas quando ouvem sobre pragas e plantas daninhas.

Alexandre Nepomuceno reforça a tese de Adriana lembrando que a transgenia, por exemplo, já é utilizada em tratamentos da saúde humana há décadas. “Os transgênicos existem desde os anos 1970 e diversos produtos, como a insulina, usam essa tecnologia. A história começou a pegar mesmo quando chegou à agricultura”, comenta o pesquisador. “Daí criou-se uma série de regras, uma regulamentação para cada país”, acrescenta.

Para o professor Luiz Carlos Federizzi, da UFRGS, os diferenciais dos produtos gerados a partir do CRISPR vão favorecer de forma significativa a aproximação entre o agronegócio, o campo em si, e o consumidor final. “Sobretudo pela segurança e porque será possível mexer muito mais nessa questão da qualidade dos alimentos, até por conta do menor custo”, afirma. Ele diz, inclusive, que pode haver uma influência mútua entre a área da ciência e a do consumo. “Tanto pode ocorrer o direcionamento das pesquisas com base nas mudanças de hábito de consumo, como os resultados das pesquisas podem influenciar esses hábitos. É um mercado incrível que está se abrindo”, analisa.

Federizzi conta que até pelo rápido avanço nesse campo, o corpo acadêmico da UFRGS procura ser ágil para compartilhar as novidades com os alunos de graduação e pós-graduação. Assim que surge algo diferente, os professores levam para as salas de aula uma ideia de como o assunto surgiu, como vai funcionar e o que está acontecendo, além de indicar artigos para que possam entender melhor. E, segundo ele, não há como não saber sobre as novidades, pois o que não falta é informação disponível. “Toda quinta-feira, recebo no meu celular as duas principais revistas científicas do mundo. O importante é você saber onde buscar e filtrar o que é correto”, afirma. Manter-se atento às redes de profissionais envolvidos com o assunto também faz parte dessa expansão de conhecimento. “É importante saber quem trabalha com qual tipo de pesquisa, em qual área e com qual cultivar. Eu, por exemplo, me dedico ao melhoramento genético de aveia, então procuro saber todo mundo que trabalha em pesquisa neste setor.”

O esclarecimento também contribui para que os resultados de pesquisas em campos diferentes se relacionem de forma positiva e se fortaleçam frente à opinião pública, e não o contrário. Como aconteceu em novembro do ano passado, quando o pesquisador chinês He Jiankui anunciou ao mundo, por meio da agência de notícias Associated Press, ter alterado dois embriões humanos, utilizando a tecnologia do CRISPR-Cas9, para que se tornassem resistentes ao vírus HIV, responsável pela Aids. Ao fazer essa divulgação, Jiankui disse ter contribuído para a geração dos primeiros bebês geneticamente modificados, as chinesinhas gêmeas que haviam acabado de nascer.


Do ponto de vista de combate e prevenção para um mal tão sério como é a Aids, que aterrorizou a raça humana durante as décadas de 1980 e 1990 – a partir dos anos 2000 o maior volume de informações e opções de tratamentos amenizou o impacto –, a pesquisa de Jiankui tem um valor inestimável. Mas vale lembrar que, apesar da extrema importância que tem a biotecnologia para a saúde humana, experiências ousadas envolvendo temas sensíveis sempre chocarão a população em qualquer parte do globo. Pode ser mais ou menos, dependendo da relação da pesquisa com os padrões considerados éticos. O nascimento do primeiro “bebê de proveta”, ou fertilização in vitro (FIV), no interior da Inglaterra, por exemplo, dividiu opiniões lá em julho de 1978. Passados mais de 40 anos, milhões de pessoas já foram geradas a partir da reprodução em laboratório, e as técnicas e procedimentos aplicados atualmente mal se comparam aos daquela época.

OPORTUNIDADES AMPLIADAS

Além de todas as vias de evolução tecnológica, o CRISPR abre uma nova fronteira para o campo das pesquisas científicas em produção agropecuária devido à menor demanda por investimentos, se comparado à transgenia. “O custo que temos com pesquisa e desenvolvimento, que já é alto, aumenta absurdamente com toda a parte de testagem e avaliação de risco”, comenta Adriana Brondani, do CIB, sobre os transgênicos. “O que temos percebido por conta da vantagem competitiva do CRISPR é a movimentação de pequenas empresas e institutos de pesquisa utilizando a tecnologia para desenvolver variedades vegetais com potencial interessante do ponto de vista agronômico”, acrescenta a bióloga.

De qualquer forma, Nepomuceno ressalta que continua sendo importante que as grandes corporações sigam investindo no setor, pois tais recursos permitem ampliar o alcance do que se desenvolve nos centros de pesquisa, favorecendo todo o agro. Além de nutrir um campo que já é bastante fértil inclusive – e principalmente – para as AgTechs, as startups do agronegócio. “O número de startups que mais se abre é no segmento de biotecnologia”, destaca Nepomuceno. A opinião do pesquisador da Embrapa Soja é reforçada pela coluna “Esalqueanos” desta edição, escrita por Mateus Mondin, professor do Departamento de Genética da Esalq-USP e idealizador do AgTech Valley – Vale do Piracicaba.

“Estamos falando de uma evolução do mercado agropecuário, de uma melhoria nos negócios, porque esse desenvolvimento tira aquela conotação de uma tecnologia de apenas algumas empresas”, avalia Adriana. Para a executiva do CIB, até mesmo a disponibilidade de pessoas capacitadas é um diferencial neste cenário. “Agora temos cursos de graduação e pós-graduação em biotecnologia”, acrescenta. Nepomuceno chama a atenção para a importância de o atual governo brasileiro “não perder o bonde” e investir na ampliação das oportunidades para a força-tarefa que vem se formando e se especializando para atuar na agropecuária. “Temos uma multidão de jovens cientistas brilhantes formados e treinados com capital nacional, mas que por ficarem desempregados vão desenvolver e aplicar esse conhecimento em outros países”, finaliza.

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