Por André Sollitto
Pelos esforços em fazer do ato de cozinhar uma arte, os franceses ocupam, com razão, posição de destaque no universo da gastronomia. Suas técnicas servem de base para qualquer um que se aventure nos fogões, e quem se diz “chef” precisa conhecer um vasto acervo de receitas que vêm de lá. Mas, há algum tempo, as novidades francesas deixaram de chamar a atenção dos críticos internacionais. Os ventos da boa comida sopraram em direção à Espanha – primeiro com Ferran Adrià e seu El Bulli, que dominou os rankings de melhores restaurantes no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, depois com outras casas fundamentais, como El Celler de Can Roca. Mais tarde, foi a vez do norte da Europa, com o dinamarquês Noma, do chef René Redzepi, ou o Eleven Madison Park, do suíço Daniel Humm, em Nova York, nos Estados Unidos. Agora, é o Peru que tomou de assalto o cenário gastronômico, mostrando a criatividade e a riqueza culinária do sul global.
O que chama a atenção na atual cozinha peruana é a originalidade e a valorização dos ingredientes e técnicas locais. No lugar de simplesmente desenvolver variações de clássicos da cozinha francesa, há uma pesquisa genuína que mergulha na rica história e em tudo que a natureza é capaz de oferecer. A biodiversidade peruana tem um papel fundamental nesse movimento. Embora seja apenas o 19º maior país do mundo, é um dos 17 considerados “megadiversos”, por possuir uma das maiores variedades climáticas e geográficas do planeta. São 39 ecossistemas únicos, incluindo 12 na Amazônia, 12 nos Andes, 4 no Yunga (floresta tropical e subtropical úmida que se estende pelo leste do Peru e pelo centro da Bolívia), 9 na zona costeira e 2 na vida marinha. O Peru também abriga 2 mil espécies de peixes, 1.736 espécies de aves, 32 espécies de anfíbios, 460 espécies de mamíferos e 365 espécies de répteis. Cerca de 10% de todas as variedades de flora do planeta estão lá. Esses números ajudam a mostrar a enorme diversidade à disposição dos cozinheiros.
Quem está à frente do despertar gastronômico peruano é o casal de chefs Virgilio Martínez e Pía León, que, juntos, comandam alguns dos principais restaurantes do país. O principal deles é o Central, eleito em 2023 o melhor do mundo pelo World’s 50 Best, um dos principais prêmios gastronômicos. Uma vez escolhido para o topo do ranking, o estabelecimento torna-se “hors concours”, ou seja, fora da competição. Estreou no ranking latino-americano do 50 Best em 2013 já na quarta posição, e ficou três anos no topo, entre 2021 e 2023. No mesmo espaço ocupado pelo Central fica o Kjolle, restaurante solo de Pía León, eleito o quarto melhor da América Latina e o 15º do mundo. O casal ainda comanda outros projetos gastronômicos.
O menu do Central é focado em traduzir a biodiversidade peruana. Martínez e León servem variações de alimentos básicos locais, como milho e batata, bem como ingredientes mais obscuros. O Kjolle também é dedicado a mostrar a diversidade peruana, mas sem se limitar às altitudes. O casal cuida ainda de outros dois restaurantes: Mil, em Cusco, dedicado a apresentar aos comensais a variedade gastronômica dos Andes, e o MAZ, localizado em Tóquio, no Japão, que é influenciado por todos os elementos do Peru, mas traduzido para a realidade dos ingredientes japoneses.
O centro do trabalho dos dois é o Mater, instituto multidisciplinar de pesquisa, hoje comandado por Malena Martinez, irmã de Virgilio. Ela trabalha com um grupo de botânicos, médicos, nutricionistas e outros profissionais, estudando produtos, técnicas e saberes tradicionais. Pía León explica como funciona. “Não precisa começar apenas com um produto, mas com alguma técnica ancestral de tecido, por exemplo, produzido a partir da lã da alpaca, ou com uma forma de preservação”, diz. “A partir dessa informação, a equipe do Mater se debruça sobre ela e usa sua imaginação. Aquele tecido pode ser usado no restaurante ou seguir por caminho inverso.” Que caminho seria esse? “Posso chegar para Malena e dizer que preciso de um produto assim, para ser usado de tal maneira, e ela vai investigar”, acrescenta Pía. “São opções que te fazem abrir os olhos. Porque muitas vezes ficamos concentrados na cozinha enquanto tanta coisa acontece fora.” Assim, surgem pratos, mas também elementos visuais e táteis que ajudam a compor a experiência oferecida por León e Martinez.
Os dois também viajam pelo mundo, cozinhando ao lado de outros chefs e mostrando a diversidade peruana para um público variado. “Como peruanos, temos essa função de ensinar o que existe e o que acontece em nosso país, comunicando tudo o que fazemos”, afirma Pía León. “Não apenas no restaurante, mas nos Andes, na costa, na Amazônia. É evidente que, para isso, precisamos sair e mostrar, já que nem todos vêm ao Peru.” Ela esteve no Brasil no final de 2024 para apresentar uma seleção de pratos do Kjolle. Foi recebida pelo chef Nello Cassesse no restaurante Cipriani, localizado dentro do hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro. O menu foi pensado para jogar luz especialmente sobre o papel do Mater nessa pesquisa. “Assim, podemos mostrar não somente produtos, mas o que a gastronomia significa para nós hoje: arte, cultura, histórias, técnicas e pessoas”, diz a chef.
Virgilio Martínez e Pía León não são os únicos a colocar a gastronomia peruana nos holofotes mundiais. Alguns vieram antes, como o chef Gastón Acurio, que comanda o Astrid y Gastón ao lado da mulher, a chef confeiteira de origem alemã Astrid Gutsche. Os responsáveis pelo World’s 50 Best Restaurants definem bem a contribuição de ambos para o país: “Ao abrir em 1994, o Astrid y Gastón criou um novo cânone na gastronomia peruana, popularizando, modernizando e internacionalizando a comida do país de uma maneira que, desde então, tem sido apreciada por um público global”. Entre seus pratos mais conhecidos estão o bao (um tipo de pão cozido no vapor), polvo grelhado com salada e nhoque de lúcuma (um fruto andino).
O escritor peruano Mario Vargas Llosa celebrou os feitos do chef em um artigo: “Ninguém fez tanto quanto Gastón para que o mundo descubra que o Peru, um país com tantas carências e limitações, desfruta de uma das cozinhas mais variadas, inventivas e refinadas do mundo, que pode competir sem complexos com as mais famosas, como a chinesa e a francesa”, escreveu ele. Acurio recebeu um prêmio pelo conjunto da obra em 2018. Também ajudou a formar vários outros profissionais, incluindo Virgilio Martínez, e levou a comida peruana para outros países. Sua cevicheria La Mar teve filiais no Brasil.
Além dele, há outros restaurantes peruanos reconhecidos internacionalmente. O atual ranking World’s 50 Best traz três casas de Lima – Maido, Kjolle e Mayta. Na lista dedicada à América Latina, a quantidade aumenta ainda mais: Mérito, Rafael, Cosme, La Mar, todos em La Paz, e o Mil, do casal Martínez e León, em Cusco, estão entre os 50 melhores. O sucesso do Peru faz com que toda a América Latina seja reconhecida. O mundo olha para o sul global e se surpreende com a qualidade e a diversidade encontradas por aqui. Tirar os holofotes da Europa e dos Estados Unidos não é tarefa fácil, mas mostra que é possível, graças a um trabalho sério e que valoriza as próprias raízes. “Finalmente, hoje não se fala apenas do Peru ou do Brasil, mas de toda a América Latina. E esse é o verdadeiro movimento”, conclui Pía León.