Água, o petróleo do século 21

O investidor Michael Burry, sediado na Califórnia, ficou conhecido por ter criado um fundo de deriv


Edição 12 - 09.01.19

O investidor Michael Burry, sediado na Califórnia, ficou conhecido por ter criado um fundo de derivativos de crédito, uma espécie de seguro inadimplência, para prevenir colegas contra os títulos podres que levaram à crise de 2008. Considerado um outsider do sistema financeiro naquela época, ele teve um papel tão importante no episódio das hipotecas imobiliárias (subprimes) que acabou virando o personagem principal de um filme, A grande aposta (2015). Depois disso, resolveu colocar suas fichas numa commodity até então ignorada ou pelo menos pouco comentada em Wall Street: a água. O negócio corre no fundo Scion Capital, avaliado em US$ 300 milhões, com potencial para criar uma nova onda no mercado de capitais. Para ele, a água é o petróleo do século 21.

É uma nova aposta, mas com risco bem calculado. A Organização das Nações Unidas estima que, atualmente, 844 milhões de pessoas não têm acesso à água. A cada 90 segundos, uma criança morre de sede no planeta e US$ 260 bilhões são gastos anualmente graças à falta d’água e saneamento básico. Com a escassez de água ameaçando, até 2050, um contingente de 5 bilhões de pessoas em todo o mundo, o líquido que dá origem à vida já é tratado como um ativo tão valioso quanto estratégico, exigindo novas abordagens de governos, da ciência e das empresas. O abastecimento urbano é a ponta desse iceberg. Representa, no Brasil, apenas 8,8% do consumo. A maior parte desse recurso natural destina-se ao campo, que absorve 69,5% do total, segundo a Agência Nacional das Águas (ANA). Assim, essas questões ganham, no meio rural, proporções infinitamente maiores.

A água é insumo fundamental na produção agrícola e a sua crescente escassez tem potencial para transformar, de maneira radical, o jeito como se faz agropecuária em todo o mundo. Crises hídricas têm alterado paisagens, devastado negócios, desafiado produtores e cientistas em algumas das mais produtivas regiões do planeta. Na Austrália, por exemplo, a chamada “Seca do Milênio” fez com que os preços da água utilizada na agricultura dobrassem no último ano e, na pecuária, obrigou a indústria da carne a antecipar o abate de milhares de cabeças de gado, que começavam a perder peso por não dispor de alimentação e hidratação suficientes. Na Califórnia, que colhe um quarto de todo o alimento consumido pelos americanos, os aquíferos que abastecem as cidades e os sistemas de irrigação sofreram inesperadas reduções em seus volumes. No Brasil, dono das maiores reservas de água doce do mundo, as precipitações cada vez mais irregulares em praticamente todas as regiões colocam produtores em alerta e grandes períodos de estiagem em algumas delas provocam quebras recorrentes nos resultados das safras. Em qualquer canto do planeta em que se discute a questão, há um consenso: a agropecuária, que tem entre suas missões dobrar a produção nos próximos 30 anos para alimentar uma população global crescente, precisa urgentemente de soluções para colher mais usando menos água.

Quem vive da terra – e por que não dizer da água – enfrenta um dilema. Durante séculos, a agricultura moveu-se para próximo da água e desenvolveu sistemas de produção que associavam a maior disponibilidade hídrica – sobretudo com irrigação — a colheitas mais fartas. O uso intensivo de água era visto, até recentemente, como um elemento chave para se obter uma intensificação também na produção de alimentos. Hoje, essa lógica é condenada nas grandes cidades, que costumam enxergar a agricultura como grande “consumidora de água”. E a atividade é empurrada na direção contrária. Ao mesmo tempo, precisa de argumentos para despir a roupa de vilão ambiental.
A boa notícia é que eles existem. Diferentemente do que acontece com o uso industrial e urbano, a maior parte da água utilizada pela produção agropecuária retorna limpa à natureza por meios como evaporação e penetração no solo. Assim, as fazendas são fundamentais para a recarga dos aquíferos e na formação de estoques de água, que alimentam os rios. Além disso, outra parte relevante é remetida diretamente ao consumidor, “embutida” na comida. Outro ponto relevante é que, em todo o mundo, a imensa maioria da produção de alimentos é feita em lavouras irrigadas pela chuva – ou seja, em um regime natural, sem concorrer com o consumo industrial ou doméstico. No Brasil, por exemplo, as chuvas nos fornecem 13,4 trilhões de metros cúbicos por ano. Mais do que qualquer outro, o agricultor sabe quanto vale cada gota. Sem água, cultivar e criar animais seria inviável.

“A água, hoje, é um recurso limitado e vulnerável, um insumo essencial para diversos usos. Na agricultura, é fundamental”, comenta o coordenador de Agricultura Irrigada do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), José Silvério da Silva. “Todas as nossas ações estão sendo dirigidas no sentido de garantir o uso racional da água, tornando a sua utilização sustentável”, garante o representante. O Mapa prevê lançar, em breve, um Plano Nacional de Segurança Hídrica, mas não revela detalhes. “Estamos trabalhando em conjunto com a Integração e a Casa Civil. Essa política tem como fundamento o uso racional, eficiente e produtivo da água”, informa Silvério.

SEMEADORES DE SOLUÇÕES

“Se a questão é escassez, o produtor rural tem mais soluções do que problemas”. A frase, dita pelo coordenador de Sustentabilidade da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), Nelson Ananias Filho, durante o 8º Fórum Mundial da Água (FMA), realizado em Brasília (DF) em março passado, reflete a permanente preocupação, no campo, com a utilização adequada dos recursos hídricos. Cada vez mais os produtores associam técnicas já consagradas com inovações tecnológicas que surgem todos os anos. O plantio direto na palha, que melhora a absorção da água no solo, venha ela das chuvas ou via irrigação, é um exemplo clássico. Se neste sistema forem plantadas sementes de cultivares desenvolvidas para serem mais resistentes ao déficit hídrico, o resultado é ainda mais expressivo em relação à economia de água. Técnicas avançadas de irrigação, uso de sensores no solo e no ar dividem atenção com propostas tradicionais de armazenamento, inclusive subterrâneo, como formas de enfrentar um clima mais hostil e com precipitações irregulares.
Graças aos avanços tecnológicos e científicos, a agricultura tem aprendido mais sobre o ciclo da água e sobre como fazer um uso mais racional. Programas que reúnem algumas das ferramentas mais eficientes no que os americanos batizaram de Climate-Smart Agriculture (CSA) – Agricultura com Inteligência climática, em uma tradução livre — têm sido incentivados em vários países, especialmente para auxiliar pequenos fazendeiros, que não têm acesso a tecnologias mais avançadas, a mitigarem os efeitos de uma oferta cada vez menor de água nos próximos anos. A primeira lição que esses programas ensinam é conservar o que a natureza oferece, guardando os excedentes para os dias de escassez.

Transformar o produtor de alimentos em produtor de água é outra missão que começa a ganhar corpo entre gestores de entidades e autoridades. No Brasil, um programa do gênero criado pela Agência Nacional de Águas (ANA) incentiva o agropecuarista a investir em boas práticas de preservação, contribuindo para fazer a água brotar de novo da terra, nutrir o solo e correr para o rio. Em contrapartida, eles recebem apoio técnico e financeiro, através de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA). Assim, além do ganho econômico da sua produção, o produtor também melhora a quantidade e a qualidade da água da região, beneficiando a todos. Hoje, o Programa Produtor de Água atinge mais de 400 mil hectares de áreas protegidas e mais de 2 mil produtores rurais recebem por esses serviços. “No momento em que se tem essa parceria com o produtor, dizendo que ele vai receber para cuidar daquilo que é feito na propriedade, a possibilidade de uma muda virar árvore na área dele é muito maior do que em qualquer outro lugar”, afirma Devanir Garcia dos Santos, coordenador do programa.

ALÉM DA PRESERVAÇÃO

A redução do impacto ambiental do agronegócio inclui estratégias para irrigação, monitoramento tecnológico das lavouras e até placas vegetais para filtragem e tratamento d’água. No mundo, 70% das águas passam pela irrigação antes de voltarem ao ciclo pluvial. No Brasil, esse índice é menor, de 60%, segundo a ONU. Seja por gotejamento, pivô central, aspersão ou sulcos, o Brasil está entre os dez países com as maiores áreas equipadas para irrigação no mundo, com 7 milhões de hectares. A área irrigada tem crescido, em média, 4% ao ano desde a década de 1960, quando a técnica se difundiu no País. Prática antiga da Mesopotâmia e do Egito, a irrigação garantiu a existência da agricultura e se destacou na China e na Índia, onde ocupa 70 milhões de hectares em cada país. Lavouras irrigadas rendem o triplo, permitem a produção de três safras por ano e evitam a expansão de área plantada. Mas, sobretudo, oferecem uma possibilidade de fazer a gestão dos recursos hídricos nas propriedades, graças à evolução da tecnologia no setor.

“No Brasil, a área irrigada tem crescido sobre pastagens, áreas degradadas e sequeiro mal manejado, diminuindo a incorporação de novas terras, já que o produtor consegue produzir mais com menos”, avalia o especialista em recursos hídricos da ANA, Thiago Fontelles. Na divisão entre culturas, a cana-de-açúcar ocupa 20% da área irrigada total e o arroz, 25%. Os grãos (soja, milho e café) e citros ocupam a maior área, de 55%. Os diferentes tipos de irrigação variam conforme a cultura e região. Os pivôs centrais são mais comuns no Centro-oeste e Sudeste. O arroz inundado predomina no Sul. O primeiro equipamento de irrigação instalado no Brasil foi criado em 1940 pelo Instituto Rio-grandense de Arroz (Irga), em Cachoeira (RS), abastecendo 462 mil hectares. “Claro que, de lá pra cá, a eficiência evoluiu. Hoje somos muito mais eficientes. Produzimos um quilo de arroz por metro cúbico de água, produtividade cinco vezes maior do que no início”, compara o diretor técnico do Irga, Maurício Fischer.

Aspersores de última geração como o iWobler, um dos equipamentos mais utilizados, hoje em dia, no controle da água consumida pelos pivôs centrais — a tecnologia equipa 95% das novas máquinas para irrigação agrícola, correspondendo a uma cobertura de 650 mil hectares no País, de acordo com a fabricante Senninger –, controlam os níveis de saída da água, possibilitando economia de 30% nos gastos hídricos em relação aos aspersores e reguladores de pressão mais antigos. “Antes, os produtores utilizavam spray fixo ou rotativo, mas agora estão repondo as peças conosco”, explica o especialista de Irrigação da companhia, Eugenio Lucca Neto.
Contudo, não basta deter a tecnologia. A irrigação das lavouras exige estratégias para balancear fatores como chuva, topografia e períodos adequados para molhar as plantas. Com faturamento de US$ 3 bilhões por ano, 130 fábricas espalhadas pelo mundo e onze mil funcionários, a multinacional Valmont é especialista em projetos de irrigação de precisão, que buscam extrair o máximo potencial produtivo das fazendas. “O objetivo é fornecer o máximo de água possível no momento certo e na quantidade certa. Se coloco uma gota d’água numa planta, não significa que ela vai absorver tudo. Com um sistema apropriado de irrigação, chegamos a quase cem por cento de eficiência”, afirma o gerente de engenharia da empresa, Vinicius Melo.

Os produtos Pivot Valley, da Valmont, estão na fazenda do produtor Romeu Franciosi, de Luís Eduardo Magalhães (BA), onde o desafio era captar água em vales profundos e fazer o bombeamento por canal até vastas áreas plantadas. A propriedade tem, hoje, 28 pivôs de 350 hectares cada, com lâminas baixas que liberam 4,5 milímetros de água por segundo, ante 10 mm da maioria existente. “É bom ressaltar que chamamos nossa irrigação de complementar”, pontua Franciosi, explicando que aciona os pivôs no início e no final das lavouras, ou durante estiagens, contando com a água da chuva nos demais períodos. Além disso, ele intercala culturas que precisam de mais água com outras que “bebem” menos (milho e algodão, por exemplo) para aproveitar melhor as áreas irrigadas. “É uma irrigação mais complexa, mais trabalhada, com custo um pouco mais elevado que as tradicionais. Esse manejo permite aumentar a produtividade, com resultados satisfatórios”, conclui.

ÁGUA É DINHEIRO

Investir em sistemas que permitem economizar água deixou de ser opcional para boa parte dos produtores. Outro mito constantemente difundido quando se vilaniza a agricultura pelo consumo de água é o que diz que os produtores tiram o líquido de rios, lagos e poços gratuitamente e o utilizam em detrimento do consumo urbano. Na verdade, a cobrança pela água usada na agricultura é uma realidade em diversos estados brasileiros. No Estado de Sã o Paulo, por exemplo, seis das 22 bacias hidrográficas já cobram pela utilização dos recursos hídricos. As tarifas variam conforme o volume usado e o local de captação.


Outro debate frequente entre cidade e campo diz respeito à qualidade da água devolvida ao ambiente. Na agricultura bem-feita, ela retorna praticamente sem resíduos, diferentemente da proveniente de residências e indústrias, que consomem recursos vultosos em tratamento. Também no campo, porém, a utilização de técnicas para reter eventuais impurezas tem crescido. O empresário paulista Luis Magalhães, por exemplo, trouxe da Austrália um filtro composto de parafina e nanominerais que limpa água poluída. Com apenas um ano, a tecnologia da O2 Eco já chama atenção do mercado agropecuário. Magalhães cita o exemplo da família Almeida Prado, sua cliente em Jaú (SP), que produz muçarela de búfala e utiliza o serviço de filtragem para tratar a água de reuso do laticínio. “Houve economia de 30% nos gastos com o tratamento de efluentes gerados pela higienização da indústria”, afirma. A tecnologia da O2 é utilizada em onze países, de acordo com o empresário, que destaca o papel da Austrália, onde estudou agronomia, em descobertas científicas. O país acumula 12 prêmios Nobels.

As frequentes crises hídricas têm gerado oportunidades para empreendedores e inovadores que buscam soluções tecnológicas para a economia da água, numa espécie de corrida global pelo novo líquido precioso. A companhia VICI Lab, da Virginia, nos EUA, criou uma torre que capta água atmosférica e a armazena numa câmara subterrânea, vinte metros abaixo da superfície. O Waterseer é adequado para regiões desérticas, como a África subsaariana. Os filtros de grafeno, forma de carbono 200 vezes mais resistente do que o aço, foram a solução encontrada pela Lockheed Martin, do Reino Unido, para dessalinizar a água, com alta pressão e temperatura de 500 graus Celsius. O método supera a dessanilização convencional com produtividade 20% superior e já vem sendo utilizado no setor energético a nível de 18 bilhões de galões de óleo e gás por ano. No Marrocos, cientistas estão testando painéis capazes de captar a umidade presente na neblina para armazenagem de até 6,3 mil litros de água por dia. Estes são alguns exemplos das melhores soluções encontradas pela Circle of Blue, uma coligação internacional de especialistas no assunto. Na Nova Zelândia, a empresa BioLumica desenvolveu um sistema que utiliza luzes ultravioleta no tratamento de sementes para estimular as plantas a absorver melhor a água e os nutrientes disponíveis, produzindo mais com menos insumos. Já utilizada no México e na Califórnia, regiões com pouca oferta hídrica, a tecnologia gerou aumentos médios de 22% na produtividade. Também na Califórnia, as lavouras da holding Iron Ox são controladas por sistemas inteiramente baseados em inteligência artificial. Lá, o cultivo hidropônico reduz em 90% o consumo de água e torna a produção 30% mais eficaz.

Não faltam, da mesma forma, startups e tecnologias à disposição dos produtores rurais brasileiros. Entre as chamadas AgTechs nacionais, uma das que possui maior visibilidade internacional atua justamente na solução desse problema que tira o sono de quem planta. Criada por uma família de fazendeiros que desenvolveu um sistema capaz de reduzir em 60% o consumo de água e 40% as contas de luz, além de gerar ganhos de 20%, em média, na produtividade, a Agrosmart usa sensores monitorados via satélite para medir os níveis pluviométricos, de umidade e salinidade do solo, calculando a demanda hídrica necessária para cada talhão. “Monitoramos o quanto chove, exatamente, em cada parte da fazenda”, explica Mariana Vasconcelos, CEO da empresa. “Identificamos até os níveis de transpiração das plantas, determinando o quanto de água é preciso para a irrigação.” A tecnologia da Agrosmart está presente em fazendas que somam, juntas, 170 mil hectares no Brasil, além de nove outros países, inclusive Israel. Neste ano, foi apresentada à Organização Mundial de Comércio (OMC) e no Fórum Econômico Mundial. “Já somos reconhecidos como uma autoridade em desenvolvimento agrícola sustentável”, diz Mariana, pontuando que, além de alertar os produtores para possíveis perdas na lavoura, a empresa faz análises de melhoramento foliar e seleção de cultivares para diferentes microclimas. “Até mesmo os consultores das fazendas sentem falta de dados para melhorar a produção”, afirma a executiva.

A geração de dados serve, sobretudo, para elaborar planos de irrigação que auxiliam os agricultores na tomada de decisões. A israelense Netafim, líder no mercado de gotejamento, com mais de 400 mil hectares equipados com seu pacote tecnológico no Brasil, lançou neste ano uma plataforma para digitalizar esse processo. “É a única tecnologia capaz de monitorar, analisar e recomendar dados da lavoura para o cliente, dentro de um modelo digital”, conta o diretor de Marketing da companhia, Carlos Sanches. “Trabalhamos o conceito de produtividade da água, considerando cada mililitro que o agricultor aplica nas culturas”, ele diz, citando ganhos de 50% a 100% na economia da água. Sanches explica que o gotejamento é a forma mais precisa de irrigação, com quatro vezes mais eficácia do que os outros métodos. “Nossos gotejadores são desenhados pela Rolex, tamanha a precisão que eles têm”, revela. Afinal, a água é um produto cada vez mais valioso.”

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