Por Mário Sérgio Venditti
Há 18 anos, Cristiano de Souza Sarmento segue a mesma rotina. Depois do café da manhã, ele se despede da esposa, Henriqueta, e toma o ônibus fretado em frente ao seu condomínio rumo à fábrica da AGCO – multinacional de equipamentos e tecnologias agrícolas –, em Canoas (RS). Ali, pontualmente às 7h30, ocupa seu lugar no núcleo de pré-montagem do filtro do motor dos tratores da Massey Ferguson e Valtra, duas das marcas da AGCO, para cumprir sua jornada de trabalho. A cena parece comum para o cotidiano de muita gente, se não fosse por uma particularidade: Sarmento é deficiente visual.
Quando o carrinho carregado de peças estaciona ao seu lado, Cris, como é chamado pelos colegas, separa os cem componentes necessários, e devidamente memorizados, para montar o filtro em aproximadamente dois minutos e meio com precisão impecável. “Confiro cada peça com o tato e, às vezes, identifico um defeito que passaria despercebido para quem?usa apenas a visão”, afirma.
Antes de ingressar na AGCO, ele trabalhou por cinco anos como office– boy na Associação de Deficientes Visuais de Canoas. Mas, ao concluir o ensino médio, procurou novas oportunidades. “Sempre quis trabalhar em uma multinacional e participei de um processo seletivo da AGCO. Fui aprovado em várias etapas até ser contratado”, relembra. Ao longo de três meses, Sarmento teve a companhia de outro funcionário, que lhe ensinou todas as fases da montagem de radiadores.

Ele faz questão de ressaltar que não tem nenhum tipo de privilégio. “Sou cobrado como qualquer colaborador e sem coitadismo, porque não sou diferente de ninguém. Apenas uso outros sentidos para fazer o mesmo trabalho”, diz. Inquieto, o montador jamais permitiu que sua limitação servisse de obstáculo para evoluir na empresa. Sarmento formou-se em Logística e participa ativamente dos programas de ideias da AGCO abertos aos funcionários.
A ação é uma espécie de incubadora de sugestões viáveis, no sentido de trazer melhorias para a fábrica. Em 2017, uma ideia de Sarmento colocada em prática resultou em economia e otimização de tempo na linha de produção. Como prêmio, ganhou um automóvel zero-km, vendido em seguida para quitar seu apartamento onde mora com Henriqueta, que também é deficiente visual.
Sarmento faz parte da lista de 5% de pessoas PcD (portadores de alguma deficiência) do quadro de 2.500 colaboradores da AGCO no Brasil. Segundo a Lei 8.213/91, também conhecida como Lei de Cotas para Pessoas com Deficiência, as empresas com mais de 100 funcionários devem preencher de 2 a 5% das vagas de emprego com esse público. Angelica Kanashiro, vice-presidente de Recursos Humanos da AGCO América Latina, explica que o objetivo da companhia não se resume a obedecer a legislação. “Nosso propósito é incluir o candidato em todos os processos da AGCO, levando em conta suas habilidades e aspirações”, destaca.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou, em maio passado, que o Brasil tem 14,4 milhões de pessoas com deficiência – números colhidos no último Censo realizado no País, em 2022. Cerca de três milhões moram em domicílios rurais. Não existem, porém, informações precisas a respeito do contingente PcD envolvido diretamente na cadeia do agronegócio nacional. De toda forma, o estado de São Paulo dá algumas pistas. Dados de 2023 da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), atrelada ao Ministério do Trabalho e Emprego, revelam que 28,5% dos profissionais do agronegócio paulista possuem algum tipo de deficiência. Boa parte deles está alocada em áreas administrativas.
É o caso de Fernando Rudnei dos Santos, 41 anos, comprador da Jacto, empresa de máquinas, soluções e serviços agrícolas. Ele perdeu os movimentos do braço esquerdo aos 22 anos, depois de bater sua motocicleta desgovernada em uma placa de trânsito, acidente que o deixou sete dias em coma. Vindo de uma família humilde da cidade de Pompeia (SP), Rudnei sempre se virou para faturar uns trocados na juventude: carregava sacolas de compras das donas de casa durante o dia e à noite trabalhava em uma lanchonete.
O episódio mudou radicalmente sua vida. Ao sair do hospital, ele ficou seis meses deitado quase todo o tempo com um colar cervical para proteger a região do pescoço. Sem condições de exercer qualquer atividade, passou a depender da família. “Nos primeiros dias de recuperação, me sentia muito para baixo, desanimado. Felizmente, mudei meu pensamento e me conscientizei de que não poderia desistir de prosperar, de perseguir meus objetivos. Perdi os movimentos do braço, mas não a vida”, salienta.
Recuperado, lançou-se ao mercado de trabalho. No computador de uma lan house, Rudnei soube da abertura de um programa de treinamentos promovido pela parceria Senai-Jacto, que poderia lhe garantir uma colocação na companhia ligada ao agronegócio. Ao final do curso de dois anos, uma vaga de auxiliar de compras em Pompeia foi aberta e Rudnei a agarrou. Escalou posições na empresa, hoje ocupa o cargo de comprador e quer subir ainda mais até chegar a comprador sênior. “Sou responsável pela aquisição de um mix amplo de produtos, que vai de canetas a tratores”, diz.

Durante o expediente, ele usa uma tipoia para evitar dores nas costas. “Meu braço é um peso morto”, justifica. Rudnei dirige normalmente um automóvel com câmbio automático. Moto, nunca mais. Afinal, o impacto causou uma lesão no plexo braquial, rede de nervos que se originam na região cervical e torácica e se estendem até o braço. Olhando para trás, ele acredita que o pedido indeferido de aposentadoria por invalidez foi a melhor coisa que lhe aconteceu no período pós-acidente: “Se eu estivesse aposentado, não teria crescido tanto”, acrescenta.
Segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), as pessoas PcD não pleiteiam aposentadoria em primeiro lugar, mas sim oportunidades de trabalho. Elas podem contar com uma grande aliada nesse sentido. A advogada Laura Meireles, especializada em direito do agronegócio, é uma incansável batalhadora da causa dos portadores de deficiência no setor. Ela assegura que, embora a topografia dos terrenos das propriedades dificulte a movimentação de cadeirantes, as adaptações ajudam a inserir totalmente quem tem mobilidade reduzida nas atividades do agronegócio.

Oriunda de uma família produtora de gado de corte e de leite de Patos de Minas (MG), Meireles já elaborou uma série de projetos inspirados no programa Agroability, dos Estados Unidos. Eles reúnem, entre seus pilares, a inclusão de pessoas com deficiência no campo, desenvolvendo habilidades e investindo em novos dispositivos, como cadeira de rodas com pneus especiais e acesso mais facilitado às cabines das máquinas agrícolas.
No entanto, a advogada esbarra na dificuldade de conseguir apoio. “Com a participação de sindicatos rurais e universidades, há muitas ideias personalizadas que podem ser implementadas no agronegócio, dependendo da necessidade do produtor. Os bancos entrariam com o financiamento para essas soluções com juros mais baixos”, diz. “Muitas empresas gostam do projeto, mas, em seguida, desaparecem. O governo também poderia ajudar.” Ela entende que ainda existe um olhar preconceituoso ao público PcD: “Algumas pessoas com mobilidade reduzida deixam a roça e vão para a cidade porque se acham incapazes de executar atividades no campo.”.
Abandonar o campo jamais passou pela cabeça de Angelo Sarmento Klein, 34 anos. Morador da pequena cidade de Almirante Tamandaré do Sul (RS), ele dirige o trator John Deere 6210 M com desenvoltura nas plantações de soja, trigo e aveia na fazenda da família, apesar da prótese da perna esquerda. Klein sofreu uma tragédia pessoal aos 5 anos de idade: “Estava no carro do meu tio em um passeio nas Ruínas de São Miguel das Missões, quando ele foi pegar um revólver calibre 12 dentro do porta-luvas. A arma disparou acidentalmente e atingiu minha perna.”.

A partir daí, seguiu-se a corrida desesperada em busca de um hospital com mais recursos para atendê-lo. Ele foi levado para prontos-socorros nos municípios gaúchos de Santa Rosa e Santo Ângelo até chegar a Passo Fundo. Com quadro de trombose ameaçando sua saúde, a amputação acima do joelho foi a decisão urgente encontrada pelos médicos. Em seguida, não demorou para receber a prótese. “Por um lado, foi bom perder uma perna bem novo, porque daí nem lembro como era minha vida com as duas”, diz, com bom humor.
Klein cresceu na propriedade de 330 hectares de área cultivada, ao lado do pai, Aristides. Hoje, no comando do trator, realiza todas as operações necessárias, como preparação do solo para o plantio, pulverização, transporte de implementos e colheita. A seu ver, as principais dificuldades no trabalho das lavouras é conseguir mão de obra qualificada e adquirir os equipamentos com tecnologias mais modernas. “O campo paga bem, mas o agro exige dedicação total do funcionário”, afirma.
Ele só se ausenta temporariamente de suas raízes quando precisa ir para a capital, Porto Alegre, a 311 km de Almirante Tamandaré do Sul, fazer a manutenção da prótese, que tem o mecanismo do joelho eletrônico, o pé confeccionado em fibra de carbono e algumas partes de titânio. Mas não demora a regressar. Afinal, é no seu refúgio, uma cidadezinha de 2 mil habitantes, que ele guarda seus maiores tesouros: o contato com o campo e o filho, Adriano, de nove meses.
O primeiro trator acessível
Máquina da New Holland facilita a operação do usuário
A indústria de equipamentos agrícolas vem olhando com mais atenção para as necessidades do público PcD. Um exemplo é o lançamento, em 2023, do primeiro trator agrícola acessível do mundo, fabricado pela New Holland. Com projeto 100% brasileiro, o TL5 Acessível é destinado a pessoas com deficiência motora nos membros inferiores, permitindo que elas façam as atividades no campo de maneira independente. “A principal premissa da inclusão é que os portadores de alguma deficiência – as que também vivem e trabalham nas fazendas – querem ter autonomia para realizar suas atividades por conta própria”, afirma Eduardo Kerbauy, vice-presidente da New Holland para a América Latina. “O TL5 ajuda a eliminar barreiras que impossibilitam muitos agricultores de se acomodarem no posto de operação de uma máquina.”

A ideia de adaptar o TL5 nasceu a partir da demanda de produtores, que foram fundamentais para a fabricante chegar ao produto final. Produzido a partir da linha de tratores TL5, o modelo pode ser usado nas principais tarefas da propriedade rural, como preparação de solo, plantio, distribuição de calcário, colheita em pequenas fazendas, silagem, roçagem e distribuição de fertilizantes.
Ele é equipado com uma plataforma de elevação e um joystick para o operador comandar os movimentos necessários do embarque e desembarque, além dos controles adaptados do trator. A empresa também está desenvolvendo um dispositivo de telemetria, para que o usuário visualize as informações da máquina no aplicativo de gestão de frota.





