Por André Sollitto
É na fronteira entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai, em meio ao pampa gaúcho, que são produzidos alguns dos melhores vinhos do Brasil. A Campanha Gaúcha, imortalizada na música Céu, Sol, Sul, Terra e Cor, do cantor Leonardo, é uma região de tradições preservadas, paisagens amplas e vocação agrícola. Embora menos famosa que a Serra Gaúcha, principal polo de vinhos finos do País, a Campanha já ocupa o segundo lugar em volume de produção. Com quase 20 vinícolas em atividade, incluindo nomes de peso como Miolo e Salton, responde por 31% dos rótulos nacionais. Em 2020, a região conquistou a Indicação de Procedência (IP), selo que certifica a origem e qualidade de seus vinhos. A área demarcada abrange 44.365 quilômetros quadrados e 1.560 hectares de vinhedos. A localização é estratégica: situada entre os paralelos 29 e 32, a Campanha está dentro da faixa ideal para o cultivo de videiras, a mesma que abriga vinhedos renomados na França, Itália, Espanha, Argentina e no Chile. O clima quente e seco, aliado a solos com boa drenagem, favorece a produção de uvas de alta qualidade e reduz o risco de doenças nas plantas.
Durante muito tempo, a Campanha Gaúcha foi reconhecida sobretudo pelo volume de sua produção. Mas, nos últimos anos, passou a ganhar prestígio também pela qualidade dos vinhos que produz, muitos deles premiados em concursos nacionais e internacionais. Um dos principais símbolos dessa virada é a vinícola Guatambu. Fundada em 2003 pela tradicional família Pötter, do agronegócio gaúcho, a iniciativa surgiu a partir de uma provocação de Gabriela Pötter, uma das quatro filhas do patriarca Valter. Desde o início, a qualidade das uvas demonstrou que o projeto tinha futuro. Hoje, a Guatambu cultiva 20 hectares de vinhedos – uma pequena porção dentro da vasta propriedade de mais de 11 mil hectares –, mas que já representa uma fatia significativa do faturamento da fazenda, graças ao alto valor agregado de seus rótulos. Entre os destaques, está o espumante Nature Blanc de Blancs, eleito o melhor do Brasil pelo guia Descorchados no ano passado.
Na edição mais recente do guia Descorchados, assinado pelo jornalista chileno Patricio Tapia, o Potter Tannat 2024 foi eleito o melhor tinto brasileiro, dividindo o topo do ranking com dois rótulos de vinícolas concorrentes. Para Gabriela Pötter, o segredo do reconhecimento está no “microterroir muito especial” da propriedade, localizada no município de Dom Pedrito. Além da excelência na produção, a Guatambu também se destaca pelo enoturismo: oferece uma das experiências mais completas da região, com visitas guiadas, degustações e o Dia Épico, um festival que combina gastronomia harmonizada, música ao vivo e programação cultural em meio aos vinhedos.
É na Campanha Gaúcha que se concentram alguns dos maiores vinhedos do País. A gigante Miolo, por exemplo, mantém ali importantes propriedades, como a Quinta do Seival, berço de alguns de seus rótulos mais prestigiados, e a Almadén, a maior vinícola do Brasil em área contínua, com mais de 450 hectares de videiras em produção. Graças à topografia majoritariamente plana, a Campanha é a única região vitivinícola do País que permite a colheita 100% mecanizada. Cada colheitadeira cobre, em média, de 120 a 130 hectares e realiza em meio turno o que exigiria um dia inteiro de trabalho manual de uma equipe com 100 pessoas. O custo é alto: o valor de cada máquina, somado a frete e impostos, pode chegar a R$ 1 milhão. Mas, pelo volume colhido e pela precisão do processo, o investimento se paga. A urgência na colheita também é estratégica: o ideal é retirar as uvas da planta no ponto exato de maturação, antes que passem do ponto. Por isso, o trabalho geralmente começa ainda de madrugada, quando as temperaturas são mais amenas. “A diferença entre fazer um vinho mediano e um grande vinho está no momento da colheita”, resume Adriano Miolo, superintendente da vinícola.
Alguns dos vinhedos mais antigos do País também estão na Campanha Gaúcha. Na Almadén, os primeiros parreirais foram plantados em 1982. Restam hoje poucas fileiras dessas videiras originais, entre elas uma pequena e valiosa parcela da variedade Colombard, também conhecida como French Colombard, cada vez mais rara no cenário vitivinícola brasileiro. Cultivadas em formato de pequenos arbustos, essas uvas são utilizadas em alguns blends exclusivos da marca. Outra parcela histórica, quase tão antiga quanto, é dedicada à Tannat, uva que encontrou na Campanha um terroir ideal, especialmente pela proximidade geográfica e climática com o Uruguai. Essas vinhas antigas são destinadas à produção do Tannat Vinhas Velhas, um dos rótulos mais emblemáticos da Miolo, integrante da linha Sete Lendários, dedicada a vinhos de tiragens limitadas.
A Cooperativa Nova Aliança, uma das maiores do País, acaba de completar 95 anos. Embora concentre suas atividades com cooperados de outras regiões, como a Serra Gaúcha, foi na Campanha que encontrou uma oportunidade singular: a Fazenda Santa Colina, adquirida em 2005. A propriedade, com 500 hectares, pertenceu originalmente a empresários japoneses apaixonados pelos vinhos da Almadén. Em busca de um terroir semelhante, instalaram-se na região e chegaram a produzir rótulos para exportação ao Japão – até decidirem encerrar a operação. Hoje, a Nova Aliança cultiva 60 hectares de vinhedos na fazenda e planeja expandir: a meta é alcançar 150 hectares nos próximos cinco anos,justamente quando a cooperativa celebrará seu centenário. “A propriedade é a menina dos olhos da cooperativa. É daqui que vêm os nossos vinhos ícones”, afirma o CEO Heleno Facchin.
Terra de tradições centenárias, a Campanha Gaúcha abriga vinícolas que se dedicam não apenas à preservação das raízes familiares, mas também à proteção do bioma pampa, um dos mais ameaçados do Brasil. É o caso da Estância Paraizo, comandada por Victoria Zara Mercio, representante da décima geração da família. “Somos uma vinícola do pampa profundo”, diz. “Uma companhia gaúcha verdadeira e original, que mantém vivos os princípios da colonização da fronteira com o Uruguai, quando essa fronteira ainda nem era definida.” Com forte compromisso ambiental, a propriedade de 1,6 mil hectares tem mais da metade da área dedicada à pecuária de baixo carbono, com gado criado em sistema grass fed (alimentado apenas com pasto). Segundo Victoria, trata-se da maior extensão de terras privadas em conservação ativa do bioma. “Nosso negócio é o pampa”, afirma. A produção de vinhos é pequena, quase artesanal: apenas 5,5 hectares com duas variedades, Cabernet Sauvignon e Syrah. Mas o enoturismo ganha força. Quem visita a Estância pode, além de degustar os vinhos, fazer um tour histórico, que inclui o mausoléu da família.
Nem todos os produtores agrícolas da região compartilham da mesma preocupação com o meio ambiente. Em diversas lavouras de soja, ainda é comum o uso do herbicida hormonal 2,4-D, um dos componentes do Agente Laranja, desfolhante tristemente célebre por seu uso durante a Guerra do Vietnã. Embora seja proibido em vários países devido aos riscos à saúde quando mal aplicado, o produto continua autorizado no Brasil, desde que respeitadas normas rigorosas de manuseio. Na prática, porém, essas regras raramente são seguidas à risca – e o resultado é a chamada deriva, quando partículas do defensivo se espalham pelo ar e atingem áreas vizinhas, como os vinhedos. Variedades mais sensíveis, como a Chardonnay, podem sofrer sérios danos: mudas inteiras morrem e a produtividade despenca. Análises em amostras de vinhos produzidos com uvas contaminadas indicam que, no produto final, não há vestígios tóxicos, o que garante a segurança para o consumo. Mas o prejuízo nas videiras, e no bolso dos viticultores, é significativo. O tema chegou ao Judiciário. Em dezembro do ano passado, a Associação Gaúcha de Produtores de Maçã (Agapomi) e a Associação dos Produtores de Vinhos Finos da Campanha Gaúcha entraram com uma ação contra o Estado, alegando ausência de fiscalização eficaz. A disputa, por ora, continua em aberto.
Há ainda um obstáculo a ser superado. Apesar da qualidade dos vinhos e da força dos projetos locais, a Campanha Gaúcha enfrenta limitações significativas em infraestrutura voltada ao enoturismo. O acesso é uma das principais barreiras. De Porto Alegre até Bagé, são quase 400 quilômetros, uma viagem de cerca de cinco horas por trechos da BR-290, uma das principais rodovias do estado, mas em grande parte com pista simples e tráfego intenso de caminhões. A região ainda conta com poucos hotéis e longas distâncias entre os vinhedos. Muitos deles nem sequer oferecem estrutura adequada para receber turistas. “A questão dos aeroportos é a principal”, afirma Adriano Miolo. “Dizem que não colocam voos porque não há turistas. Mas eles não vão vir se não tiver como chegar”, completa. Ainda assim, quem decide enfrentar o trajeto costuma se surpreender. E, para os mais indecisos, vale começar pelo mais simples: abrir um rótulo da região e deixar que a taça mostre por que a Campanha merece ser descoberta.